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Capítulo 3 – Intelectualidade e política

3.1. O Cebrap como partido da inteligência

Dando seqüência a esta interseção cada vez mais profunda entre academia e política na sua biografia, por força das ações da ditadura – seu exílio, sua aposentadoria compulsória da USP e até ameaças de prisão –, Fernando Henrique logicamente teria que persistir num caminho praticamente sem volta de intelectual encarnando papel político (de resistência ao regime autoritário). É nessa situação dramática que se insere a idéia de fundar o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Embora ele tivesse outras ótimas alternativas de trabalho no exterior (EUA, França, etc), optou pelo Brasil e o risco de uma empreitada político-intelectual sem nenhuma garantia de sucesso e muitas possibilidades de imprevisíveis obstáculos por conta da situação política delicadíssima do país. Vale registrar, no entanto, que Fernando Henrique já era não só um intelectual respeitadíssimo (aqui e no exterior), mas também uma figura pública articulada com políticos, empresários, intelectuais estrangeiros e órgãos financiadores de pesquisa, o que aplainou o árduo caminho do novo projeto.

Vejamos como Cardoso explica o processo.

“O diretor da Nanterre me convidou para voltar à França. Richard Morse, que era professor em Yale, também queria que eu fosse para lá. Já tinha passado cinco anos fora, não queria mais sair do Brasil. Foi quando decidimos fazer o Cebrap, decisão difícil porque implicava o apoio da Fundação Ford. No Brasil isso era pecaminoso. Eu vinha de outro mundo [grifo nosso], onde não seria pecado, mas aqui era. Começamos o Cebrap: o Paul Singer, o Chico Oliveira, o Gianotti e eu. Depois veio todo mundo [grifo nosso]. Apesar do apoio da Fundação Ford. (...). Paulo Egydio Martins, que era governador, nos ajudou. Severo Gomes e José Mindlin deram cobertura. No entanto, o dinheiro era pouco – o Cebrap não tinha dinheiro. Então nos movíamos pelo mundo dando

35 Alguns preferem a palavra intelligentsia (entre tantos, Lahuerta, 2002) ou sua versão ortográfica

alternativa intelligentzia (Barboza Filho, 1995). Outros preferem intelectuais (escolha de Pécault, 1990). Optamos aqui pela palavra inteligência – mais imprecisa, mas também mais abrangente e correta para nossos propósitos. A expressão intelligentsia “criada e desenvolvida” no Leste da Europa (Polônia primeiro e Rússia depois) a partir de uma expressão alemã tem uma forte conotação de minorias cultas separadas do resto da população, vivendo, por assim dizer, em uma redoma (Vieira, 2006). Não se encaixa bem na história brasileira mais recente. Talvez não tenha relação nem mesmo com o Brasil do século 19 e primeira metade do século 20, “nobiliárquico” culturalmente. Sua “tradução” na Europa Ocidental – França primeiro e outros países depois (Alemanha, Itália, Inglaterra, etc) – para a expressão “intelectuais” exigiria uma discussão sobre seu real significado através de pensadores como Mannheim, Gramsci, Bourdieu, Bobbio, etc (Vieira, 2006) – o que não é nosso objetivo aqui. É mais próxima da realidade brasileira recente, mas ainda assim meio restritiva. Serve para explicar parcialmente o Cebrap e a “sociologia” brasileira (Pécault, 1990), mas não se presta muito à sociedade brasileira em geral, com seus artistas, estudantes, críticos da ditadura em geral, políticos do MDB, representantes sindicais, líderes de entidades diversas (de associações de bairros a entidades como OAB ou ABI, passando por um número sempre crescente de lideranças de setores organizados) e assim por diante. A expressão “inteligência”, em bom português, parece mais indicada para o que vamos defender como idéias centrais do capítulo. Nesse uso, estamos também em companhia de ótimos estudiosos, como, por exemplo, Bernardo Sörj (2001) e Juarez Guimarães (2007).

118 cursos para poder ter um pouco mais de folga. Quando saí da Cepal, eles me deram uma bolada de dinheiro, a mim e ao Weffort. (...). Viajei bastante para a França nessa época: dava aulas na Escola de Altos Estudos. Também fui para a Inglaterra e para os Estados Unidos. Na década de 70 dei aulas em Stanford, Princeton, em Cambridge e em Paris. (...). [O Michel Foucault] deu um jeito para que eu virasse professor-convidado do Collège de France, e fui. Acho que nunca houve outro da América Latina. (...). Não é só por vaidade [grifo nosso]; estou dizendo isso porque quero deixar claro que nunca sonhava em ser professor do Collège36” (Carta, 1994: 18).

E, assim, nascia o Cebrap. Para quê? Segundo Giannotti, “é sintomático que, em 1969, depois de termos sido expulsos da universidade e tratávamos de criar o Cebrap, Paul Singer me tenha dito que passava a considerar a produção do conhecimento na nova instituição como sua atividade política primordial” (Giannotti,1998: 118). Eis aí apontada por Giannotti e Singer a “chave” para entendermos o que se passou naquela virada dos anos sessenta para os anos setenta na trajetória acadêmica e política de Fernando Henrique e de uma série de intelectuais do seu “círculo mais próximo”, transformando produção acadêmica em resistência política à ditadura e referência analítica nacional.

Essa discussão tem outras dificuldades adicionais, pois remonta a momentos decisivos de inflexão política da nação. Elites paulistas dominaram a cena republicana até 1930 aliadas às elites mineiras e de outras regiões menos decisivas economicamente. Estas elites paulistas foram deslocadas para uma posição relativamente menos central no período 1930-1964. E, depois, durante a Ditadura Militar (1964-1985), tiveram papel bem mais relevante, mas ainda não dominante no núcleo central de poder.

A sociologia paulista – Cardoso como um dos expoentes – é a reação intelectual mais visível, embora ainda acanhada nos anos cinqüenta e sessenta, como vimos nas análises de Schwarz e Giannotti no capítulo anterior, a essa condição coadjuvante de São Paulo no processo intenso de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais pelo qual passou a nação nas três décadas dominadas pela figura maior do

36 Mas “sonhava” em ser professor da Sorbonne e senador – no mínimo. Os grifos explicam as

contradições de Cardoso quando tenta falar de vaidade, relação com o mundo intelectual do Primeiro Mundo e “coisas” do tipo. Depois, já na presidência, teve a famosa frase sobre o povo brasileiro ser caipira. Antes, criticando os militantes do “povo de Deus” e os fundadores do PT. Sempre com aquele jeitão “superior” de quem “andou pelo mundo” – e não só pelo Brasil, o que também fez, pesquisando, etc –, convivendo com as mentes mais brilhantes do planeta. Esse “traço” sobressai inquestionavelmente em “falas” diversas ao longo do tempo. Denota certo “desprezo” pelo que é “nacional”, apesar da sua ligação tão forte com o país, a ponto de aqui querer ficar e desenvolver seus projetos pessoais e públicos, apesar de alternativas menos arriscadas e provavelmente melhor remuneradas. É uma complexa conjunção de fatores que vão ajudando a construir uma “visão de mundo” a partir da “sua aldeia” (pegando de empréstimo a idéia de Dostoiewski), mas inserido de forma subordinada ao “Primeiro Mundo” (Europa em geral e França em particular).

119 gaúcho Getúlio Vargas e seus desdobramentos na “modernização conservadora” empreendida pelo regime militar.

Na longa transição democrática – iniciada nos anos setenta –, os intelectuais paulistas – ao contrário das décadas anteriores – vão pautando o debate e, de certa forma, nesse processo, reescrevendo a história passada, reinterpretando autores e visões e, como resultado geral não exatamente planejado, criando um ambiente intelectual e político para profundas mudanças futuras que, por contingências históricas da nação, ironicamente, serão lideradas, nos anos 90, pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, bem como por intelectuais e políticos ligados ao partido que ajudou a criar nos fins dos anos 80 (o PSDB).

Não há nada indicando que havia um plano determinado para se alcançar essa ou aquela meta política – apesar dos sonhos políticos de Cardoso –, mas o resultado foi meridianamente claro tanto no aspecto acadêmico quanto no aspecto político. Fernando Henrique tornou-se uma espécie de “príncipe da sociologia brasileira” e também um superstar político – ídolo de uma parcela pequena, mas aguerrida de estudantes e intelectuais contrários à ditadura. Papéis que serão incrementados pelas publicações acadêmicas (entre elas, livros relevantes e artigos acadêmicos na própria revista do Cebrap) e análises políticas mais populares (na chamada “imprensa alternativa”).

O Cebrap, do qual Cardoso foi o principal idealizador e diretor, entre 1969 e 1982, mas não o principal gestor burocrático – o que o deixava livre para articulações acadêmicas, políticas e até financeiras para manter a instituição –, no entanto, era o espaço central de uma construção intelectual e política cada vez mais intensa e irradiadora de influências sobre a nascente sociedade civil organizada lutando pela democracia no Brasil.

O Cebrap reunia também a fina flor do pensamento crítico e de esquerda do país, inclusive muitos estudiosos que depois cerrarão fileira na fundação do PT (Francisco Weffort, Francisco de Oliveira, Paul Singer, etc) e outros de histórica ligação com o PCB. Mas, com certeza absoluta, tinha em Fernando Henrique a sua liderança mais expressiva, seja pela decisiva e influente produção intelectual, seja pela sua já evidente capacidade de articulação propriamente política – que, ao contrário da afirmação de muitos estudiosos, manifestava-se desde os anos cinqüenta e não apenas quando de sua aproximação com o MDB nos anos setenta.

120 Bernardo Sörj produziu o primeiro estudo sobre a trajetória do Cebrap (pesquisa realizada ainda nos anos 80) e aprofundou sua análise na obra A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo – da resistência à ditadura ao governo FHC (2001).

Sörj vê o Cebrap

“(...) como um caso privilegiado da rica e complexa relação entre a produção científica e a vida social e política, seja por suas origens [USP, Seminário Marx, etc, como analisa no Capítulo II], por seu papel central nas ciências sociais durante o regime autoritário [temática analisada nos Capítulos III, IV e V], pelos problemas que atravessou com o processo de democratização [Capítulo VI e Segunda Parte] ou pelo próprio fascínio que seus principais intelectuais [destacadamente Fernando Henrique, analisado na Terceira Parte] exerceram sobre uma geração de jovens cientistas sociais nos anos 70. Neste sentido, respeitadas suas especificidades, o Cebrap pode ser visto como um exemplo e uma metáfora das complexas relações entre intelectuais e política, entre saber e poder, entre conhecimento e democracia na sociedade brasileira” (Sörj, 2001: 11).

A análise de Sörj reforça nosso argumento discutido no capítulo anterior (influência da sociologia paulista, importância do Seminário Marx, as temáticas brasileiras que extrapolam para a América Latina, etc) e baliza a discussão que se segue (Fernando Henrique fazendo a passagem da vida mais intelectual para a vida mais política).

A trajetória político-intelectual do Cebrap é uma espécie de síntese da própria trajetória acadêmica do seu maior idealizador, assim como dos problemas políticos nos quais esteve diretamente envolvido durante as décadas de 70 e 80 – particularmente, no plano partidário, o que veremos mais detalhadamente à frente, a crítica ao PCB e às esquerdas do continente, a relação com o MDB/PMDB, a tentativa de articular um partido socialista democrático, a não adesão ao PT e, ao fim de longo processo, a criação do PSDB.

Sörj, em vários capítulos de sua obra, aprofunda a análise da trajetória do Cebrap – e voltaremos a alguns pontos de sua brilhante exposição –, mas introduz uma idéia central, também discutida, anteriormente (Pécault, 1990) e posteriormente (Lahuerta, 2002) por outros autores com ênfases diversas e mesmo conteúdo principal: o Cebrap e os seus proeminentes intelectuais como a “cúpula” – e Fernando Henrique como sua liderança máxima, para além de qualquer dúvida – de uma espécie de “partido da inteligência” na luta de resistência contra a ditadura militar. Embora devamos talvez, como Pécault, ampliar a sugestão de “partido da inteligência” para o conjunto (ou quase

121 isso) da intelectualidade brasileira em sentido amplo (atuando contra ditadura nos anos 70) e tratar o Cebrap como a referência analítica principal – “despaulistizando” parcialmente a análise.

Como ocorreu tal processo cultural e político?

Sörj, criticando de certa forma uma sociologia do conhecimento que resulta numa visão restritiva (caso, por exemplo, de Sérgio Miceli) e postulando uma visão braudeliana do problema (interligação dos tempos curto, médio e longo – argumento que veremos melhor na subseção seguinte), aponta como central a “construção de categorias com as quais os diversos atores sociais representam, dão sentido, se orientam e negociam sua participação na sociedade” (Sörj, 2001: 86).

Com essa visão geral é que os intelectuais brasileiros durante a ditadura definiram seu espaço e também sua posição política geral – tendo o Cebrap um papel de inegável relevo, embora muitos outros espaços simbolizassem tal posição (imprensa alternativa, parte da MPB, outros espaços acadêmicos, etc). Segundo Sörj, porém,

“(...) coube ao Cebrap ocupar de forma criativa um nicho gerado pelo período ditatorial, quando as classes médias intelectuais e modernizantes procuravam vozes que expressassem os sentimentos reprimidos e censurados, num contexto de alta densidade, mobilização e coesão ideológica. (...). Os intelectuais eram vistos como „porta-vozes‟ de uma sociedade amordaçada. Posteriormente, com a democratização e a consolidação de uma sociedade de massas sob a égide dos meios de comunicação, os intelectuais acadêmicos perderam seu peso específico e foram substituídos pelos especialistas em comunicação”37 (Sörj, 2001: 88-9). É sobre essa temática do Cebrap como “partido da inteligência” que também se debruça Milton Lahuerta em artigo para a revista Política Democrática, em 2002, e vale aqui um registro mais detalhado.

37 O papel da mídia será mencionado em capítulos posteriores, mas vale registrar aqui que os meios de

comunicação e seus principais operadores (proprietários, editores, articulistas em geral, etc) são “divulgadores” de visões de mundo produzidas em outros espaços pelos formuladores estratégicos do “grande mundo burguês globalizado” – geralmente, Estados Unidos e, de forma já algo subordinada, países europeus ocidentais mais tradicionais (Inglaterra, Alemanha, França e Itália) ou emergentes no continente (caso bem claro da Espanha). Exemplo expressivo é o “novo problema” da violência e a cópia desabrida por parte de países europeus e emergentes (Brasil incluído parcialmente) da política regressiva e neofascista denominada nos EUA de “tolerância zero” (ver Wacquant, 2001). De forma parecida, variando a criatividade da “cópia”, podemos apontar exemplos sobre políticas sociais e principalmente sobre políticas econômicas. É notável, porém, como Cardoso já tinha, nos anos 70 e 80, noção bem precisa sobre a importância da mídia na política, seus usos estratégicos, etc – influência das suas experiências no exterior, principalmente Europa e EUA. Assim como, também, sobre não repetir idéias de fora acriticamente, como defende em tantas obras, mas principalmente já no título do artigo “A originalidade da cópia: A CEPAL e a idéia de desenvolvimento” publicado na obra As idéias e seu lugar (1980).

122 Segundo ele, a década de 70 representa uma grande virada econômica, social, política e mental. Novos enfoques sobre o Brasil são produzidos em oposição ao “populismo” anterior do nacional-desenvolvimentismo. Isso, no bojo de uma

“(...) expansão notável da indústria cultural e do público universitário, compondo um cenário contraditório que torna possível uma certa sagração da figura do „intelectual de oposição‟. Desse modo, se constitui uma espécie de „estado-maior‟ de um partido da inteligência, num contexto em que os especialistas saem de seus afazeres e são impelidos a se defrontarem com problemas políticos e/ou gerais” (Lahuerta, 2002: 97-8).

Tudo começou com o Cebrap, em 1969. Um grupo de intelectuais é obrigado a romper com a condição acadêmica anterior e se aventurar em nova empreitada de risco. O objetivo era manter seus programas de pesquisas, geralmente de uma perspectiva marxista. Tornaram-se referência nacional e um pólo de formação de quadros intelectuais. Também produziram novas interpretações do Brasil, que foram mudando a esquerda no país. Fernando Henrique, nesse quadro, foi maior do que a própria obra e uma espécie de “mito”, o que lhe “garantirá a (...) condição de intelectual que lidera

intelectuais [grifo nosso], sem precedentes na história do país” (Lahuerta, 2002: 102-3).

Condição incontestável, com o autoexílio de Florestan Fernandes.

Interpretações sobre o Brasil que contaram com a colaboração de muitos intelectuais, mas tendo como protagonista Fernando Henrique e Francisco Weffort como principal coadjuvante – o que já vimos parcialmente no capítulo anterior.

Weffort sintetiza a crítica paulista mais radical ao nacional-desenvolvimentismo, inclusive enfrentando de forma vitoriosa, no próprio Cebrap, o núcleo do PCB (Maria Hermínia Tavares de Almeida e outros).

“Esse modo de revisar a história do país, marca registrada das formulações de Francisco Weffort, (...) dava combustível para as correntes que, à esquerda do PCB, recusavam-se a levar em consideração as eleições, o MDB e o tema da conquista da democracia, reiterando – mesmo com a truculenta destruição das organizações de esquerda armada – a expectativa de algum tipo de solução insurrecional para pôr termo à ditadura” (Lahuerta, 2002: 104).

De 1974 a 1979: sociedade civil como conceito e como realidade. Civil contraposto de forma maniqueísta contra Militar. Tudo civil como ótimo e tudo estatal como negativo.

123 “Portanto, no processo em que se torna comum a utilização do conceito de sociedade civil, oscila-se entre uma posição estritamente liberal – que se recusa a enfrentar o problema da construção de uma nova hegemonia e limita-se a constatar o caráter democrático inato à emergência da pluralidade de interesses – e um basismo de novo tipo que, reivindicando um vínculo com a verdadeira teoria gramsciana, cai numa posição semelhante à dos liberais ao fazer a apologia indiscriminada dos movimentos sociais e ao desconsiderar a política institucional” (Lahuerta, 2002: 111-2).

Contudo, como no debate sobre dependência, há claras e evidentes divergências entre Weffort e Cardoso, segundo Lahuerta.

“Basta notar que enquanto Cardoso centra o foco de sua análise na perspectiva da construção de um sistema partidário capaz de expressar o pluralismo dessa sociedade civil, amenizando a importância do tema das classes sociais e de sua identidade, Weffort radicaliza seu posicionamento quanto ao potencial de ruptura do movimento operário, valorizando os movimentos sociais, especialmente o movimento sindical, como o elemento mais dinâmico dessa sociedade civil emergente” (Lahuerta, 2002: 113).

Fernando Henrique também inova no seio da esquerda quando os temas, além da sociedade civil, são o Estado, o autoritarismo e a democracia. Caracteriza pioneiramente o Estado como burocrático-autoritário.

“Tal pioneirismo se deve ao fato de ele ter sido o autor do grupo que mais rapidamente deslocou seu foco analítico das dimensões estruturais (inclusive a temática das classes sociais) para concentrar-se na representação política, nos aspectos institucionais e no fortalecimento da sociedade civil como caminhos para se contrabalançar não apenas o regime autoritário, mas o tradicional autoritarismo da sociedade brasileira. Autoritarismo e democratização: esse será o eixo norteador de suas intervenções, consubstanciadas em uma trajetória intelectual multifacetada que acaba aparecendo como a melhor expressão da constituição e do fortalecimento da sociedade civil” (Lahuerta, 2002: 105).

Cardoso, ainda segundo Lahuerta, percebe melhor do que outros as mudanças sociais em curso, aquilo que Werneck Vianna chamou de “revolução de interesses” (Lahuerta, 2002: 107). Assunto que outros também analisaram e que Fábio Wanderley Reis (Lamounier, 1982) denominava de “fase ideológica” das ciências sociais – como já vimos.

A certa altura de sua inspirada análise, Lahuerta afirma que Weffort, a partir da perspectiva exposta acima, “participa da fundação do Partido dos trabalhadores, torna-se seu principal ideólogo e permanece como seu secretário-geral durante 15 anos”

124 (Lahuerta, 2002: 113). A afirmação é errada sobre o tempo que ocupou o cargo (apenas cinco e não quinze anos) e é discutível sobre o conteúdo. Weffort, com certeza, ajudou na organização do PT e teve papel de relevo como intelectual no partido. Há controvérsias, porém, se foi “seu principal ideólogo”. O PT, tudo indica, principalmente os melhores estudos sobre o partido, não teve nenhum “principal ideólogo”, apesar da importância de “ideólogos diversos”. Entre tantos ideólogos, Antônio Cândido, Marilena Chauí, Francisco de Oliveira, Weffort, um sem número de “ideólogos” das tendências de esquerda que compuseram o partido desde o início, os “ideólogos” das correntes católicas que também organizaram originalmente a agremiação e, por fim, os “ideólogos” ligados ao novo sindicalismo – estes, talvez, os principais “ideólogos” do partido, como a realidade política o demonstrou.

Se a idéia não é tão boa e precisa para explicar a relação entre Weffort e o PT, encaixa-se perfeitamente em uma explicação sobre a relação de Fernando Henrique com o PSDB. Cardoso foi, para além de qualquer dúvida, não só o principal ideólogo, mas também a principal liderança política do partido, o que não deixa de ser notável, pois tais papéis existem separados na prática partidária, seja brasileira ou de outro país qualquer38. Não que Fernando Henrique pense tudo sozinho, mas polariza as atenções, por assim dizer, como nenhum outro “pensador” em partidos brasileiros.

Contudo, mesmo para explicar a relação de Cardoso com o PSDB é preciso levar em conta que não foi uma coisa clara e planejada desde o início. Foi uma construção complexa, tanto acadêmica quanto politicamente. É sobre a complexidade nesses dois