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Capítulo 1 – Cultura política e cultura política no Brasil

1.4. Interpretações do Brasil pós-64

Contrapondo-se à cultura política orientadora das ações práticas da Era Vargas (do positivismo gaúcho aos pensadores autoritários do período entre os anos 20 e os anos 40) e à cultura política de origem e inspiração “carioca” do nacional- desenvolvimentismo (incluindo visões marxistas ortodoxas ou “vulgares” do pré-64) tem-se, como já vimos esquematicamente, no pós-64, segundo Bresser Pereira, a interpretação autoritário-modernizante do regime militar (como a visão de mundo dos que ocupavam o poder) e as interpretações marxistas de origem principalmente “paulista” (como visões críticas ao passado populista e ao presente autoritário).

A “liquidação”13

da interpretação nacional-burguesa parecia ter sido automática com a implantação da ditadura de 1964. A idéia de uma “aliança política da burguesia com o proletariado sob a égide da tecnoburocracia estatal, contra a burguesia agrário- mercantil e o imperialismo” (Bresser Pereira, 1982: 276) perdeu completamente o sentido, na medida em que os setores burgueses ou dominantes se uniram internamente e se aliaram às forças “imperialistas” externamente.

“Esta nova visão hegemônica [das classes burguesas] está baseada em duas idéias-chave – desenvolvimento econômico e segurança nacional. (...) é o capital monopolista, tanto industrial quanto mercantil e bancário, que se torna hegemônico em detrimento do capital competitivo. (...) não resta alternativa à tecnoburocracia estatal, para que ela possa realizar o seu projeto desenvolvimentista de Brasil-potência, senão aliar-se à burguesia monopolista e às multinacionais” (Bresser Pereira, 1982: 276-7).

O Estado é também um produtor de bens e serviços, além de regulador.

“O projeto industrializante, modernizador, burguês e tecnoburocrático da interpretação nacional-burguesa reaparece na interpretação autoritário- modernizadora. O que desaparece é o discurso nacionalista e o discurso popular ou populista. (...) O discurso popular torna-se desnecessário, já que os trabalhadores foram excluídos do pacto social” (Bresser Pereira, 1982: 277).

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Liquidação no sentido de que perdeu suas bases políticas, mas deixando como herança a visão geral de que é necessário um projeto nacional de desenvolvimento para o Brasil capitaneado pelo Estado. Essa é a herança espectral deixada pelo nacional-desenvolvimentismo, que retorna sempre aos debates na falta de uma formulação mais sólida e convincente no último meio século – seja na esquerda, na direita ou em alguma posição entre as duas.

58 Ganhou a Escola Superior de Guerra e sua ideologia de segurança nacional subordinada ao predomínio dos EUA durante a Guerra Fria. Perderam o PCB, os estudiosos da CEPAL e os intelectuais do ISEB, além, é lógico, de todas as forças políticas “populistas” do pré-64. As bases dessa interpretação são anteriores a 1964, com a obra Aspectos Geopolíticos do Brasil (1952) de Golbery do Couto e Silva e os estudos de “Roberto de Oliveira Campos que, já em 1953, na Escola Superior de Guerra, buscava „a área possível de conciliação entre uma ideologia de desenvolvimento e uma ideologia de segurança‟” (Bresser Pereira, 1982: 277). Roberto Campos, ao contrário do que se pensa, defendia o planejamento e a tecnoburocracia como agente do planejamento. “O planejamento é justificado em função da „debilidade da iniciativa privada‟, da „faculdade telescópica‟ ou visão de longo prazo que o Estado possui e a burguesia não, e da capacidade de „concentração de recursos‟ do Estado” (Bresser Pereira, 1982: 278). Roberto Campos, que chegou a escrever um artigo intitulado “Em Defesa dos Tecnocratas”, aliava teses monetaristas neoclássicas com a idéia de planejamento tecnocrático – “e essa será uma característica econômica essencial da interpretação autoritário-modernizante” (Bresser Pereira, 1982: 278).

As interpretações críticas do pós-64, de uma perspectiva completamente oposta a essa, nos remetem a debates anteriores envolvendo pensadores como Caio Prado Jr. e Sérgio Buarque de Holanda, “inventores” do Brasil ainda nos anos 30 e 40 (Cardoso, 1993), bem como a cientistas sociais mais rigorosamente acadêmicos capitaneados originalmente por Florestan Fernandes desde os anos 50 – inclusive e principalmente Fernando Henrique Cardoso.

O grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre é visto, num primeiro momento, como o principal “inimigo” acadêmico dos críticos sediados no centro-sul do país (tendo as instituições acadêmicas paulistas como “guias”), que, de forma não muito diferente, igualmente atacavam o ISEB e seus quadros intelectuais – a polêmica envolvendo Guerreiro Ramos e Florestan Fernandes, ainda nos anos 50, é expressão dessa animosidade e das diferentes prioridades acadêmicas e políticas das tradições diferentes que conviviam à época.

Posteriormente, com o advento da ditadura militar, modifica-se o foco central e ampliam-se os adversários: a própria ditadura, as esquerdas tradicionais ou ortodoxas, as correntes de ultra-esquerda e, sem dúvida alguma, os populistas de todas as cores e vieses defensores da “herança maldita” do getulismo. De uns e outros, ou seja, de quase todas as correntes políticas e culturais da nação os críticos “paulistas” do pós-64

59 queriam distância e criticavam implacavelmente as posições políticas e principalmente as posições analíticas.

Sem o saber naquele momento, tais críticos estavam, a partir da intensa e dinâmica industrialização do país, particularmente centrada em São Paulo, e das conseqüências políticas e culturais deste fato decisivo, semeando as visões concorrentes de mundo do futuro brasileiro. De um marxismo “esterilmente acadêmico” (para usar as palavras equívocas de Wanderley Guilherme dos Santos) e politicamente tímido (obrigado a recuar para o espaço restrito do CEBRAP e de outros institutos assemelhados nos anos mais duros da ditadura) emergirão as duas forças políticas que monopolizarão o centro do poder dos anos 90 e seguintes: o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Interessante desdobramento! E devemos registrar muito enfaticamente que não surgiram, como pensam alguns, de manobras meramente pragmáticas ou de algum voluntarismo eleitoral de ocasião nos anos 1980. É exatamente o oposto: projetos políticos sólidos articulados a partir de profundas reflexões acadêmicas sobre o país que resultaram em “visões de mundo” ou “culturas políticas” concorrentes durante nossa Transição Democrática longa, difícil, tortuosa e, por isso mesmo, responsável por enganos interpretativos de muitos de nossos analistas e especialistas.

Retornemos, porém, às interpretações do Brasil segundo Bresser Pereira, pois assim podemos entender com mais riqueza de detalhes a complexidade político- intelectual do pós-64 e a posição intelectual decisiva de Fernando Henrique Cardoso nesse quadro.

Segundo o autor, as visões marxistas ou de esquerda dividem-se em três interpretações distintas, como já vimos e vamos repetir: (a) interpretação funcional- capitalista; (b) interpretação da superexploração imperialista; e (c) interpretação da nova dependência. Vejamos cada uma delas, particularmente a última.

A interpretação funcional-capitalista dominou as esquerdas na segunda metade dos anos 60. Para ela, o Brasil sempre foi capitalista ou o eventual pré- capitalismo foi funcional para a acumulação. O Golpe de 64 foi culpa dos que interpretavam erradamente o Brasil (ISEB, PCB, etc) e daí tiraram conclusões políticas equivocadas sobre as alianças políticas que deveriam ser estabelecidas.

“A interpretação funcional-capitalista será formulada de maneira extraordinariamente brilhante por Caio Prado Jr. que, em 1966, publica um livro

60 fundamental para a compreensão de todo o pensamento brasileiro posterior: A Revolução Brasileira (Bresser Pereira, 1982: 279). Entre teses equivocadas (afirma uma continuidade capitalista do Brasil ao longo da sua história, nega divisão entre os setores da burguesia, afirma a origem da burguesia industrial na burguesia cafeeira) e pioneiras (enxerga o caráter industrializante do novo capitalismo, percebe o capitalismo burocrático e denuncia a permanente exploração dos trabalhadores rurais e camponeses), Caio Prado Jr, segundo Bresser Pereira, fez uma análise, ao mesmo tempo, corajosa e ressentida.

Outro trabalho decisivo, segundo Bresser Pereira, foi o artigo clássico de Rodolfo Stavenhagen, “Sete Teses Equivocadas Sobre a América Latina” (1965).

“As teses equivocadas são (1) dualismo, (2) desenvolvimento via difusão do industrialismo para áreas tradicionais, (3) as zonas tradicionais são um obstáculo ao capitalismo progressista, (4) a burguesia nacional tem interesse em romper o domínio da oligarquia latifundiária, (5) o desenvolvimento depende de uma classe média nacionalista e progressista, (6) a integração nacional da América Latina depende da miscigenação e (7) há uma identidade de interesses entre camponeses e operários” (Bresser Pereira, 1982: 280).

Uma série de estudiosos importantes é dessa visão, entre eles, segundo Bresser Pereira, Fernando Novais (que afirmou o caráter capitalista do Brasil colonial na linha de Caio Prado Jr.) e João Manoel Cardoso de Mello (que amplia a análise de Novais até a atualidade com o equívoco de não ver contradições entre os setores burgueses, embora tenha várias contribuições em outros aspectos, tal como a periodização da economia brasileira14). Também significativas são as contribuições de Boris Fausto (análise revisada da Revolução de 30 negando divergências burguesas), Francisco de Oliveira (criticando a razão dualista, ou seja, como Mello, uma crítica a Celso Furtado, mas contribuindo com várias sugestões instigantes para a crítica marxista e de esquerda no Brasil) e Luciano Martins (reinterpretando a Revolução de 30 como uma luta de classes preventiva e uma mera etapa da modernização conservadora – seguindo a teoria de Barrington Moore Jr.) (Bresser Pereira, 1982: 280-3).

A interpretação funcional-capitalista é uma contribuição da esquerda marxista não-ortodoxa brasileira. Contribuição limitada, segundo Bresser Pereira, pelo seu

14 “Mercantil-Escravista Colonial até 1808; Mercantil-Escravista Nacional até 1888; Exportadora-

Capitalista-Retardatária a partir de então. Esta fase por sua vez divide-se em: nascimento e consolidação do capital industrial (1808-1933); industrialização restringida (1933-1956); industrialização pesada (1956...)” (Bresser Pereira, 1982: 281).

61 caráter excessivamente crítico. Com o tempo, parte dos seus autores migra para a visão hegemônica na esquerda da “interpretação da nova dependência” (Bresser Pereira, 1982: 283).

A interpretação da superexploração imperialista, segundo Bresser Pereira, é igualmente ressentida da derrota de 1964, mas muito mais radical. Busca construir uma nova visão de esquerda para a América Latina a partir dos conceitos de imperialismo (Lênin) e perda de dinamismo do capitalismo central (Trotsky). O imperialismo é o grande culpado do subdesenvolvimento. A burguesia está unida e aliada ao imperialismo. Não há nacionalismo amortecendo luta de classes nesta visão. Os países imperialistas superexploram os países subdesenvolvidos que ficam sem meios para se desenvolver. E faz isto através da violência de regimes autoritários e fascistas. As alternativas são: socialismo ou fascismo. A base principal dessa visão é a obra de Andrew Gunder-Frank que, em artigo clássico, “Desenvolvimento do Subdesenvolvimento” (1966), critica o dualismo, a idéia de que a América Latina tenha tido sistemas pré-capitalistas, etc. Segundo ele, as zonas mais atrasadas do continente são justamente as que tiveram maior expansão exportadora mercantil.

São integrantes dessa visão também outros autores estrangeiros e brasileiros nem sempre devidamente valorizados em questões de grande relevância devido talvez ao que poderíamos denominar de afirmações contrariadas pelos fatos que foram se sucedendo, como é o caso, por exemplo, de Ruy Mauro Marini (teoria da superexploração dos países periféricos15, teoria do subimperialismo regional e crítica ao reformismo do nacional-desenvolvimentismo) e de Teotônio dos Santos (formas de dependência e teoria do desenvolvimento desigual e combinado16). Apesar da análise de Santos

15 É interessante como funcionam as teorias em relação ao imaginário popular: uma ampla maioria da

população latino-americana e brasileira, se realizada pesquisa de opinião cientificamente, provavelmente afirmará que existe mesmo esta superexploração imperialista, o que não deixa de ser parcialmente verdade. Seus teóricos, no entanto, estão ultrapassados e suas idéias anacrônicas, segundo muitos analistas, embora a questão continue polêmica (ver, por exemplo, Arrighi, 1996, 1998 e 2001), mas a herança da denúncia ficou gravada na imaginação da população, para o bem e para o mal.

16 Teotônio dos Santos, segundo Bresser Pereira, vê três tipos de dependência historicamente: colonial ou

comercial-exportadora, finaceiro-industrial do final do século XIX e tecnológico-industrial do pós-2ª Grande Guerra. Esta última caracteriza-se pelo desenvolvimento desigual entre as nações imperialistas e periféricas, que funcionam de forma combinada, deixando aos países dependentes apenas as alternativas do fascismo (que impõe a superexploração) ou do socialismo (que pode libertar os países de tal sujeição) (Bresser Pereira, 1982: 285-6). Conclusão que lembra, ironicamente, a famosa frase final da obra de Fernando Henrique Cardoso sobre o empresariado industrial: “No limite a pergunta será então, subcapitalismo ou socialismo?” (Cardoso, 1964: 187).

62 antecipar a questão tecnológica das multinacionais, não percebe as mudanças na situação econômica brasileira – gerando dependência com desenvolvimento (Bresser Pereira, 1982: 284-6).

A interpretação que mais nos interessa é a que Bresser Pereira denomina de

“nova dependência” e que tem em Fernando Henrique Cardoso o seu principal

formulador. Esta interpretação compartilha com as duas anteriores as críticas à interpretação nacional-burguesa, embora de forma menos radical, separando erros analíticos de erros políticos. São analisados os “fatos novos”17

que, na política, durante os anos JK, levam à superação das diferenças entre a burguesia agrário-mercantil e a burguesia industrial, inviabilizando a posição nacionalista desta última; de outro lado, liquida o pacto populista, aliança dos trabalhadores com a burguesia, que os intérpretes da visão nacional-burguesa propunham.

A maior contribuição vem da obra de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto: Dependência e Desenvolvimento na América Latina (1967). A partir daí construiu-se a “teoria da dependência”, criticando as teorias da modernização e de etapas do desenvolvimento, por um lado, e a teoria da superexploração imperialista, por outro lado. Defende a relação entre os determinantes externos (imperialismo) e internos (estrutura de classes) para definir a dependência que, com a entrada em massa de capitais externos na indústria, acaba gerando desenvolvimento (ao contrário do que pensavam os intelectuais do pré-64, que identificavam o imperialismo com estagnação). A nova dependência caracteriza-se ainda pela associação da burguesia local com as multinacionais e com as tecnoburocracias civil e militar (Bresser Pereira, 1982: 288-9).

Celso Furtado, em obra de 1969, Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina, contribui no sentido de definir o novo modelo econômico, embora não aponte claramente o fim da estagnação. Carlos Lessa escreve seu 15 Anos de Política Econômica em meados dos anos 60. Desenvolvimento e Crise no Brasil de Bresser Pereira é de 1968 e Maria da Conceição Tavares escreve Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro em 1972. Todos estes autores contribuíram

17 Seis fatos novos, na visão de Bresser Pereira, em artigo de 1963: (1) consolidação da indústria; (2)

decadência da agricultura do café e impossibilidade de transferência de renda do setor exportador para a indústria; (3) entrada em massa do capital estrangeiro; (4) aprovação em 1958 da Lei de Tarifas; (5) revigoramento da atividade sindical nos anos 50; e (6) Revolução de Cuba em 1959, que apavorou a burguesia local. Os dois fatos iniciais liquidaram as divisões entre a burguesia brasileira. Os dois seguintes liquidaram o nacionalismo. E os dois últimos levaram à radicalização política que resultará no Golpe de 64 (Bresser Pereira, 1982: 287-8).

63 decisivamente para a interpretação da nova dependência. Em síntese estes trabalhos apontam para o novo ciclo de desenvolvimento com concentração de renda da classe média para cima, ou seja, um modelo econômico baseado na produção de bens duráveis de consumo – particularmente automóveis (Bresser Pereira, 1982: 289-90) – concentrados nos setores médios da pirâmide social e um consumo restrito de bens de alto luxo para a ínfima minoria do ápice da estrutura de estratificação social do país.

O artigo “Além da Estagnação” escrito por Maria da Conceição Tavares e José

Serra [grifo nosso] em 1971 e o livro de Celso Furtado Análise do Modelo Brasileiro

de 1972 são as obras decisivas para demonstrar um novo dualismo – empresas multinacionais no setor moderno e setores tradicionais no setor substitutivo de importações – e um processo de reconcentração de renda possibilitando o mercado consumidor para os novos produtos. É uma nova estratégia de desenvolvimento em que “Estado, empresas multinacionais e empresas locais ocupam áreas complementares (ao invés de competitivas) no aparelho produtivo” (Bresser Pereira, 1982: 290-1). Depois, temos as contribuições de um número enorme de estudiosos18 tanto sobre a crise do modelo econômico (iniciada ainda nos anos 70) e os seus desdobramentos na área militar, na área social, na área cultural e principalmente na área política.

Bresser Pereira discute ainda a interpretação do projeto de hegemonia do

capital industrial – uma interpretação, na época, início dos anos 80, apenas sugerida

em alguns trabalhos relevantes de autores diversos (Renato Boschi, Eli Diniz, Luciano Martins, o próprio Bresser Pereira, etc), questão já discutida, de forma seminal, ainda nos anos 60, por Fernando Henrique Cardoso em seu Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico (1964).

Contudo, ainda nos interessa registrar nesta seção, seguindo o autor, a posição

de Florestan Fernandes, em seu clássico A Revolução Burguesa (1975) – que

atravessa as três visões marxistas anteriores sem se fixar exatamente em nenhuma delas. Suas análises sobre o conservadorismo da classe burguesa na Revolução de 1964 e dos ciclos revolucionários burgueses (iniciados em 1808 e 1888) nos levariam a situá-lo, segundo Bresser Pereira, na interpretação funcional-capitalista. Sua análise de que a

18 Bresser Pereira cita dezenas de estudiosos e seus trabalhos, mas o que devemos registrar é que as obras

de Fernando Henrique Cardoso constituem o centro sobre o qual gira a maioria dos debates principais no campo político, como veremos nos capítulos seguintes – dedicados ao seu pensamento.

64 revolução burguesa no Brasil não segue o padrão clássico e sim uma trajetória singular e dependente nos levaria a situá-lo como crítico tanto da interpretação funcional- capitalista quanto da interpretação da superexploração imperialista – da qual se aproxima por outra razão: a consideração de que o autoritarismo é intrínseco às burguesias dependentes como a brasileira (Bresser Pereira, 1982: 286-7).

Florestan Fernandes é um dos principais fundadores da moderna sociologia paulista e fonte inspiradora de quase todos os estudiosos mais importantes das correntes críticas do pós-64, inclusive Fernando Henrique Cardoso, e, por sua vez, inspirou-se muito em Caio Prado Jr. e sua visão de longa duração sobre o Brasil. Defendeu com garra e até certo radicalismo a idéia de que a sociologia paulista – ao contrário de seus antecessores da primeira metade do século XX e dos seus contemporâneos cariocas dos anos 50 mais ensaístas do que acadêmicos – representava uma etapa realmente necessária e institucionalmente relevante das ciências sociais brasileiras. Criticava os ensaístas por não terem uma base sólida em pesquisas empíricas e, por essa razão, muitas vezes se equivocarem nas análises e nas posições políticas. Bresser Pereira assinala, porém,

“que os trabalhos mais significativos publicados pela escola científica [grifo nosso] de São Paulo foram ensaios [grifo nosso], como eram ensaios as grandes contribuições do ISEB [e as anteriores]. No caso de São Paulo, refiro-me a Dependência e Desenvolvimento na América Latina de Cardoso e Faletto (1969); „Economia Brasileira: Crítica à Razão Dualista‟ de Francisco de Oliveira (1972); e A Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes (1975)” (Bresser Pereira, 2004: 78).

É importante o registro dessa flagrante contradição, pois se os erros analíticos e políticos são cometidos por falta de base empírica em parte dos ensaios interpretativos, como se diz algo pejorativamente sobre o ensaísmo em geral, tais erros estão disseminados nas ciências sociais brasileira de todos os tempos não apenas nos autores do pré-64.

Florestan, contudo, está correto em propugnar rigor e melhores pesquisas empíricas para fazer avançar nossas ciências sociais, mas tal ênfase não pode restringir a liberdade criativa dos trabalhos. Boa parte da produção acadêmica de Fernando Henrique Cardoso sobre a qual nos debruçaremos nos capítulos seguintes é a melhor prova disso, pois alterna trabalhos de sólida base empírica com ensaios criativos – sendo que estes mais do que aqueles lhe deram fama mundial e definiram sua “fortuna” acadêmica e política.

65 O descaminho analítico de muitas obras com um presumido rigor científico por terem dados quantitativos em profusão são a face quase mistificadora desse problema crucial nas ciências sociais em geral e nas ciências sociais brasileiras em particular (ver discussão sobre a metodologia de FHC no capítulo seguinte).

As visões de mundo, as crenças políticas e as culturas políticas em geral são um tremendo desafio analítico. As pesquisas quantitativas ajudam na sua explicação, mas geralmente pecam pela insuficiência das definições qualitativas do que se investiga. Pior: costumam ser de uma superficialidade errática nas relações macrossociológicas e, por isso, apenas óbvias – heuristicamente de caráter duvidoso – nas relações microssociológicas.

Nesse contexto, sem perder de vista a necessidade de uma base empírica sólida, como entender as relações de Fernando Henrique com a cultura política brasileira e como explicar as visões de mundo que irão compor a experiência partidária do PSDB? O próprio Fernando Henrique nos dá pistas sobre um caminho possível de investigação na citação que usamos como epígrafe dessa primeira parte da tese19.

19Vamos repetir para facilitar a leitura. “A origem de classe ou a posição política ancestral, por si sós, são

de pouca valia para explicar o comportamento político efetivo. Os valores assumidos, a evolução da cultura política, a configuração do jogo do poder, a posição dos atores polares desempenham papel de maior relevância na definição dos rumos pessoais” (Cardoso, 2006: 50).

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