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2.2 PETER WEISS E O TEXTO DE MARAT/SADE: A TENSÃO FICÇÃO/REALIDADE

2.2.1 Jean-Paul Marat e Marquês de Sade: contexto histórico

Marat, ao lado de Georges-Jacques Danton (1759 – 1794) e Maximilien

François Marie Isidore de Robespierre (1758 – 1794), foi um dos principais nomes da Revolução Francesa, que destronou a família real da França e

74 tornou-se um marco na história mundial. Marat era um médico reconhecido que se colocou à disposição da revolução e, por ter passado muito tempo em esconderijos sujos e nefastos, contraiu uma grave doença de pele. Para aliviar- se das dores causadas por ela, Marat passava horas em sua modesta casa dentro de banheira. Sua morte aconteceu no dia 13 de julho de 1793, e como é descrita na peça, Marat foi assassinado por Charlotte Corday enquanto estava na banheira.

Weiss refere-se ao passado de Marat com conhecimento sobre sua vida, atividade profissional ligada à ciência e à pesquisa, e ainda acrescenta que é dotado de explosivo temperamento:

Com dezesseis anos abandonou a casa paterna, estudou medicina, viveu alguns anos na Inglaterra, foi médico famoso, cientista desprezado, obteve honrarias sociais, mas, após haver já há muito, submetido a sociedade à sua crítica, colocou-se inteiramente a serviço da revolução e, por causa de seu temperamento violento e avesso às reconciliações, foi transformado num bode expiatório de crueldade (Weiss, 2004: 192).

Weiss revela a condição ideológica do personagem histórico Marat usando para isso documentos verídicos, como ele mesmo afirma nos apontamentos sobre a base histórica da peça: “As manifestações de Marat

durante a ação correspondem em seu conteúdo – às vezes com fidelidade

literal – aos escritos que deixou” (Weiss, 2004: 192).

Weiss tem extrema clareza no que interessa a ele como autor na confrontação ideológica movida por ele entre Sade e Marat. Tem particular interesse em estabelecer o confronto entre o individual e o social: “O que nos interessa na confrontação entre Sade e Marat é o conflito entre o individualismo levado ao extremo e o pensamento de uma revolta política e social” (Weiss, 2004: 190).

Ao pensar em Marat e na sua vida, percebemos a forte ligação com o contexto social desde o princípio de sua fase adulta. As opções que fez, como estudar medicina, por exemplo, direcionam o olhar para uma melhoria do conjunto.

75 Por sua vez, Donatien Alphonse François de Sade, o Marquês de Sade, tomou um rumo praticamente oposto ao de Marat. Nasceu em 2 de junho 1740 e morreu em 2 de dezembro de 1814. Era um nobre, rico, casado e tinha duas filhas. No entanto, sua vida mudou muito devido às sessões sexuais que promovia em seu castelo. A violência era fator recorrente desses fatos, e por isso foi preso diversas vezes. Em 1777 foi detido por causa de uma de suas orgias: das quatro mulheres envolvidas, uma delas foi morta. Sade ficou refugiado durante os cinco anos que antecederam sua prisão. Passou doze anos na prisão e foi transferido em 1789 para o Hospício de Charenton. No ano seguinte foi liberado. Chegou a viver na miséria com uma atriz da Comédie-

Française. Em 1801, foi novamente preso após ter escrito Justine – peça

teatral que narra a trama de uma pervertida religiosa. Depois de ter sido transferido de uma série de presídios, em 1803, o Marquês de Sade foi internado no Hospício de Charenton, onde representou suas peças. Tal atividade Sade já exercia antes do seu aprisionamento, pois costumava dirigir representações teatrais em seu palácio, La Coste.

Nos seus apontamentos sobre a base histórica da peça, Peter Weiss esclarece a produção artística de Sade nos treze anos de prisão (1801- 1814) até a sua morte:

Durante os treze anos de prisão – entre o seu 33º e 46º

anos de vida - escreveu dezessete dramas, além de suas grandes obras em prosa. Anos mais tarde, a este número acrescentaram-se mais cerca de doze tragédias, comédias, óperas, pantomimas e atos únicos rimados... de 1801 a 1814, ano de sua morte, Sade esteve internado no hospício de Charenton, no qual, durante alguns anos, teve a oportunidade de encenar peças, nas quais aparecia também como ator (Weiss, 2004: 189).

Em Charenton, como afirma Weiss, representou inúmeras peças e declamações, tornando o ato de vê-las um lazer requintado para a aristocracia parisiense. Também teria sido lá que Sade representou a morte de Marat em 1808, o que serviu de inspiração para Weiss escrever o texto em questão. No entanto, é uma ficção colocar ambos, Sade e Marat, tendo uma conversa antecedendo ao momento de sua morte. Um fato real, como já foi dito anteriormente, é que Sade foi quem pronunciou a oração fúnebre nos aparatos

76 fúnebres de Marat, como afirma Weiss. Mas ele não pode afirmar quais seriam suas verdadeiras intenções com esse gesto:

E mesmo nesse discurso sua relação com Marat permanece ainda duvidosa, já que o fez para salvar sua própria cabeça, pois nesse momento já se encontrava novamente em perigo, estando seu nome numa lista de futuros guilhotinados (Weiss, 2004: 190).

Mesmo sendo um lazer requintado assistir às peças de Sade, suas obras, por lidarem com questões perversas, amorais e violentas, somente foram analisadas e avaliadas apenas um século e meio após a sua morte.

A peça de Weiss em questão mistura ficção e fatos reais, como a Revolução Francesa, a morte de Marat e a estada do Marquês de Sade em Charenton, onde realmente dirigia espetáculos teatrais. Weiss estabelece dessa forma, em sua obra dramatúrgica, o encontro de personagens do povo, como o Coro, o Anunciador ou os internos em geral, com aqueles pensadores ou realizadores da revolução burguesa. Contextualizar tais personagens no manicômio e fazê-los representar como se fossem loucos indivíduos que seriam reais, sãos e agentes da história, como os atuantes da Revolução, estabelece um alicerce fundamental à tensão existente entre a ficção e a realidade criada pelo autor. Às vezes, tal encontro assume ares de confronto, o que dá à peça o seu caráter de conflito não apenas ideológico, mas fundamentalmente teatral. Na França de 1793, o povo estaria cobrando a prometida transformação social pela qual estaria passando em nome da liberdade e da igualdade prometidas pela revolução francesa:

Os quatro cantores e o coro:

Marat o que aconteceu com nossa revolução Marat não queremos mais esperar até amanhã Marat continuamos sempre gente pobre,

e queremos hoje as mudanças prometidas (Weiss, 2004: 111).

A obra baseada nos acontecimentos históricos, não pode ser lida como um fato histórico, mas sim como parte da história do teatro, já que foi repercutida e analisada em suas montagens que marcaram a arte teatral. Entre

77 estas, se destaca a encenação de Peter Brook que busca a acentuação das contradições oferecidas pelo texto do autor alemão, naturalizado sueco. Veillon comenta o escrito como uma forma de afastamento do caráter de mera reprodução histórica dos fatos: “Weiss foge da história como relato, recusando não somente tornar-se o contador da história, mas, mais radicalmente,

renunciando a chegar a ela por outro modo que não fosse a contradição”

(Veillon, 1985: 315 - Tradução minha)24.

Nesse sentido é possível considerar que a grande contradição seja oriunda da tensão ficção/realidade estabelecida na linha de ação do texto, em que os loucos representam grandes agentes da história em um contexto revolucionário importante, também pleno de contradições. Dentre essas contradições, as demandas populares que se confundem com o coro constituído pelos internos, são acentuadas no texto principalmente por meio do espírito crítico da música, tão ao gosto do Teatro Épico. Situando as necessidades do povo, o texto revela a profunda contradição da revolução, pois derrubando a aristocracia, a burguesia assumiu o seu lugar, como explicita Magaldi em sua análise sobre do texto de Weiss:

O radicalismo de Marat, que anuncia as ideias marxistas, define as limitações da revolução francesa, na qual a burguesia tomou para si os privilégios dos aristocratas. Marat viu as contradições de um poder que, para manter- se, logo coibiu as aspirações populares (Magaldi, 1989: 470).

Magaldi afirma em seguida “este seria o motivo da grande opressão exercida contra o povo e do grande número de assassinatos praticados em

nome da revolução”.

Weiss investiu um tempo maior que o previsto e uma dedicação grande para concluir Marat/Sade. A obra teve sua primeira redação no período compreendido entre fevereiro e abril de 1963, e sua continuação foi escrita entre novembro de 1963 e março de 1964 com a ajuda do encenador alemão Konrad Swinarski. O texto foi considerado pronto no dia 12 de março de 1964.

24“Weiss échappe à l´histoire comme récit en refusant,non seulement de s`en faire le conteur mais, plus radicalement, en renonçant à l´atteindre autrement que par la contradiction” (Veillon, 1985: 315).

78 Sua primeira publicação também aconteceu no ano de 1964 e foi encenada pela primeira vez no teatro Schiller de Berlim Ocidental sob a direção de Swinarski em 29 de abril de 1964.