• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1 – Cultura política e cultura política no Brasil

1.3. O nacional-desenvolvimentismo

Uma coisa importante a registrar de início é que o nacional-desenvolvimentismo reuniu intérpretes de várias partes do Brasil, mas todos “sediados” no Rio de Janeiro, capital do país naquele momento. Tal registro é importante, pois tem pelo menos duas implicações bastante claras. A primeira é que os analistas e construtores dessa visão inescapavelmente giraram de alguma forma em torno do Estado e seus “aparelhos”, assim como seus congêneres dos anos 30 e muito diferentemente dos seus críticos contemporâneos ou não. A segunda questão é que o Rio de Janeiro era uma cidade “nacional” e centro de atração cultural, ao contrário de São Paulo, sede dos principais críticos – “provinciana” e, contraditoriamente, mais “capitalista” e “moderna”.

Neste período (entre 1946 e 1964), as ciências sociais brasileiras tinham duas instituições de maior prestígio: o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), sediado no Rio de Janeiro desde a sua fundação em 1955, e a Universidade de São Paulo (USP). Esta última centrava suas preocupações na construção de uma sociologia científica e quase nenhuma atenção dava à ciência política. Aquele, inversamente, constituiu-se no principal centro de estudos políticos da época. Em um aspecto central, no entanto, pareciam convergir, “refiro-me aqui a uma continuidade de conceitos e de hierarquização temática que deita raízes na antiga descrença [grifo nosso] de que se pudesse consolidar, no Brasil, um modelo político de corte liberal-representativo; ou de que isso fosse desejável, caso fosse viável” (Lamounier, 1982: 416-7). Mas, se de fato parecem ter compartilhado essa descrença, divergiam em praticamente tudo o mais. Veremos as idéias nacional-desenvolvimentistas nesta seção e, na seguinte, as idéias de seus críticos do pós-64.

Uma parte significativa da discussão nacional-desenvolvimentista gira em torno do ISEB. O ISEB foi precedido pelo Grupo de Itatiaia e pelo Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política (IBESP).

Hélio Jaguaribe explica o processo destas duas instituições em longa entrevista à Folha de São Paulo, que registramos, pois ajuda a compreender não só o ISEB, mas também a pluralidade intelectual dos fundadores do PSDB10.

10Jaguaribe foi um deles da “velha geração” anterior a 1964, assim como Montoro, Cândido Mendes e

43 “Éramos um grupo de paulistas e cariocas que nos reuníamos, três dias por mês em Itatiaia. Surgiu daí a idéia de colaborarmos no Jornal do

Commercio. Eu era amigo do Schmidt (o poeta Augusto Frederico Schmidt),

que obteve no jornal que nos fosse concedida, todas as sextas-feiras, a quinta página, como um suplemento cultural. Isso por volta de 1947. Eram basicamente as pessoas que depois vieram a fazer parte da revista Cadernos

do Nosso Tempo: Cândido Mendes de Almeida, Guerreiro Ramos, Ewaldo

Correia Lima, Hermes Lima, João Paulo de Almeida Magalhães, Moacir Félix de Oliveira, Oscar Lorenzo Fernandes” (Coelho, 1998: 9).

O grupo, formado por afinidades intelectuais, tinha uma posição culturalista (maior independência do Brasil em relação aos EUA), uma “vocação social, basicamente social-democrática avant la lettre”. Também “fundamos a revista Cadernos do Nosso Tempo. Formou-se então um grupo que fundiu o grupo de Itatiaia com o grupo de Roland Corbisier, da revista Crítica. Fundamos o IBESP”. O instituto sustentava-se com uma pequena verba do Ministério da Educação e Cultura e com dinheiro que eu colocava, mas isso criou problemas com minha esposa.

“Roland Corbisier estava um pouco à direita de nós, mas já fizera uma crítica do integralismo, ao qual pertencera, assumindo uma posição mais democrática. A revista teve um êxito enorme, uma repercussão por toda a América Latina. Decidimos encerrar a revista [por dificuldades financeiras] com um número dedicado a Juscelino Kubitschek e a seu Programa de Metas” (Coelho, 1998: 9).

Antes um pouco, foi criado o ISEB, em 1955, no governo Café Filho. “No ISEB todo mundo trabalhava de graça. Mas havia a possibilidade de um cargo remunerado, e Roland veio para o Rio ganhando o equivalente a uns R$ 5 mil hoje”. Não havia nenhuma ligação entre ISEB e sociologia paulista. “Guerreiro Ramos tinha uma grande hostilidade ao departamento de sociologia da USP, considerava-o alienado, francês, e defendia uma sociologia „cabocla‟”. Nosso objetivo era formular um projeto para o país. “Fizemos um (...) projeto nacional-desenvolvimentista que foi incorporado por Juscelino”, através do Plano de Metas coordenado pelo Lucas Lopes. O ISEB também ministrava cursos, “a idéia era fazer uma contrapartida à Escola Superior de Guerra, com aulas para uma elite civil”. Escrevi um livro, O Nacionalismo na Realidade Brasileira, discutindo “inicialmente as propostas dos antinacionalistas, que eram chamados de „entreguistas‟, mas que chamei de „cosmopolitas‟ para evitar uma designação pejorativa. (...) Em seguida, eu analisava as propostas dos nacionalistas e, numa terceira parte, discutia quem tinha razão, (...), mas com uma visão nacionalista predominante”.

44 Aí tive divergências com Guerreiro Ramos, que queria levar à prática revolucionária e partidariamente as idéias do ISEB. Ramos, Corbusier e os partidos de esquerda se uniram contra mim dizendo que eu defendia as idéias dos “entreguistas”. Mas em votação no Conselho do ISEB ganhei por um voto e Ramos saiu do instituto. O Corbusier usou influências políticas para continuar no cargo através de nomeação direta do Ministro da Educação, mudando os estatutos da entidade. “Então saímos eu, Anísio Teixeira, Roberto Campos”, em 1960. O ISEB entrou numa segunda fase até Corbusier se eleger deputado. “Depois, o ISEB entra numa terceira fase, com Álvaro Vieira Pinto, e se torna satélite do Partido Comunista”. O ISEB acabou tristemente, em 1964.

“O ISEB que os militares encontraram era o do Álvaro Vieira Pinto e Nélson Werneck Sodré, totalmente satelitizado pelo PC. Houve então a invasão do ISEB pelos militares, apontando metralhadoras para cima, e Álvaro Vieira Pinto, homem sensível, frágil, foi psicologicamente destruído, foi levado à prisão, depois foi solto e nunca mais saiu de casa, passou a viver enclausurado” (Coelho, 1998: 10).

A versão de Jaguaribe – 40 ou 50 anos depois dos fatos ocorridos – com certeza contém equívocos, omissões, pré-julgamentos e assim por diante, mas nos dá uma visão geral sobre a instituição, seus membros principais, sua trajetória, seus conflitos ideológicos e políticos. Durante seus quase dez anos de existência, porém, podemos perceber que foi uma grande referência cultural e política no Brasil pré-64, reunindo “um grupo de intelectuais de várias origens e especialidades que, nos anos 50, desenvolveram no Rio de Janeiro uma visão coerente e abrangente do Brasil e do seu processo de industrialização e desenvolvimento” (Bresser Pereira, 2004: 49). Vale registrar que Bresser também é destacado fundador do PSDB.

Suas temáticas centrais, segundo Wanderley Guilherme dos Santos, reproduzem em outros termos as mesmas questões que, de forma insistente, recolocam-se ao longo da história do Brasil independente pelo menos desde o Segundo Reinado.

“A afirmação e defesa da industrialização como passo estratégico em uma política de autonomia econômica, independência econômica como requisito indispensável da independência política, insistência na nacionalização do processo econômico e na inclusão das massas urbanas na coalizão política que poderia dar suporte ao programa econômico são alguns aspectos da propaganda isebiana. (...). Em realidade, não há praticamente uma hipótese ou idéia desenvolvida pelo ISEB que não houvesse sido vocalizada anteriormente. O ISEB apenas as poliu, deu-lhes uma formulação em compasso com a época e, sobretudo, difundiu-as entre um público universitário e intelectualizado” (Santos, 1998: 46).

45 E, além disso, poderíamos acrescentar, tais temáticas alcançam aí, nesse período, com o ISEB, seu ápice político e cultural. Logo depois, esse ideário defronta-se com a ditadura militar e com todas as vertentes interpretativas autodenominadas mais “modernas” formuladas principalmente a partir de São Paulo (ver, por exemplo, Toledo, 1977; Mota, 1977), bem como assistimos a uma lenta agonia política desse ideário ao longo das décadas de crise econômica e de transição democrática. Mas, contrariamente ao esperado, recoloca-se com freqüência, ainda que parcialmente, através das forças políticas de esquerda e centro-esquerda como um conjunto inspirado de idéias sobre o Brasil em oposição aos seus principais algozes nos anos 90, com um hegemônico, seletivo e de certa forma extremado liberalismo.

O ISEB foi, por assim dizer, a face política mais visível e mais polêmica deste conjunto de idéias. Mas, ao contrário do que muitas vezes se afirma, não foi o centro criativo verdadeiro de tais idéias. Longe disso. A grande fonte do nacional- desenvolvimentismo foi inspirada largamente nas idéias da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina, da ONU) (Bielschowsky, 2000) e, no Brasil, tem como sua principal expressão intelectual, política e moral Celso Furtado, o maior economista da nossa história, que chegou a colaborar com o ISEB e com ele compartilhava muitas visões (Bresser Pereira, 1982: 276), mas teve caminho próprio muito mais criativo e muito mais influente, inclusive depois da derrocada de 1964. Vejamos o que nos ensinam esses autores (Ricardo Bielschowsky e Celso Furtado) sobre o desenvolvimentismo – ainda que apenas de forma resumida e panorâmica.

Bielschowsky, estudando o pensamento econômico brasileiro entre 1930 e 1964 (principalmente o pensamento do pós-2ª Guerra), que ele denomina de “ciclo econômico desenvolvimentista”, afirma que a produção analítica econômica brasileira, “além de escassa, foi, no essencial, um simples desdobramento da única produção analítica latino-americana de monta no período, ou seja, a obra da CEPAL”. Explica o autor que há uma razão específica para isso: os cursos de economia ainda não estavam institucionalizados, o que só ocorrerá dos anos 60 em diante (Bielschowsky, 2000: 6-7).

Bielschowsky observa que o “desenvolvimentismo” é um conceito-chave “que se compõe dos seguintes pontos fundamentais”:

a) a industrialização integral é a via de superação da pobreza e do subdesenvolvimento brasileiro;

46 b) não há meios de alcançar uma industrialização eficiente e racional no Brasil através das forças espontâneas de mercado; por isso, é necessário que o Estado a planeje;

c) o planejamento deve definir a expansão desejada dos setores econômicos e os instrumentos de promoção dessa expansão; e

d) o Estado deve ordenar também a execução da expansão, captando e orientando recursos financeiros, e promovendo investimentos diretos naqueles setores em que a iniciativa privada seja insuficiente” (Bielschowsky, 2000: 7).

Continua sua argumentação apontando que basicamente o pensamento econômico brasileiro do período é composto por cinco correntes: “três variantes do desenvolvimentismo (setor privado, setor público „não nacionalista‟ e setor público „nacionalista‟), o neoliberalismo („à direita do desenvolvimentismo‟) e a corrente socialista („à sua esquerda‟)” (Bielschowsky, 2000: 7).

E quem são os representantes dessas correntes? À “direita” do desenvolvimentismo tivemos muitos autores, mas o mais destacado é certamente Eugênio Gudin, “que pode ser considerado o patrono dos economistas brasileiros”. As correntes desenvolvimentistas são representadas principalmente por Roberto Simonsen (pioneiro do desenvolvimentismo, que privilegiava a área empresarial), Roberto Campos (desenvolvimentismo estatal não nacionalista) e Celso Furtado (“a grande liderança intelectual dos economistas progressistas no país e um dos maiores nomes das ciências sociais na América Latina”). À “esquerda” do desenvolvimentismo, “corrente de economistas socialistas, em geral ligados ao Partido Comunista Brasileiro”, que apoiava o projeto de industrialização como etapa necessária a uma futura passagem ao socialismo. E havia ainda o caso específico de Ignácio Rangel, independente, mas próximo ideologicamente dos nacionalistas e dos socialistas” (Bielschowsky, 2000: 431-2).

O autor frisa também que tudo isso foi construído muito em função da teoria de Raúl Prebisch11 sobre “desenvolvimento periférico”, análise baseada em sete pontos principais: 1) Caracterização do subdesenvolvimento como uma condição da periferia (e a disparidade com o centro do sistema internacional); 2) Identificação de um processo

11Fernando Henrique admite que a teoria de Prebisch igualmente o inspirou: “Uma vez escrevi um artigo

chamado „A originalidade da cópia‟. Era sobre Raúl Prebisch e a CEPAL. Eu dizia que quase tudo o que foi feito na CEPAL, e incluo meus trabalhos nisso, outros já tinham feito. Não obstante, fizemos coisas originais” (Toledo e Cardoso, 1998:102).

47 de industrialização espontâneo e seu significado histórico (que não nos permitiria aproveitar de alguma forma do nosso atraso, como se dizia); 3) Industrialização da periferia vista como padrão de desenvolvimento sem precedente e problemático (em contraste com as economias avançadas e não como etapa pela qual tivessem passado); 4) Tese estruturalista sobre a inflação (que se contrapunha às soluções ortodoxas de estabilização e propunha enfrentar os obstáculos ao desenvolvimento como a única solução possível); 5) A tese da substituição de importações (para enfrentar o problema das desigualdades nas trocas internacionais e seus desdobramentos negativos no processo de industrialização); 6) A proposta de planejamento da Cepal (intervenção estatal e não liberdade de mercado); e 7) Argumentação de Prebisch por protecionismo baseada em modelo de três setores (que permitiria gradualmente expandir o setor industrial em substituição aos setores exportadores e aos setores de baixa produtividade) (Bielschowsky, 2000: 16-29).

E conclui:

“Foi nesse contexto de „vazio teórico‟ que a teoria de Prebisch e da CEPAL, aqui resumida, ganhou significado especial. A CEPAL não formulou uma teoria de investimento ou de acumulação de capital, mas, ao combinar sua tese sobre as transformações históricas do sistema centro-periferia com a análise das estruturas produtivas periféricas, foi capaz de prover um instrumental analítico engenhoso, através do qual uma série de importantes tendências típicas dos países subdesenvolvidos – tais como déficits externos, deterioração nos termos de troca, desemprego e inflação – podia ser prevista e estudada de maneira particularmente acurada. O uso da teoria cepalina feito no debate brasileiro sobre o desenvolvimento econômico na década de 50 e início da de 60 (....) é uma boa prova da importância da contribuição teórica daquela instituição” (Bielschowsky, 2000: 29).

Celso Furtado, em entrevista a Luiz Gonzaga Beluzzo e a Maria da Conceição Tavares, afirma que:

“Eu sou do mundo que ainda estava voltado para uma problemática do século XIX. (...). Eu li de uma forma desordenada, desde cedo sofria certas

influências das idéias positivistas [grifo nosso], a idéia de que a ciência é

uma solução para os problemas do homem. Esse é o positivismo, não essa caricatura que circula hoje em dia, mas a idéia de que o homem tem meios para transformar o mundo, construir um mundo melhor e que esses meios estão ordenados pelas ciências, decorrem do avanço formidável do conhecimento científico” (Furtado, 2001: 72).

Furtado admite ter sido influenciado por Karl Mannheim (“a sociedade pode ser muito mais racional do que é”) e pela idéia do planejamento social (influência de

48 estudiosos norte-americanos). Fundindo as duas coisas numa coisa nova. “Aí foi que aprendi que o Brasil terá que ser feito por nós, construído por nós, que não vai ser uma coisa espontânea. (...) daí se entrosaram minha história e o meu trabalho intelectual” (Furtado, 2001: 72-3). E conclui a argumentação com uma visão central de conteúdo claríssimo:

“Não será seguindo os modelos conhecidos da história do desenvolvimento dos países desenvolvidos que se pode aprofundar no conhecimento desse problema [o desenvolvimento do Brasil]. Isso até hoje me parece uma coisa definitiva: ou reconhecemos que somos uma coisa à parte, temos problemas que são criados historicamente no nosso contexto próprio, ou então caímos na irrealidade de dizer que somos países atrasados, porque estamos numa fase um pouco anterior à que os outros já estiveram. Os outros nunca estiveram onde nós estamos, essa é a diferença essencial” (Furtado, 2001: 73; ver, também, Furtado, 1998).

Em resumo eis aí o que representou o nacional-desenvolvimentismo (e seus desdobramentos às vezes não tão nacionais ou não tão desenvolvimentistas), tanto no que diz respeito a resgatar as influências do passado (temáticas e filosóficas, como foi o caso de certa versão do positivismo) quanto no que diz respeito a produzir uma visão nova sobre os verdadeiros desafios políticos, econômicos, sociais e culturais do Brasil.

O ISEB foi o “instrumento”, no pré-64, para construir mais detalhadamente essa visão de mundo no Brasil e, principalmente, para concretizar em diretrizes de ação o que era definido como o rumo geral. Como observa Lamounier (outro analista de vínculos com o PSDB):

[Em primeiro lugar, o ISEB] “procurou retratar a estrutura econômica e política de maneira abrangente, com o objetivo explícito de fornecer diretrizes para o desenvolvimento nacional. (...) num estilo de análise enfaticamente voltado para os grandes agregados da vida social: para as relações entre Estado e sociedade (...) ou de classes (mas não necessariamente de esquemas marxistas ortodoxos). Em segundo lugar, o ISEB cultivou a forma dos grandes ensaios interpretativos em muito maior grau do que a Escola Paulista de Ciências Sociais. (...) a pesquisa empírica (...) desempenhava um papel claramente secundário [o que lembra muito a forma dos intérpretes dos anos 30] (...). E, finalmente, as teses básicas do ISEB mantiveram uma grande continuidade com as dos anos vinte e trinta, destacando a insuficiente autonomia do Estado para promover o planejamento da economia e a industrialização” (Lamounier, 1982: 418).

O que não era continuidade, e foi percebido em profundidade pelos pensadores isebianos, cepalinos e, principalmente, por Furtado, é que as conjunturas nacional (a

49 transição do rural para o urbano, do agrícola para o industrial) e internacional (um contexto de Guerra Fria e, no mundo capitalista, centro versus periferia, bem como o Estado interventor keynesiano) eram diferentes e desafiadoras em vários sentidos, possibilitando, por seu turno, a idéia de um rumo próprio para o Brasil. Essa idéia marcante, na versão de Furtado ou na de quaisquer outros isebianos, mesmo os próximos ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi fixada nos corações e mentes dos políticos e homens de cultura brasileiros dali para frente quase como se fosse um paradigma. Virou uma matriz cultural, uma referência inescapável, o centro de uma visão de mundo que galvanizou a atenção das principais lideranças da política e da cultura brasileira naquele momento histórico e, também, de forma mais difusa e contraditória, nos últimos quarenta anos marcados pela Ditadura Militar, Transição Democrática e tentativa de consolidação da nossa democracia.

É contra essa força política e cultural que os pensadores da tradição sociológica “paulista” (alguns paulistas apenas “espiritualmente”), “uspiana”, “cebrapiana”, etc irão se insurgir, como veremos adiante – sendo Fernando Henrique Cardoso a expressão máxima tanto acadêmica quanto política dessa crítica e da tentativa de construir uma visão alternativa, principalmente depois da derrota fragorosa e devastadora de 1964. Mas contra o que se insurgiram exatamente? Uma síntese bem apropriada nós encontramos em Bresser Pereira (1982 e 2004), repensando criticamente o conteúdo central do nacional-desenvolvimentismo e, de certa forma, fazendo não explícita “autocrítica” sobre os duros ataques desferidos àquelas visões, inclusive, várias vezes, por ele mesmo, mas principalmente por um conjunto de autores ligado ao “mundo intelectual tucano” – se é que podemos nos expressar assim.

Bresser Pereira denomina a visão isebiana de interpretação nacional-burguesa. “É a interpretação do Partido Comunista, e será principalmente a interpretação do Grupo de Itatiaia, que publica entre 1953 e 1955 a revista

Cadernos de Nosso Tempo, e afinal se reúne no ISEB que, depois de

diversos conflitos internos, é liquidado pela Revolução de 1964. Será também, embora em menor grau, a interpretação dos economistas da CEPAL” (Bresser Pereira, 1982: 273).

Segundo o autor, o ISEB reúne figuras exponenciais como o cientista político Hélio Jaguaribe (o principal formulador do grupo), o economista Ignácio Rangel e o sociólogo Alberto Guerreiro Ramos. São também personagens importantes Roland Corbisier, Cândido Mendes de Almeida, Álvaro Vieira Pinto e Ewaldo Correa Lima.

50 Nenhum deles é marxista, mas sofrem influência do marxismo. Marxista e figura central do instituto é Nélson Werneck Sodré, principal intelectual do PCB, que publica diversos trabalhos pelo ISEB – assim como o economista e pecebista Alberto Passos Guimarães (Bresser Pereira, 1982: 273-4).

A interpretação é oposta à da vocação agrária e crítica da cultura brasileira (“marcada pelo complexo de inferioridade colonial”). Portanto, o Brasil precisa de um novo projeto. A base é uma interpretação dicotômica da nação.

“De um lado, a oligarquia agrário-mercantil dominante, aliada ao imperialismo, opõe-se à industrialização brasileira e busca manter o status

quo semicolonial, semifeudal e primário exportador. De outro lado, sob a

liderança de Getúlio Vargas e depois de Juscelino Kubitschek, temos o grupo modernizante: a burguesia industrial nacional, as classes médias técnicas (os tecnoburocratas) e os trabalhadores urbanos, além de frações não-exportadoras da velha oligarquia. (...) É a „burguesia nacional‟, uma construção mental com certa base na realidade que, segundo a interpretação nacional-burguesa, seria nacionalista, industrializante, moderna e socialmente progressista, enquanto a burguesia agrário-mercantil seria tradicional, agriculturalista, colonial, antiidustrializante. [Os pensadores isebianos, assim, estavam aderindo às formulações de inspiração stalinista do PCB,] “transpondo (...) para o Brasil, de forma mecânica as etapas da história do marxismo vulgar” (Bresser Pereira, 1982: 274).

Apesar disto, “era também uma primeira manifestação da ideologia modernizadora, desenvolvimentista e eficientista da tecnoburocracia nascente no aparelho de Estado”. Homens como Jesus Soares Pereira, Rômulo de Almeida, Santiago Dantas e Roberto Campos “eram membros da tecnoburocracia que assumira o comando do desenvolvimento no seio do Estado populista”. Mas essa síntese geral não leva em conta particularidades do ISEB como a saída de Hélio Jaguaribe ou a divisão política da instituição entre a posição de esquerda não-marxista de Guerreiro Ramos e a ala marxista mais ortodoxa do PCB (Bresser Pereira, 1982: 274-5).

Tais idéias, segundo Bresser Pereira (ele mesmo um jovem pesquisador paulista