• Nenhum resultado encontrado

nem falar de um neoconstitucionalismo, mas, sim, de vários

2.2 NITI E NYAYA, DUAS CONCEPÇÕES DE JUSTIÇA

Inspirado em dois termos do sânscrito clássico, niti e nyaya, Sen (2011, p. 50) sustenta duas visões distintas de justiça. Uma focada em arranjos institucionais ideais e a outra, em realizações concretas. Muito embora ambas tragam consigo o significado de justiça, a palavra niti tem como utilização mais corrente “a adequação de um arranjo institucional e a correção de um comportamento”, enquanto que nyaya reporta a uma noção mais ampla de justiça realizada, contrastando com a primeira ideia.

A partir dessa visão, Sen (2011, p. 50) defende que “os papéis das instituições, regras e organizações, importantes como são, têm de ser avaliados da perspectiva mais ampla e inclusiva de nyaya, que está inevitavelmente ligada ao mundo que de fato emerge, e não apenas às instituições ou regras que por acaso temos”. Ou seja, não apenas a partir de uma visão de justiça ideal, representada pela ideia de niti.

E ilustra da seguinte maneira:

Considerando uma aplicação específica, os antigos teóricos do direito indiano falavam de forma depreciativa do que chamavam

matsyanyaya, “a justiça do mundo dos peixes”, na

qual um peixe grande pode livremente devorar um peixe pequeno. Somos alertados de que evitar a

matsyanyaya deve ser uma parte essencial da

justiça, e é crucial nos assegurarmos de que não será permitido à “justiça dos peixes” invadir o mundo dos seres humanos. O reconhecimento central aqui é que a realização da justiça no sentido de nyaya não é apenas uma questão de julgar as instituições e regras, mas de julgar as próprias sociedades. Não importa quão corretas as organizações estabelecidas possam ser, se um peixe grande ainda puder devorar um pequeno

sempre que queira, então isso é necessariamente uma evidente violação da justiça humana como

nyaya. (SEN, 2011, p. 50-51, grifo no original)

A essas noções o autor acrescenta a ideia de uma argumentação racional sobre justiça, abordagem essa a que denomina de institucionalismo transcendental,7 que foca na identificação das

instituições ideais, tendo duas características distintas. (SEN, 2011, p. 36)

A primeira reside em centrar suas atenções na justiça perfeita, ao invés de focar nas comparações relativas de justiça e injustiça. Dessa forma, termina-se por buscar a identificação da natureza do “justo”, quando se deveria identificar algum critério que ajudasse a concluir que uma alternativa é “menos injusta” que outra. (SEN, 2011, p. 36)

A segunda característica é a concentração primária em arranjos perfeitos ou ideais, tanto de comportamento como de instituições, sem focar diretamente no mundo real, quando é sabido que a natureza da sociedade que resulta de “determinado conjunto de instituições depende necessariamente também de características não institucionais, tais como os comportamentos reais das pessoas e suas interações sociais”. (SEN, 2011, p. 36)

E conclui o filósofo indiano no sentido de que claramente “existe um contraste radical entre uma concepção de justiça focada em arranjos e uma concepção focada em realizações: esta necessita, por exemplo, concentrar-se no comportamento real das pessoas, em vez de supor que todas sigam o comportamento ideal”.8 (SEN, 2011, p. 37)

A preocupação com o estabelecimento de instituições justas não é capaz de garantir a justiça. Pelo contrário, representa um obstáculo à remoção das injustiças, por concentrar-se nas utopias conceituais da justiça perfeita. Por outro lado, a comparação focada em realizações

7 Tal abordagem foi iniciada por Thomas Hobbes no século XVII, sendo

posteriormente seguida por importantes pensadores, cada um ao seu modo, como John Locke, Jean-Jaques Rousseau, Immanuel Kant e John Rawls. (SEN, 2011, p. 36-37)

8 Variadas versões desse pensamento voltado para as realizações sociais podem

ser encontradas nas obras de Adam Smith, Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx e John Stuart Mill, dentre outros pensadores. (SEN, 2011, p. 37)

permite uma análise racional das assimetrias produtoras de injustiça na vida das pessoas e na sociedade.

Ao invés de tratar as instituições como manifestações de justiça em si, o que veicula uma ideia institucionalmente fundamentalista, é necessário pensar um modelo de instituição que promova a justiça. (SEN, 2011, p. 112)

A partir desses parâmetros, deve-se perquirir quais modificações na forma de atuação, tanto material como processual, das Cortes de Contas, que, longe das discussões levadas a efeito no âmbito do institucionalismo transcendental dominante, não se preocupe em discutir um modelo ideal ou perfeito de instituição, mas que, focando em realizações sociais, identifique e procure remover as injustiças encontradas no exercício do controle externo da administração pública e, com isso, consiga fazer com que ela promova a justiça financeira, dando concretude ao direito fundamental à boa administração.

O que se sustenta no presente texto é uma concepção de Tribunal que, para muito além do exercício do controle tradicional das contas públicas, atue como fomentador da boa governança na administração pública brasileira, combatendo, além das próprias mazelas do controle, as injustiças financeiras perpetradas pelo Poder Público nas duas frentes em que atua, ou seja, tanto na arrecadação pública quanto no gasto.

E o comprometimento da atuação do Poder Público com o princípio da justiça financeira posiciona as Cortes de Contas, órgãos responsáveis pelo controle externo técnico da administração pública, como promotores desse princípio constitucional, cuja concretização depende também de um controle eficiente e eficaz por parte delas, ou seja, de um bom controle público.

Enfim, é preciso pensar a instituição Tribunal de Contas como uma forma efetiva de realizar conquistas sociais desejáveis, aceitáveis ou excelentes. No entanto, qual a racionalidade que deve pautar essa mudança na maneira de atuar por parte dos Tribunais de Contas para que se atinjam esses objetivos?

2.3 A INTERDISCIPLINARIDADE NA ATUAÇÃO DOS