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Capítulo 2 – A construção intelectual de uma visão de mundo

2.2. Seminário Marx e idéias no lugar

A obra de Fernando Henrique Cardoso é vasta e estende-se por várias décadas – desde as primeiras publicações, ainda nos anos 50 do século passado, até seus discursos, artigos e entrevistas no exercício da presidência (1995-2002). São dezenas de livros e artigos para fins acadêmicos distintos, bem como outras centenas ou milhares de artigos, entrevistas e discursos para fins políticos bem determinados. Há, nesse conjunto, porém, linhas de análise e até uma visão de mundo bastante coerente, desqualificando a história, real ou não, de que Fernando Henrique Cardoso “esqueceu o que escreveu” – principalmente depois que foi eleito presidente da república.

Ele não “esqueceu” nada do que escreveu, mas “adaptou” parte das suas opiniões para, com fins acadêmicos ou políticos específicos, dar a impressão de ter sido sempre alinhado com as posições mais “politicamente corretas” – ou, de certa forma, da moda, intelectualmente fashion, particularmente quando, nos anos 90, ocupou o centro do poder como presidente da República. Fernando Henrique Cardoso, como bom artista da academia e da política – liderança de “alguma virtù”, como se autodenomina com falsa modéstia (Cardoso, 2006) –, criou mitos sobre si mesmo na busca de adaptar suas opiniões passadas às opiniões dominantes de certos momentos críticos mais atuais. Parece má fé, mas não é. É uma operação mais do que corriqueira na academia e política contemporâneas dominadas por imagens e suas conseqüências “reflexivas” (Bagdikian, 1990; Bauman, 1999 e 2000; Giddens e Pierson, 2000; o próprio Cardoso, 2006).

Essa aparente contradição – ser coerente e torcer visões (o que o venerado Weber não apoiaria) –, no entanto, é fruto das exigências políticas requeridas de quem se formou na esquerda acadêmica, mas, pelas circunstâncias e também por vocação, entrou gradualmente na política concreta, quase sempre em posições políticas reformistas de centro e, às vezes, quando no governo, até amparado em posições conservadoras ou de direita. Faz parte também, como já vimos na breve reflexão sobre sua metodologia, de uma certa estratégia acadêmica e política. Como veremos à frente, Cardoso parece ter um certo prazer em confundir o sociólogo com o político e vice- versa, pois tal operação permitiu-lhe sempre contornar problemas e fazer prevalecer suas posições dentro dos limites e das condições dadas – plenamente coerentes com seus auto-apregoados realismo e cartesianismo.

79 De outra perspectiva, podemos dizer que é possível localizar um fio condutor em sua obra, na medida em que suas temáticas e preocupações originais foram, por assim dizer, desdobrando-se e recriando-se em outras quase sempre afins. O poder emergente das classes empresariais e sua ação política, contudo, parece ser o núcleo central das preocupações analíticas e também políticas de Fernando Henrique Cardoso. Ele é ou tornou-se uma espécie de “intelectual orgânico da burguesia”, ainda que usasse em suas análises basicamente o instrumental marxista e se declarasse socialista até os anos 80, como nos informa Bernardo Sorj (2001:115) – e ainda insista freqüentemente que continua de esquerda e progressista (Cardoso, 2006). Há nas suas obras, contudo, a opção pelas explicações e versões que são nada mais e nada menos do que uma sofisticação intelectual da defesa de interesses bem determinados de uma parte moderna da burguesia do país – aqueles setores burgueses progressistas e “lockeanos” que, de certa forma, contrapõem-se aos setores burgueses atrasados e “hegelianos” do resto do país, como expõe sua opinião meridianamente clara em Autoritarismo e Democratização (Cardoso, 1975: Capítulos V e VI), ainda que em nenhum momento afirme claramente ter aderido politicamente às suas organizações partidárias ou coisa do tipo. É uma ligação mais do tipo “espiritual” – no sentido acadêmico e não religioso. Uma convicção tão forte sobre certos assuntos estratégicos que posições anteriores vão sendo superadas como anacrônicas ou insuficientes para darem conta dos novos indicadores da realidade em dinâmica mutação.

Fernando Henrique, nessa perspectiva, é um autor, por um lado, singular – no sentido de que sua obra é uma grande referência, das maiores mesmo, das ciências sociais brasileiras da segunda metade do século vinte – e, ao mesmo tempo, por outro lado, parte integrante de um movimento intelectual mais amplo estruturado em torno da chamada sociologia de tradição mais universitária do pós-64 – uma cultura política ou macro-visão do Brasil distinta de outras culturas políticas e macro-visões anteriores, contemporâneas e posteriores –, como vimos grosso modo no capítulo anterior.

Esta questão é muito relevante, pois Fernando Henrique foi se transformando, ao longo da sua vida acadêmica, de discípulo a mestre na rígida e bastante impenetrável hierarquia universitária paulista da USP. Foi nessa época, também, entre os anos de 1958 e 1964, que ocorreu o famoso Seminário Marx – tão influente na trajetória posterior de seus participantes (Giannotti, Schwarz e vários outros). Foi esse movimento que marcou profundamente Fernando Henrique Cardoso por razões variadas – pessoais,

80 acadêmicas, políticas e, principalmente, ideológicas no sentido de visão de mundo (como estamos usando o conceito na tese).

José Arthur Giannotti, grande amigo de Cardoso desde a juventude universitária e um dos maiores intelectuais do país, escreveu em 1998 um artigo muito interessante sobre o famoso Seminário Marx com o sugestivo título de “Recepções de Marx”. Vejamos suas principais idéias sobre tal movimento acadêmico e político.

“Para que se possa avaliar melhor como Marx foi lido por esse grupo paulista – e sublinho o caráter regional e datado desse evento, pois a tradição marxista no Brasil possui várias outras fontes importantes –, convém invocar o contexto histórico em que essa leitura se deu e o projeto científico que a animou” (Giannotti, 1998: 115).

Giannotti afirma que todos os envolvidos – historiadores, economistas, filósofos, sociólogos, etc – tinham motivações científicas e políticas. Queriam construir uma visão sobre o Brasil e os seus problemas visando intervir na realidade – primeiro da própria USP e depois do país. Mas animava o grupo também uma crítica e uma separação do mestre Florestan Fernandes, que consideravam equivocado metodologicamente, por conta da sua visão tripartida combinando funcionalismo, compreensão e dialética – síntese com base nos três grandes mestres da sociologia do século 19: Durkheim, Weber e Marx.

“Se nenhum de nós aceitava essa tripartição metodológica, ao menos ela nos alertava sobre a diversidade dos processos de conhecimento e nos colocava diante do desafio de compreender de que modo qualquer reformulação da dialética, como método de explicação científica, deveria resolver melhor os problemas colocados pelos métodos concorrentes [Parsons, Lévi-Strauss, Sartre e Keynes]” (Giannotti, 1998: 116).

Queríamos era compreender o capitalismo da época e suas estruturas. Daí, por exemplo, as duas obras mais lidas produzidas pelo grupo tratarem os assuntos dessa perspectiva do geral para o particular: Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, de Fernando Novais, e Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faleto (Giannotti, 1998: 117).

Era um projeto político-científico, mas que não se furtava aos aspectos ideológicos. Era para enfrentar tanto a irracionalidade conservadora quanto o cientificismo [ortodoxo ou stalinista] da própria esquerda. Inclusive os desvios que

81 apontavam no método do próprio “mestre” Caio Prado Jr. [não sobre os conteúdos principais que os inspiravam (Cardoso, 1993)] e principalmente das esquerdas comunistas [com as quais não comungavam conteúdos ideológicos e visões centrais de mundo já desde aquela época]. “Ora, para nós, diferenciar esses dois vetores era questão de sobrevivência, pois só assim encontraríamos brecha para intervir na universidade e na própria política22, de maneira a nos permitir uma ação transformadora eficaz e desalienante. (...). No entanto, em nossos próprios mestres já percebíamos uma perigosa conivência entre ciência e ideologia” – as contradições de Florestan Fernandes e João Cruz Costa, mas não de Antônio Cândido. “Mas enquanto ele puxava o fio da formação da literatura brasileira, tentávamos abrir caminho para compreender estruturas e sistemas”. Era crítica metodológica para intervenção política posterior, mas a partir do âmbito universitário inicialmente (Giannotti, 1998: 118-9) – projeto mudado depois da cassação do grupo (como professores da USP), quando se inicia o projeto do Cebrap, o que veremos à frente.

Giannotti observa ainda que era um projeto com claras divergências com o ISEB.

“Recusávamos desde logo o projeto de construir uma ideologia nacional, por mais que reconhecêssemos sua importância como força de aglutinação política. (...). A consciência que nos interessava era a consciência de classe, mas antes da nação era preciso investigar como a própria expansão imperialista criava formas peculiares de dominação e crescimento. Não foi este o tema desenvolvido pela Teoria da Dependência? Em suma, o conhecimento deveria percorrer o caminho do mais geral ao mais particular, antes de fixar-se na análise da estrutura nacional” (Giannotti, 1998: 120-1).

Daí, também, críticas à Escola de Frankfurt e outras visões que realçavam as conseqüências e não as causas. Giannotti observa

“[que] os anos dissolveram aquela tácita unidade interna que manteve o grupo unido de 1958 a 1964. Por certo, já naquela época, Marx lido por Fernando Novais, Fernando Henrique Cardoso, Paul Singer, Octavio Ianni, Ruth Cardoso e eu mesmo, era-o de perspectivas diversas. Mas desde logo reconheci que cabia entre nós uma divisão de tarefas, eu me debruçando sobre os problemas lógicos levantados pelo marxismo, os outros fazendo ciência a partir de suas perspectivas próprias” (Giannotti, 1998:121).

22 É como já afirmamos anteriormente criticando Goto: nada foi feito confinado aos campi e nem apenas a

eles se destinava, em última análise, embora às vezes pudesse dar essa impressão por razões táticas e estratégicas.

82 Entende-se, então, que tinham uma visão geral comum e visões particulares sobre questões específicas. No caso de Fernando Henrique isso é fundamental, como já vimos no ponto anterior sobre metodologia, pois, mais do que todos os outros membros do grupo, ele teve uma experiência diversificada geográfica, política e academicamente – cargos universitários, pesquisas de campo sobre escravidão e o trabalho seminal sobre empresários formulado quando esteve na França sob orientação de Alain Touraine. Que variedade! Daí nasce talvez seu método todo particular de ligar teoria metodológica com indicadores reais, além daquilo que Goto e Pécaut apontam como uma estratégia acadêmica realmente personalíssima e sui generis – qualidades sem as quais nunca teria se tornado “príncipe da sociologia” durante uma época.

Giannotti observa, por fim, em seu artigo, falando de fetichismo e capitalismo, que

“toda obra de arte possui esse caráter, combinando verdade e fingimento, e que, dessa forma, tem semelhanças com as estruturas sociais. Não reside aí uma das fontes que alimentam o entrelaçamento das ciências com as ideologias? (...). Ora, a estrutura social inclui nela mesma a dimensão de sua prosa e de sua imaginação. Seus conceitos são pensados pelos próprios indivíduos conforme mobilizam as ilusões a que eles estão ligados, de sorte que estrutura profunda e estrutura aparente fazem parte do mesmo processo. Desse modo, o cientista que a estuda está sempre revelando e encobrindo sua realidade – revelando, na medida em que retira o entulho e reconfigura sua aparência, e encobrindo, na medida em que sua própria prática não deixa de ser perspectivada” (Giannotti, 1998: 124).

Belas e sábias palavras, que muito nos ajudam a entender a trajetória intelectual de Fernando Henrique Cardoso – e de quaisquer outros intelectuais e até mesmo de não intelectuais que se arriscam nesse mister de forma amadora (jornalistas, cronistas, comentaristas) – e a construção de sua vasta e brilhante obra de ciências sociais, assim como também a construção de uma visão de mundo perspectivada – no caso, depois de idas e vindas ao longo de três décadas, por uma visão liberal, como estamos defendendo ao longo da tese e continuaremos tentando evidenciar nessa parte da exposição com base em um inspiradíssimo ensaio de Roberto Schwarz (“Um Seminário de Marx”, 1998 e 199923), bem como com base em idéias de outros autores de forma complementar. Antes, porém, tratemos de analisar uma questão que antecede e complementa esta: o “lugar” das idéias de Fernando Henrique.

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Originalmente publicado em Novos Estudos, nº 50, foi republicado em Seqüências Brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

83 Giannotti afirma que

“Roberto Schwarz criou um instrumento poderoso para que se entenda o sentido da produção intelectual brasileira ao dar carga conceptual à expressão „idéias fora do lugar‟. (...). Não creio que nem mesmo ele venha a tomar esse conceito como chave geral para explicar o pensamento nacional como um todo, como se este estivesse na base viciado por inteiro, na medida em que toma idéias emprestadas para injetar-lhes significações diversas das originais. Posta nesta generalidade, a tese implica uma teoria realista da linguagem, como se as idéias, pelo menos algumas, fossem originariamente adequadas, sendo então desvirtuadas por um uso indevido. A adequação corresponderia a uma consciência verdadeira; à sua defasagem, uma consciência falsa. Ora, parece-me que toda boa idéia implica inadequação, pois é boa também por exprimir uma verdade que pode vir a ser. Como Roberto não é nada ingênuo, ele não compartilha dessa ideologia que está se constituindo em seu nome. O que lhe interessa sobremaneira é a forma pela qual idéias importadas adquirem novas significações ao serem praticadas de forma defasada, como sua verdade implica quebra muito peculiar entre o que se diz e o que se faz, tingindo essas duas atividades com sentidos particulares” (Giannotti, 1998: 122).

Esta citação de um dos mais diletos amigos e defensor quase incondicional do Fernando Henrique presidente analisando uma das principais idéias de outro amigo de Cardoso (mas vinculado ao PT) tem aqui o único sentido de questionar o seguinte ponto decisivo: ao longo da sua trajetória acadêmica e principalmente política as idéias de Fernando Henrique estão fora do lugar ou estão no lugar? E não é uma questão meramente retórica, pois muitos dos seus críticos (de Francisco de Oliveira a Leandro Konder, passando por um sem número de outros expressivos intelectuais do país, tais como José Luís Fiori, Maria da Conceição Tavares, etc) afirmam categoricamente que Cardoso foi da esquerda para a direita, do socialismo para o liberalismo, da social- democracia para o neoliberalismo e assim por diante – isso quando não o acusam de coisas ainda piores como “ter esquecido o que escreveu”, traição ideológica, etc. Responder de alguma forma a essa questão nos esclarece então ponto decisivo para entender não apenas a trajetória de Fernando Henrique, mas também a do próprio país que ele tanto interpretou durante o último meio século, e a do partido (PSDB) que foi criado como expressão política principalmente da visão de mundo cardosiana.

Roberto Schwarz foi questionado pelos petistas Fernando Haddad e Maria Rita Kehl, em fins de 1994, em uma entrevista para a revista Teoria e Debate, nos seguintes termos: “Quais seriam hoje [FHC eleito presidente no 1º turno] as „idéias fora do lugar‟ representadas, não na letra explícita do programa do PSDB, mas no imaginário que

84 cercou a candidatura de Fernando Henrique e também nos equívocos da candidatura do PT?” (Haddad, 1998:15). Quer dizer, a pergunta vai direto ao ponto que nos interessa.

Schwarz respondeu com clareza meridiana.

“O tema geral das „idéias fora do lugar‟, isto é, a combinação amalucada de normas prestigiosas da modernidade com relações sociais de base que discrepam muito delas, continua existindo no Brasil (e em outras partes). Como se sabe, os nossos modernizantes nem sempre têm o necessário „desconfiômetro‟ e podem ficar um pouco ridículos quando se olha o fundamento social em que eles realmente se apóiam. Um caso extremo foi o Collor, que era um personagem de Machado de Assis, pela desfaçatez incrível da fachada. Já no caso de Fernando Henrique isso não é assim, de

jeito nenhum [grifo nosso]. Ele é uma pessoa que tem consciência clara

dessa ordem de problemas. O tempo vai dizer se o clima de persuasão tranqüila e de otimismo, que em diferentes graus cercou, aliás, as duas candidaturas, corresponde aos efeitos reais da modernização” (Haddad, 1998: 15).

As expectativas otimistas de Schwarz não corresponderam exatamente à realidade, o que analisaremos em capítulos posteriores da tese sobre o exercício do poder pelos tucanos nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique. Mas a afirmação de que as idéias de Cardoso não estavam fora do lugar de jeito nenhum nos remete à questão e à resposta seguintes da entrevista. A questão: “Nós não estávamos pensando na pessoa de Fernando Henrique, mas no imaginário que cercou a candidatura dele”. A resposta:

“O imaginário do salto para a social-democracia e o Primeiro Mundo, os dois em versão idealizada, comporta ilusões desse tipo. Não penso que o próprio Fernando Henrique seja vítima delas, mas o tema existe. Agora, para não ser unilateral, é evidente que o projeto socialista no Brasil, dependendo da maneira como ele é formulado, tem muito disso também. A chave está na adoção ou na aceitação ofuscada de um padrão absoluto de modernidade, descolado de seus problemas nos países-modelo e das relações sociais efetivas entre nós. A modernidade passa então a funcionar ao contrário, como um álibi da classe dominante, além de criar um conjunto de erros de perspectiva e também de falta de juízo generalizada” (Haddad, 1998: 16).

Se as idéias de Cardoso estão no lugar e as esquerdas petistas podem até ter mais ilusões do que ele, como explicar sua trajetória intelectual e política, sem parecer uma sucessão de contradições e equívocos? Os entrevistadores fazem uma terceira de muitas outras perguntas: “Numa entrevista à Folha de São Paulo, o Fernando Henrique falou que o conceito de „idéia fora do lugar‟ estava implícito na teoria da dependência. Qual a dimensão real da sua dívida com ele?”. Resposta de Schwarz:

85 “O débito é essencial, mas já vem de antes da teoria da dependência. A certa altura, no começo dos anos 60, o Fernando Henrique escreveu um livro chamado Capitalismo e Escravidão, no qual mostra que no Brasil do século XIX o capitalismo realizava as suas finalidades por meio da reprodução da escravidão, e não contra ela. Em lugar do otimismo etapista, que postulava a sucessão inevitável de escravidão, feudalismo e capitalismo, com final feliz no socialismo, entrava uma versão diferente da História, que fazia ver o progresso de maneira mais complicada e real. (...). Assim, em suma , as idéias não são apenas o que indicam. Nem a escravidão é necessariamente arcaica, nem o capitalismo assegura o domínio do trabalho livre, e hoje, aliás, nem trabalho ele está assegurando. (...) esse tipo de oscilação, que o Fernando Henrique estudou, eu tentei sistematizar no plano da vida das idéias. O célebre sentimento de que as idéias modernas no Brasil são sempre

postiças [grifo nosso], inadequadas, estão fora do lugar, se prende a essas

falsas universalizações, que são de natureza do capitalismo, um efeito estrutural de sua gravitação” (Haddad, 1998: 16-7).

As idéias de Fernando Henrique não apenas estão no lugar, como também é praticamente da sua lavra, no Brasil, a intuição de que as idéias no capitalismo muitas vezes podem e estão mesmo fora do lugar. Nossa proposta na tese tem sido a de que suas idéias antes de chegar ao poder não são contraditórias com as idéias que defendeu durante seus mandatos presidenciais – o que parece ser também a opinião do mestre Roberto Schwarz na entrevista aos petistas.

Posição ainda mais clara se encontra no ensaio já referido de Schwarz, “Um Seminário de Marx”, que passaremos a analisar como evidência maior da coerência ideológica de Cardoso ao longo do tempo – apesar de, como qualquer outro, como afirma Schwarz, estar sujeito a contradições e, vez por outra (como veremos em outros capítulos), colocar certas idéias postiças fora do lugar na busca de vitórias em refregas acadêmicas ou, principalmente, vitórias políticas mais ou menos imediatas.

Schwarz explica que o Seminário Marx foi um grupo de intelectuais que, a partir de 1958, na Faculdade Filosofia da USP, se reunia para estudar O Capital de Marx.

“O grupo deu vários professores bons, que escreveram livros de qualidade, e agora viu um dos seus membros virar presidente da república. Naturalmente não imagino que o marxismo nem muito menos nosso seminário tenham chegado ao poder. Mas mal ou bem é possível reconstituir um caminho

que levou da Faculdade de Filosofia da Rua Maria Antonia e daquele grupo de estudos à projeção nacional e ao governo do país [grifo nosso].