• Nenhum resultado encontrado

JÚLIA: Venha, Alice, me ajude a abrir essas janelas, desligue um pouco esse ar condicionado. (Inspira e expira o ar com força) Choveu agora há pouco, Alice? ALICE: Sim, choveu… a senhora só percebeu agora?!

JÚLIA: O ar quente que sobe do asfalto molhado, o cheiro de terra dos canteiros encharcados pela chuva entra sem pedir licença e invade meus pulmões. Não é maravilhoso, Alice?!(PRO.SOM, 2015 p.48 grifo do autor)

Lembramos que, num momento anterior à viagem no tempo, o cheiro de terra molhada, para a protagonista, estava relacionado com a memória dolorosa da perda de sua mãe, e também, do pai. Após passar pela experiência da viagem ao futuro, o cheiro de terra molhada e da chuva se torna uma experiência agradável, com o qual a protagonista se compraz. Entendemos, então, que o cheiro de terra molhada foi um recurso imagético utilizado no roteiro para que, aliado ao efeito sonoro de chuva, não apenas provocasse os sentidos do ouvinte do audiolivro, como também, pudesse demarcar a mudança da protagonista.

Quando retornar, a primeira atitude de Júlia, como podemos observar no roteiro, logo após a cena citada acima, é romper a hierarquia marcada, em especial, pelo pronome de tratamento usado por Alice para se referir à professora. Isso denota uma tentativa de se aproximar de Alice que, daquele ponto em diante, deixa de ser uma simples assistente para se tornar mais uma parceira de trabalho. Alice fica atônita com o comportamento de Júlia e não consegue, de fato, entender o que está acontecendo, como se pode observar:

Figura 26 – Versão 1 Diálogo 3 (15-06-2015 01:39)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Esta primeira versão, como podemos perceber pelo recorte citado, mostra que todo o texto está selecionado porque foi escrito em outro editor de texto e depois copiado no documento do Docs no Google Drive em sua íntegra. Assim, não tivemos acesso às mudanças ocorridas nessa parte do roteiro antes de aparecer como primeira versão no Docs. O mesmo que ocorreu com as modificações no diálogo 1, que podemos ver pela figura 14.

A segunda versão deste diálogo apresenta algumas modificações, que intencionam acentuar a mudança na personalidade de Júlia. Essas foram as mudanças destacadas em cores diferentes pelo próprio editor de textos do Google Drive que, como dito anteriormente, remetem às contas de email dos diferentes indivíduos que fizeram intervenções no texto no mesmo, ou quase no mesmo instante:

Figura 27 – Versão 2 Diálogo 3 (28/06/2015 15:49)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Vemos, na figura 27 que a palavra “nossa” em letra minúscula está tachada, ou seja, é um termo que foi apagado durante a escrita; e, logo depois, temos a inserção de “NOSSA” em letra maiúscula. Essa modificação denota a cumplicidade que Júlia estabelece com sua assistente, a quem convida, explicitamente, a fazer parte do projeto. Também observamos que é inserida a frase “Uma criança precisa de toda a atenção possível dos pais!”.

Na última versão deste diálogo, na figura 28, a seguir, observamos o trecho “limpo”, ou seja, sem marcações:

Figura 28 – Versão 3 Diálogo 3 (15/07/2015 16:24)

Fonte: Elaborado pela pesquisadora.

Os acréscimos observados demostram que a protagonista, até então, totalmente desinteressada quanto àquela subjetividade, ou seja, quanto Alice, sua dedicação àquele trabalho, assim como sua família, não apenas passa a considerar Alice como sua igual, como também, passa a atentar para as necessidades de sua assistente. A palavra “NOSSA” em letra maiúscula, denota a inclusão de Alice, por parte da protagonista, na importância da construção da máquina do tempo. Aquela deixa de ser uma empreitada realizada inteiramente por uma pessoa, ocasionando o apagamento de demais pessoas envolvidas, para tornar-se um trabalho que é reconhecido como tendo sido construído em conjunto.

O acréscimo da frase que orienta Alice aos cuidados com sua família, demonstra também a mudança em Júlia, que provavelmente, pode ter sido para sua assistente, bastante rigorosa, torna-se mais flexível e observadora.

Assim, quando Júlia retorna de sua empreitada científica, ainda que não tenha conseguido alcançar seu objetivo, torna-se uma pessoa diferente, mais atenta tanto a própria vida, quanto a vida das pessoas com quem, de certa forma, têm convivido, esta mudança demonstra de forma bastante potente a característica marcante do feminismo que:

[...] firmou um compromisso social, principalmente num país em que nasce pelo impulso e pela iniciativa de mulheres ativistas de esquerda, de presas políticas e de exiladas envolvidas com as lutas pela redemocratização e pela mudança social, ou seja, cercado por figuras que lutaram pela definição de uma identidade pública e ética da mulher prioritária à privada. (RAGO, 2004 p.9)

A protagonista não se torna uma ativista, que reivindica os direitos das mulheres. No entanto, quando Júlia abandona a postura radical de cientista que assumira, em especial, nas primeiras cenas, para buscar uma conciliação entre este espaço e o doméstico, o privado, com o intuito de também investir na sua própria qualidade de vida, além de assumir uma postura menos fechada, mais flexível; ela se torna capaz de abarcar, reconhecer e respeitar outras subjetividades, o que tem sido a postura do feminismo, principalmente, do feminismo brasileiro.

Como uma personagem redonda, ou complexa (FORSTER, 1998), a protagonista Júlia passa da caricatura de uma mulher individualista e arrogante, que se investe, inicialmente, apenas do papel de uma pesquisadora genial, para assumir a postura de uma mulher de carne e osso, dominada por menos radicalismos, alguém para quem não apenas a razão, mas também as emoções contam na vida. É interessante observar que este perfil de cientista esboçado pelas escritoras do roteiro da peça radiofônica, contém uma noção de sujeito que abarca características estruturantes da Ciência Moderna.

Em seu ensaio, “Da Crítica Feminista à Ciência”, em que Sardenberg (2007), apresenta a crítica feminista diante da ciência, em busca de uma epistemologia feminista, afirma sobre as características da ciência que:

Preenhe da razão dualista, cartesiada, característica do pensamento iluminista, tal estruturação é baseada em uma lógica binária, construída a partir de pares de opostos, por exemplo: sujeito/objeto, mente/corpo, razão/emoção, objetividade/subjetividade, transcendente/imanente, cultura/natureza, ativo/passivo, etc. Para as feministas, o ponto chave é que essas dicotomias se constroem, por analogia, com base nas diferenças percebidas entre os sexos e nas desigualdades de gênero. (SARDENBERG, 2007 p.95-96)

Sendo que os primeiros termos dos pares além de serem supervalorizados e de representarem, de fato, a ciência, e assim também, o homem; o outro lado da dicotomia é encarado como aquilo que deve ser subordinado, e que representa o feminino. Ora, discutimos anteriormente que tais pares se mostram irrealizáveis na realidade. No entanto, observamos que esses pares permanecem sendo perpetrados, afinal, mesmo as características estruturantes do saber científico são pensadas dentro de uma lógica de gênero, completamente excludentes em relação à mulher.

O que constatamos é que, na peça radiofônica em análise, a construção da personagem Júlia detém, de fato, uma personalidade para além do feminino caricatural, que era repleto de um discurso que visava inferiorizar a mulher e que se pautava numa perspectiva em que os aspectos biológicos da divisão entre os sexos costumava se sobrepor

sobre a noção do conceito de gênero como uma construção social.

O fato é que, no desfecho da história, a partir da análise da construção de Júlia, através de três diálogos distintos, observamos que a protagonista apresenta-se como uma mulher cientista, sem estar engessada, necessariamente, em um modelo de feminino ou de masculino. É uma subjetividade entre várias, não limitada por um padrão estereotipado de gênero. Trata-se de mais uma mulher entre diferentes mulheres, que vai sendo atravessada por diferentes experiências e se transformando, ao longo da trama, sem que possa ser aprisionada em um padrão feminino limitante, que a literatura, especialmente, nos séculos anteriores, costumava ser reproduzida.