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Constituição Europeia No Tratado Constitucional, o direito fundamental à boa

3 O CONTROLE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL E NO MUNDO

3.2 OS TRIBUNAIS DE CONTAS NO BRASIL

No Brasil, a figura de Tribunal de Contas surgiu a partir do Decreto n. 966-A, de 7 de novembro de 1890 (BRASIL, 1890), editado a partir de iniciativa de Rui Barbosa (1999, p. 254-257), na época titular da pasta da Fazenda, que assim justificou a reforma, como uma das “pedras fundamentais” para a “edificação republicana”:

[...] e a medida que vem propor-vos é a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediaria à administração e à legislatura, que, colocado em posição autônoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias – contra quaisquer ameaças, possa exercer as suas funções vitais no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato aparatoso e inútil.

[...] Não basta julgar a administração, denunciar o excesso cometido, colher a exorbitância, ou a prevaricação, para as punir. Circunscrita a estes limites, essa função tutelar dos dinheiros públicos será muitas vezes inútil, por omissa, tardia, ou impotente. Convém levantar, entre o poder que autoriza periodicamente a despesa e o poder que quotidianamente a executa, um mediador independente, auxiliar de um e de outro, que,

jurídica, é possível que se chegue ao entendimento de que se trata de um Poder autônomo. Essas conclusões do autor podem ser aplicadas também ao CNMP. Já para Meirelles (2006, p. 698) a atividade exercida por esses conselhos não se trata de um controle externo, já que são exercidos no âmbito das próprias instituições controladas, embora por órgãos públicos de natureza nacional.

39 Sobre o controle que os Tribunais de Contas devem exercer sobre as agências

reguladoras, as quais possuem a atribuição de regular e de fiscalizar os serviços públicos delegados, vide Zymler (2012, p. 194-204), para quem, além do controle administrativo sobre essas entidades, devem as Cortes de Contas efetuar auditorias operacionais no sentido de verificar se as suas finalidades estão sendo atingidas. Realizam, portanto, uma fiscalização de segundo grau nesse sentido, verificando, inclusive, a execução dos contratos de concessão. Mas alerta que as Cortes de Contas não devem substituir as agências, mas tão somente zelar pela tempestiva e efetiva atuação desses entes reguladores, a fim de assegurar a adequada prestação de serviços públicos à sociedade.

comunicando com a legislatura, e intervindo na administração, seja, não só o vigia, como a mão forte da primeira sobre a segunda, obstando a perpetração das infrações orçamentarias por um veto oportuno aos atos do executivo, que direta ou indireta, próxima ou remotamente discrepem da linha rigorosa das leis de finanças. [sic] (BARBOSA, 1999, p. 254-257)

Mas o próprio Rui Barbosa chama atenção para o fato de que quarenta e cinco anos antes, pelas mãos do então Ministro da Fazenda do Império Manuel Alves Branco, um arrojado projeto de Corte de Contas entrava na ordem dos estudos parlamentares, demonstrando, ainda, nenhuma surpresa com o fato de a ideia ter dormido, na mesa da Câmara, o “bom sono de que raramente acordavam as ideias úteis, especialmente as que podiam criar incômodos a liberdade da politicagem eleitoral”, entregue que foi, pela monarquia, “ao pó protetor dos arquivos parlamentares”. (BARBOSA, 1999, p. 254-256)

Mas a presença do novo órgão no texto constitucional se dá com a Carta de 1891, que, em seu artigo 89, previu um tribunal responsável pela liquidação das contas de receita e despesa e pela verificação de sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso Nacional (BRASIL, 1891). O referido dispositivo situava-se no título reservado às disposições gerais, não tendo o Constituinte posicionado sistematicamente no texto constitucional a Corte de Contas dentro de quaisquer dos três poderes existentes, talvez inspirado nos ideais de Rui Barbosa, que, como se depreende da manifestação reproduzida acima, enxergava a necessidade de situar a nova magistratura em posição equidistante entre o legislativo e o executivo.

A Constituição de 1934, reafirmando sua autonomia, classificou o Tribunal de Contas, a exemplo do que fez com o Ministério Público, como “órgão de cooperação das atividades governamentais” (artigos 99 a 102, situados na Seção II do Capítulo VI). (BRASIL, 1934)

A Constituição Polaca de 1937 reservou um título próprio ao Tribunal de Contas, situado logo após o Poder Judiciário (artigo 114), mantendo sua posição autônoma40. (BRASIL, 1937)

40 Jacoby Fernandes (2012, p. 170-171), acompanhando Marques de Oliveira,

entende que a Constituição de 1937 teria localizado o Tribunal de Contas no Poder Judiciário, tratado, por sua vez, nos artigos 90 a 113. No entanto, essa posição parece não se sustentar, já que a Corte de Contas não consta do rol de

Mas é a partir da Constituição de 1946 que essa localização autônoma do Tribunal de Contas passa a ser tratada neste e nos textos constitucionais seguintes sempre dentro dos capítulos reservados ao Poder Legislativo. (BRASIL, 1946)

Tal tratamento equivocado pode ser interpretado como resultado de um distanciamento da memória institucional que inspirou a criação das Cortes de Contas, fruto, ao que parece, da necessidade de enquadramento dessas instituições no modelo tripartite de divisão de poderes do Estado, bem como de um déficit de legitimidade que, desde suas origens, acompanha os Tribunais de Contas.

A Constituição brasileira de 1988 limitou-se a consagrar expressamente o princípio da separação dos órgãos de poder, baseando- se na teoria tripartite, não tendo levado a efeito nenhum tratamento sistemático das funções de Estado, havendo uma articulação dispersa nas normas constitucionais e uma orientação funcional correspondente a cada um desses órgãos. Somente com base em uma análise sistemática é possível chegar a uma conclusão acerca das funções que de fato exercem cada um dos órgãos previstos na Carta Magna e que não se restringem a apenas três, eis que há a função administrativa, a governativa ou política, a judicial, a legislativa, a de controle, entre outras. (TAVARES, 1999, p. 71)

Justen Filho assinala que a CRFB/88:

Instituiu outras duas estruturas orgânicas, com características jurídicas inerentes à condição de Poder. O Tribunal de Contas e o Ministério Público são titulares de competências próprias insuprimíveis e foram instituídos com autonomia em face dos demais poderes. É irrelevante que a Constituição tenha mantido o Ministério Público como integrante do Poder Executivo e o Tribunal de Contas como órgão auxiliar do Legislativo. Ambos são dotados de funções próprias, inconfundíveis e privativas. As atribuições do Ministério Público e do Tribunal de Contas não podem ser exercitadas senão por eles próprios. Mais ainda, ambas as instituições têm estrutura

órgãos integrantes daquele poder, elencados no artigo 90 daquele texto normativo, além de ser abordada após a Justiça Militar, posicionada sistematicamente como último componente do Judiciário.

organizacional própria e autônoma, e seus exercentes são dotados de garantias destinadas a assegurar seu funcionamento independente e o controle sobre os outros poderes. Enfim, são estruturas organizacionais autônomas a que correspondem funções inconfundíveis. Tudo o que caracteriza a existência de um “poder” está presente na disciplina constitucional do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Só não têm a denominação formal de Poder. (JUSTEN FILHO, 2012, p. 92)

Para Justen Filho (2012, p. 92), do ponto de vista jurídico, deve- se, portanto, reconhecer a existência de cinco poderes no Estado brasileiro. E a assertiva de que o Executivo, o Legislativo e o Judiciário são Poderes da União, contida no art. 2º da CRFB/88, não pode servir de impedimento para que se negue a opção do constituinte originário de assegurar ao Tribunal de Contas e ao Ministério Público o regime jurídico próprio de um Poder.

Para Tavares:

Há funções de Estado e há funções dos diversos órgãos e agentes dele, mas que não se confundem, pois uma coisa são as funções do Estado e outra bastante diversa são as funções que deve desempenhar determinado órgão de Estado. As funções do Estado, que interessam mais de perto aqui, pode-se dizer, são aquelas atreladas aos órgãos da soberania nacional. Os “órgãos de soberania” são os órgãos caracterizados por receberem diretamente da norma Constitucional, o seu status, a sua conformação, competência, composição, numa palavra, sua definição. São estes os órgãos que podem conceber-se como titulares legitimamente exercentes de funções estatais. E é na Constituição que se encontra o grau de interdependência e colaboração entre os diferentes órgãos existentes. (TAVARES, 1999, p. 29)

Essa é a conclusão de Mello, que entende que:

[...] como o Texto Maior desdenhou designá-lo como Poder, é inútil ou improfícuo perguntarmo-

nos se seria ou não um Poder. Basta-nos uma conclusão, a meu ver irrefutável: o Tribunal de Contas, em nosso sistema, é um conjunto orgânico perfeitamente autônomo. (MELLO, 1984, p. 136- 137)

É também o entendimento de Britto (2005, p. 63), para quem o Tribunal de Contas não é órgão do Poder Legislativo e que quando a CRFB/88 diz que o Congresso Nacional exercerá o controle externo “com o auxílio do Tribunal de Contas da União” está a falar em auxílio do mesmo modo como fala do Ministério Público perante o Poder Judiciário. Há nesses casos, segundo o ministro aposentado do STF, uma só função com dois diferentes órgãos: a função jurisdicional, com a obrigatória participação do Poder Judiciário e Ministério Público, e a função controle externo, com a necessária intervenção do Parlamento e do Tribunal de Contas.

A atuação dos Tribunais de Contas se dá a latere do Parlamento, ou seja, ao lado, e não dentro, dele, inclusive exercendo atividades que “nascem e morrem do lado de fora das Casas Legislativas”, sem qualquer participação destas últimas. (BRITTO, 2005, p. 63-65)

Na mesma linha é o posicionamento de Maranhão (1990, p. 102), para quem a expressão “órgão auxiliar” deve ser compreendida como de cooperação funcional, na importante competência fiscalizadora do Poder Legislativo.

O Tribunal de Contas é um órgão independente em relação aos três Poderes, mas que os auxilia no desempenho de suas atividades de governo ou em suas específicas atribuições constitucionais, sem subordinação hierárquica ou administrativa a quaisquer deles. A expressão “órgão auxiliar do Poder Legislativo” deve ser interpretada como de cooperação funcional, na importante missão fiscalizadora desse Poder. (MARANHÃO, 1990, p. 101-102)

Portanto, o Tribunal de Contas se situa entre os Poderes, e não em algum deles. A Constituição italiana, talvez por essa razão, tenha qualificado-o como órgão auxiliar da República, e não de algum dos seus Poderes. Da mesma forma, a Constituição brasileira de 1934, que o definiu como órgão de cooperação nas atividades governamentais. (MARANHÃO, 1990, p. 102)

Pois é essa função de controle externo que não foi sistematizada adequadamente pelo Constituinte de 1988, inserindo as disposições relativas a ela dentro do capítulo (I, do Título IV, da Organização dos Poderes) destinado ao Poder Legislativo, e não prevendo expressamente

o Poder de Controle como um elemento orgânico do Estado, deixando, com isso, de destinar a ele um capítulo específico dentro do mencionado título.

Pode parecer que se trata apenas de um problema de sistematização. Mas essa questão não pode ser classificada como um pormenor. Até mesmo porque, muito da confusão e da má compreensão que se faz acerca dos Tribunais de Contas decorre do posicionamento equivocado na nossa Constituição de 1988, a qual deixou passar uma oportunidade histórica de quebrar os grilhões da clássica tripartição de poderes.

Mas os constituintes não pecaram apenas na sistematização. Falharam na própria redação dos dispositivos constitucionais que tratam do assunto, em especial, o caput dos artigos 70 e 71.

No primeiro, os Tribunais de Contas são solenemente ignorados, quando se afirma que o controle externo será exercido pelo Congresso Nacional. No segundo, ao prever que o controle externo, a cargo do Parlamento, será exercido com auxílio do Tribunal de Contas. Isso porque, mais adiante, os próprios incisos do artigo 71 terminam por contrariar tanto a omissão quanto a ideia de auxiliar trazidas pelos dispositivos mencionados, ao prever atribuições às Cortes de Contas que não contam com participação alguma do Parlamento.41

Na verdade, o que deveria constar de maneira mais explícita no texto da Constituição é que o controle externo é exercido pelo Congresso Nacional e pelos Tribunais de Contas. Ao primeiro compete o controle político, enquanto que ao segundo cabe o controle técnico (não apenas jurídico, mas também administrativo, econômico, contábil e operacional), evidenciando a segregação apontada anteriormente.

Até mesmo porque entender o titular da função de controle apenas como o Parlamento implica reduzir essa atividade apenas ao aspecto político do seu objeto, quando ela engloba também o enfoque técnico, o qual cabe às Cortes de Contas.

O Parlamento como titular absoluto do controle encontra raízes históricas no fato de que os seus membros são representantes do povo, a quem, em última análise, devem ser prestadas contas dos recursos públicos empregados. No entanto, tal enfoque não se justifica mais nos dias de hoje, tornando-se anacrônica a atribuição da titularidade exclusiva do controle nas mãos dos parlamentares, não apenas em face

41 Essas impropriedades são repetidas na redação do artigo 31, caput, e § 1º,

da perda de condições técnicas e de tempo das casas parlamentares anteriormente referidas, mas também pelo fato de a transparência e o controle social ganharem cada vez mais força na sociedade atual.42

Ao Poder Legislativo continua cabendo o controle político, pelo fato de ser este o legítimo representante da vontade popular. Mas ao lado desse controle, existem ainda o controle técnico, exercido pelos Tribunais de Contas43, e o controle social, dos atos da administração

pública, os quais não podem ser relegados a um plano inferior ou de subalternidade.

A importância da localização sistemática do órgão e, ainda, o seu reconhecimento expresso como um poder soberano e independente é fundamental para o livre exercício de uma atividade fim, principalmente se for levado em consideração que essa tarefa de controle é realizada sobre todos os demais poderes.

E essa necessidade se faz mais premente quando se tem em mente a evolução do tipo de controle da administração pública, que não é apenas de legalidade, mas, sim, de conformação com outros princípios, tão ou mais importantes, como os da moralidade, da probidade, da eficiência e da eficácia.

A mudança do Estado da primazia da lei para a primazia dos princípios impõe o adequado posicionamento dos Tribunais de Contas como uma função soberana de controle, a fim de resguardar a sua competência.

Mas mais importante do que a questão do posicionamento constitucional é, sem dúvida, a atribuição de competência, bem como assegurar as garantias de autonomia para o livre exercício de suas atribuições. E isso foi feito pela CRFB/88, a despeito de ter pecado na inserção constitucional dessas instituições dentro da parte reservada ao Poder Legislativo.

42 A edição da Lei de Acesso à Informação Pública, n. 12.527, de 18 de

novembro de 2011 (BRASIL, 2011), deu uma contribuição significativa para a deflagração de um verdadeiro choque de transparência no setor público e os benefícios propiciados por esse salto de accountability vertical já começam a ser colhidos pela sociedade.

43 E também pelo Judiciário, com o auxílio do Ministério Público, que fiscaliza

a administração pública por meio de uma relação accountability horizontal, baseada no parâmetro legal (accountability legal). (ROBL FILHO, 2013, p. 50)

3.2.1 As competências constitucionais e a função dos Tribunais de Contas

Para Britto (2005, p. 67), função e competência são conceitos distintos. Enquanto que a função é apenas uma, no caso a de controle externo, tudo o mais se traduz em competências, que são múltiplas. Primeiramente, vem a função, que é a própria justificativa imediata de um órgão. É a sua atividade fim, típica, e, portanto, o que o movimenta. Depois, vêm as competências que são poderes instrumentais para aquela função. São mecanismos para se atingir uma determinada finalidade. Não obstante esse posicionamento, é importante registrar que diversos doutrinadores tratam essas competências como funções dos Tribunais de Contas.44

Dessa forma, as competências dos Tribunais de Contas brasileiros podem ser extraídas da CRFB/1988, mais especificamente no seu artigo 71 e na parte final do artigo 73, a saber: judicante, fiscalizadora, opinativa, consultiva, normativa, informativa, sancionadora, corretiva, auto-organizativa, entre outras.

Importante destacar, ainda, o teor da Súmula n. 347 do STF, que tem a seguinte dicção: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”. (STF, 1963)