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A TEATRALIDADE CINEMATOGRÁFICA EM MARAT/SADE DE PETER BROOK

Anatol Rosenfeld, teórico de teatro, observa no seu livro Teatro moderno (1985), quanto é teatral o texto Marat/Sade de Peter Weiss. A montagem já traria em si uma consistente proposta de encenação, tão minuciosamente elaborada que ele a associa a uma atitude barroca:

A música, a cenografia e a pantomima fazem parte integral da obra. Trata-se de “teatro teatral”, “teatro desenfreado” no sentido mais genuíno. Ocorre a lembrança do teatro barroco. Mas precisamente por isso a peça se filia a vigorosas tendências contemporâneas da cena brechtiana e claudeliana, principalmente ao antiilusionismo de um teatro que, na sua acentuação do elemento teatral, não visa à verossimilhança realista (Rosenfeld, 1985: 235).

Portanto, como afirma o teórico, a teatralidade está presente de maneira vigorosa no texto de Weiss. Assim, essa característica ajuda a reforçar a presença do elemento teatral na encenação de Marat/Sade de Peter Brook. A esse propósito, o teórico francês Patrice Pavis ressalta em sua obra A Análise

dos espetáculos que os recursos fílmicos fortalecem a sua presença:

Todos esses procedimentos fílmicos – escala dos planos,

cortes, defasagens – inscrevem o profílmico teatral (ou o

que resta dele) em um discurso de forte identidade fílmica, que não dá nunca a impressão de teatro filmado.

50 [...] Nesse Marat-Sade, todos os procedimentos fílmicos estão a serviço da teatralidade (2003: 104).

É perceptível a preocupação de Brook na transposição da peça para a linguagem do cinema. No entanto, sabemos que se trata de teatro, inclusive quando nos deixamos conduzir pelos acontecimentos, pois eles são sempre interrompidos, fragmentados e logo um instrumento toca, ou um grito ecoa, ou

até mesmo “o público” é mostrado, rompendo o fluxo dos acontecimentos. Por

essa linguagem fragmentada, Brook mostra quanto é teatral o seu filme.

Pavis chama a atenção para esse aspecto presente na obra fílmica: “Disso resulta um reforço da teatralidade no filme: permanecemos sempre conscientes que se trata de teatro, que tanto o cenário como os protagonistas são ‘falsos’, ou seja, são objetos estéticos e não uma fotografia da realidade” (2003: 108).

Em seu livro Dicionário de teatro, Pavis declara que a teatralidade “seria

aquilo que na representação ou no texto dramático é especificamente teatral (ou cênico) no sentido que o entende, por exemplo, Antonin Artaud quando constata o recalcamento da teatralidade no teatro europeu tradicional” (1999: 372). Por um lado, o autor faz referência à condenação de Artaud ao teatro europeu por ter aberto mão daquilo que é essencialmente teatral, isto é, por ter aberto mão de tudo que não está contido no diálogo, mas está contido no espaço. De fato, para este, “o teatro é a encenação, muito mais do que a peça escrita e falada” (Artaud, 1999: 40). Percebe-se aqui a valorização artaudiana

do espaço em detrimento da especificidade do texto. Ele sublinha: “Digo que a

cena é um lugar físico e concreto que pede para ser preenchido e que se faça com que ela fale a sua linguagem concreta” (1993: 31).

Por outro lado, para Pavis a teatralidade se relaciona com o que o

dramaturgo francês Arthur Adamov15 (1908 – 1970) chama de representação,

isto é, “A projeção no mundo sensível dos estados e imagens que constituem

15 Arthur Adamov é um dos quatro autores reconhecidos por Martin Esslin como fundadores do

teatro do absurdo: “Adamov, que é não apenas um notável autor dramático, mas também um notável pensador, nos proporciona um diagnóstico bem documentado das preocupações e obsessões que o levaram a escrever peças que pintam um mundo de insensatez e pesadelo, das considerações teóricas que o levaram a formular uma estética do absurdo, e, finalmente, do processo pelo qual ele, aos poucos, voltou a um teatro baseado na realidade, na representação de condições sociais, e com um objetivo social definido (Esslin, 1968: 79).

51 suas molas ocultas (...) a manifestação do conteúdo oculto, latente, que açoita os germes do drama” (Adamov apud Pavis, 1999: 372).

Assim, tanto a linguagem concreta do espaço, reivindicada por Artaud, quanto a projeção no mundo sensível de manifestações ocultas, afirmada por Adamov, remetem à origem grega da palavra teatro. Com efeito, o “theatron” revela uma propriedade fundamental ao teatro, “é o local de onde o público olha uma ação que lhe é apresentada num outro lugar” (Pavis, 1999: 372).

Consequentemente, Pavis afirma que “O teatro é mesmo, na verdade, um

ponto de vista sobre um acontecimento: um olhar, um ângulo de visão e raios óticos o constituem” (1999: 372). Nesse sentido, reconhece que o olhar do espectador pode incidir sobre a ilusão total que o envolve ou sobre nenhuma ilusão, ao lembrar a todo instante ao observador que ele se encontra no teatro.

Por fim, conclui dizendo que: “Tão-somente pelo deslocamento da relação

entre olhar e objeto olhado é que ocorre a construção onde tem lugar a representação” (Pavis, 1999: 372).

Já para a professora e pesquisadora teatral franco-canadense Josette Féral o conceito de teatralidade envolve não apenas o teatro, mas uma série de outras áreas do conhecimento e da vida. Dessa forma, Féral admite que a teatralidade pode ser encontrada em setores artísticos e não artísticos: nos rituais, carnavais, cerimônias religiosas, celebrações cívicas, coroações, desfiles de moda, esportes, religião, etc. Por outro lado, em consonância com a linha do pensamento de Pavis, que valoriza a relação entre o olhar e o objeto olhado, Féral afirma que a teatralidade é um fenômeno da recepção e diz respeito aos olhos de quem vê:

A teatralidade remete ao fenômeno da recepção vivido por um sujeito que vê algo; nesse sentido, a teatralidade desconstrói, decodifica e constrói um objeto que o sujeito olha. Sempre há alguém a quem se dirige uma mensagem e que a recebe, a decodifica, a constrói (Féral, 2003: 16 – tradução minha)16.

A teatralidade é, portanto, aí concebida como um fenômeno de recepção e diz respeito ao olhar do sujeito que a decodifica. Vista por esse ângulo, na

16 “La teatralidad remite al fenómeno de recepción vivido por un sujeto que ve algo, en ese sentido la teatralidad desconstruye, decodifica y construye un objeto que el sujeto mira. Siempre hay alguien a quien se dirige un mensaje y que lo recibe, lo decodifica, lo construye”.

52 filmografia de Brook a teatralidade surge a partir do olhar da câmera que se confunde com o olhar do espectador e vai ser decodificada por ele, espectador,

como sujeito que constrói uma realidade por ele observada — como, por

exemplo, nos momentos em que é mostrado o palco por inteiro, separado da plateia dos atores por grades.

Tal pensamento/prática está presente em Brook, que reafirma em seu livro A porta aberta o que declarara anteriormente, em O teatro e seu espaço: “Posso escolher qualquer espaço vazio e considerá-lo um palco nu. Um homem atravessa este espaço vazio enquanto outro o observa, isso é suficiente para criar uma ação cênica” (1999: 04).

Como vimos, a teatralidade repousa na relação que ocorre entre o sujeito que observa e o sujeito que é observado. No cinema de Brook, ou mais especificamente em Marat/Sade, a câmera conduz a ação, fazendo o papel do observador/espectador que vê as imagens que são apresentadas. Logo no início essas imagens advertem que o espectador está diante de uma representação, pois ele é conduzido pelo palco do teatro onde a peça dos internos irá acontecer. Dentro de sua ficção este espetáculo é dirigido pelo marquês de Sade, e isso é informado aos espectadores bem no começo. No entanto, como a câmera nos conduz a entrar ao espaço da encenação por onde os internos entram em fila, temos a impressão de que somos mais um

dos internos, como pode ser visto na imagem abaixo:

Imagem 5: Marat/Sade: começo da peça17.

17 Todas as imagens referentes ao filme Marat/Sade, foram produzidas por mim e pela jornalista

Cláudia Mussi, retiradas da obra por meio de um software que captura imagens diretamente do filme rodado pelo programa do computador.

53 A relação com o teatro é anunciada pelo texto e pelas imagens que o explicitam no sentido de reafirmar o caráter teatral do filme. Brook reafirma essa teatralidade ao mostrar a encenação dos internos do ponto de vista do espectador. A plateia localiza-se diante da sala de banhos do manicômio de Charenton, em Paris, o que faz com que o espectador reconheça que o que assiste é teatro visto pela última fileira de espectadores. A professora doutora da UFRJ Gabriela Monteiro, em seu artigo publicado na revista O Percevejo, vol. 02, comenta o tema:

Há um plano geral da cena que representa o olhar do espectador da última fileira do teatro. Esta tomada de câmera é repetida diversas vezes ao longo do filme, a fim de sublinhar a existência do público como uma marca de teatralidade, aproximando as linguagens cênica e cinematográfica (Monteiro, 2004: 10).

O fato pode ser visto na foto abaixo, em que há uma plateia que ilustra o momento no qual o olhar da câmera/observador é aquele que assiste à representação dos internos, enfatizando a teatralidade do filme. O espectador do filme é relembrado em vários momentos que está assistindo a uma peça, como pode ser visto na foto abaixo:

54 Nesse momento da obra podemos observar a presença de três grupos de plateia que assistem a encenação. O primeiro é composto pelos personagens, Colmier (diretor do hospício), sua mulher e sua filha, que estão sobre o palco, dentro do Hospício de Charenton, e assistem ao espetáculo pelo seu próprio olhar. O segundo grupo que assiste ao espetáculo está localizado em frente ao palco, separado dos internos por uma grade. O terceiro é composto pelo espectador que assiste ao filme por meio do olhar da câmera. Nos três casos, todos os sujeitos observadores sabem que estão diante de uma peça de teatro. A teatralidade de Brook evidencia que a encenação é a representação de uma peça teatral. As imagens exprimem em sua totalidade que tudo, ali, é teatro.

O trabalho dos atores de Brook é multiplicado pelo próprio texto, que se serve do fenômeno teatral para articular a sua estrutura dramatúrgica. Por sua vez, o sujeito sabe que se trata de teatro, que aquilo a que assiste é uma peça e, desse modo, referencia com maior rigor a presença da teatralidade, pois, como afirma Féral em palestra registrada no livro Acerca de la teatralidad: “Podem me dizer se encontraram teatralidade no filme e quais são os elementos da teatralidade que observaram, onde são postos e onde veem que existem. A teatralidade é justamente ver o que seus olhos viram como teatralidade na obra” (Féral, 2003: 18 - tradução minha)18.

Portanto, a teatralidade está nos olhos de quem vê e a imagem vista pelo sujeito trata do teatro sobre o teatro, pois, como foi observado anteriormente, há uma superposição do teatro no texto de Weiss, a qual permanece e se desdobra no filme de Brook. Nessa linguagem, o texto, os

diálogos, os sons, os atores, a música, os figurinos, os adereços — em suma,

tudo que a identifica se articula numa cadeia de signos, construindo uma encenação no espaço, cuja teatralidade é instaurada pelo olhar cúmplice da câmera com a imaginação do espectador. Nesse sentido, a câmera de Brook conduz com firmeza toda a ação; ela se confunde, intencionalmente, com o olho do espectador. Dessa forma, a câmera coloca o espectador diante de uma

18 Referindo-se ao filme O Baile, de Ettore Scola, dirigido no teatro por Jean-Claude Penchenat,

1982: “Me pueden decir si encontraron teatralidad en el film y cuáles son los elementos de teatralidad que observaron, dónde los ponen o donde ven que los hay. Justamente, es ver lo que sus ojos vieron como teatralidad en la obra”.

55 encenação que é construída por ela e desconstruída por ele respectivamente, como um jogo de signos.

Citando o encenador inglês Gordon Craig, Pavis concorda que “uma

obra de arte não pode ser criada, se não for dirigida por um pensamento único

(Craig apud Pavis, 1999: 123)”. E assegura que “a encenação proclama a

subordinação de cada arte ou simplesmente de cada signo a um todo

harmonicamente controlado por um pensamento unificador” (Pavis, 1999: 123).

Por sua vez, a encenação numa peça de teatro, segundo Artaud, é “a parte verdadeira e especificamente teatral do espetáculo” (Artaud, 1999: 125). Completando essa ideia, Pavis vai definir a encenação como a transposição da escrita dramática do texto. Para esclarecer esse pensamento, Pavis recorre também ao encenador suíço Adolphe Appia: “a arte da encenação é a arte de projetar no espaço aquilo que o dramaturgo só pode projetar no tempo” (Appia

apud Pavis, 1999: 123). Assim, ocorre com a encenação presente no filme e

com a teatralidade reduplicada em imagens para o espectador, as quais contam, ambas, o assassinato de Jean-Paul Marat. Elas desenvolvem-se com densidade, o que para Brook é fundamental ao teatro.

De fato, a densidade presente em um texto é objeto de pesquisa do grupo experimental no teatro shakespeariano Lamda (London Amateur

Dramatic Association – todos os atores também eram integrantes da Royal

Shakespeare Company) que tem por objeto a compreensão da sua origem,

como o próprio Brook esclarece, citado no artigo do estudioso de cinema Oliver-René Veillon:

A base de nossa pesquisa como grupo experimental dentro do teatro shakespeariano era compreender diretamente o que era a densidade ou, pode-se dizer, a simultaneidade dos níveis, a qual permitia a existência, em uma peça de Shakespeare, de um mundo muito rico, e, no mesmo momento, que, por outros meios, [houvesse] um mundo muito pobre [...] Tentamos entender qual era a natureza daquele tipo de trabalho, daquela tapeçaria, como os fios racionalistas e os fios emocionais misturam- se no teatro, em um mundo em que o destino individual, a política e a metafísica não estavam separados (Brook

apud Veillon, 1985: 312 – tradução minha)19.

19

“La base de notre recherche de groupe expérimental à l’intérieur du théâtre shakespearien était de comprendre directement ce qu’était la densité ou, on peut dire, la simultanéité des

56 Brook valoriza a densidade de um texto como grande questão do teatro contemporâneo, cuja existência estabelece a diferença entre uma boa peça e uma peça medíocre:

Qual a diferença entre uma peça medíocre e uma boa peça? Acho que existe um modo muito simples de compará-las. O espetáculo teatral é uma sequência de impressões: pequenos golpes, um após outro, fragmentos de informação ou de sensações numa progressão que estimula a percepção da plateia. Uma boa peça emite muitas dessas mensagens, geralmente várias ao mesmo tempo, aglomeradas, conflitantes, sobrepondo-se umas às outras. Tudo isso excita a inteligência, os sentimentos, a memória, a imaginação. Numa peça medíocre, as impressões são muito espaçadas, sucedem-se em fila única, e nas lacunas o coração pode tirar um cochilo, enquanto a mente vagueia entre as preocupações do dia e as perspectivas do jantar. Este é o maior problema do teatro contemporâneo: como criar peças mais densas? (Brook, 1995: 72)

E assim, em 1964, na busca pela densidade de um texto contemporâneo, Brook se depara com Marat/Sade de Peter Weiss, um texto em que existem sequências de impressões, informações abundantes, possibilidades de promover diferentes sensações aglomeradas e conflitantes. Um texto que, nesse sentido, sugere a sua densidade a partir do próprio título, que reúne a história e a ficção, isto é, o teatro do manicômio representando o teatro da revolução burguesa em um jogo dramatúrgico que envolve o teatro dentro do teatro. A superposição da representação sobre a representação que estrutura o texto e o espetáculo pode ser identificado no título, o qual reconhece o caráter de representação que estrutura o texto: A perseguição e

assassinato de Jean-Paul Marat representados pelo grupo teatral do Hospício de Charenton sob a direção do senhor de Sade.

niveaux qui permettait, dans une pièce de Shakespeare à un monde très riche d’exister, dans le même intervalle de temps que, par d’autre moyens, un monde très pauvre. (...) On a essayé de comprendre quelle était la nature du métier, de cette tapisserie, comment les fils rationalistes et les fils émotionnels s’entremêlaient dans le théâtre, en un monde où le destin individuel, la politique et la métaphysique n’étaient pas separés.”

57 Nessa proposta há uma duplicação revelando as contradições expostas, ora buscando o envolvimento da plateia na ação, que conduz ao assassinato

de Marat — numa perspectiva relacionada ao pensamento de Artaud —, ora

distanciando a plateia para que pense criticamente sobre o que observa — postura relaciona ao ideal de Brecht. Aspectos da teatralidade serão analisados no decorrer do trabalho sob o viés do envolvimento do espectador na cerimônia em que está inserido ou sob a ótica do distanciamento do espectador, refletindo criticamente sobre o que lhe é apresentado.

Em todos os campos, Peter Brook não demonstra ser um teórico, mas um homem da prática, inquieto e inovador, que encontra instintivamente na imagem o ponto de partida para a sua produção teatral.

O diretor inglês utiliza o mesmo elenco e quase todo cenário em que a encenação se desenvolveu. O filme foi gravado logo após a última temporada realizada pelo grupo em Nova York, com tempo de filmagem de duas semanas em um estúdio reproduzindo o teatro. Uma das curiosidades do trabalho foi ter no elenco a atriz Glenda Jackson, nascida em 9 de maio de 1936. Foi seu segundo trabalho no cinema, no papel de Charlotte Corday, a mulher que assassinou Marat, no filme Marat/Sade. Durante sua carreira, Glenda ganhou

muitos prêmios, principalmente no campo cinematográfico — incluindo dois

prêmios Oscar de melhor atriz, dois Emmys e um Globo de Ouro. Seu trabalho como atriz foi e é reconhecido internacionalmente. Atualmente, Glenda é deputada de Hampstead and Kilburn, na Inglaterra. Brook declarou grande afinidade e admiração pela atriz:

[...] sua particular qualidade era uma originalidade orgânica que tornava o que quer que ela fizesse

inesperado, diferente, embora nunca evasivo – ela

ultrapassava clichês para revelar uma faceta mais verdadeira e mais precisamente observada do comportamento humano. Porém a imagem que eu trago mais vividamente de todo o trabalho que fizemos juntos

não é dela ao atuar – é a de Glenda observando. Durante

horas a fio, desde o primeiro teatro da crueldade, eu vejo Glenda, encolhida em um canto, imóvel, em silêncio, crítica, sem perder nada (Brook, 2000: 190).

58 Na montagem pesquisada não se deve negar a existência das características específicas do cinema que estão presentes. Brook se utiliza de inúmeros recursos de câmera com o objetivo de aproximar o espectador das sensações presentes na peça ou fazê-lo refletir sobre os fatos que as determinam. Não é o objetivo deste trabalho analisar os recursos da câmera utilizados em Marat/Sade, mas o olhar que ela produz, as imagens observadas

pelo espectador, produtoras da teatralidade: “Minha obsessão com o cinema

me ajudava a compreender que uma peça é também um carretel que se

desenrola; a sua verdade ganha existência imagem a imagem” (Brook, 2000:

59).

Desse modo, Brook constrói o cinema como um verdadeiro teatro cujas imagens atingem o espectador com força, instaurando uma tensão entre sentimento e pensamento, a qual estrutura o potencial cinematográfico que consiste em criar a sua própria teatralidade:

No teatro a atenção de todo mundo varia constantemente de objeto. Às vezes alguém se concentra na ação principal, às vezes em um ator que está no fundo do palco, às vezes vê detalhadamente o palco, às vezes toma consciência da presença do público [...]. Nenhuma câmera ou microfone pode recriar tais condições diretamente, mas eles podem orientar a atenção e concentrá-la, e também servir a ação secundária. O cinema pode produzir sua própria teatralidade (Brook

apud Veillon, 1985: 318 – tradução minha)20.

Brook reconhece que o elemento básico de qualquer peça teatral é o diálogo, que evoca, pela divergência, uma tensão e, por consequência, o conflito:

O ponto básico de qualquer peça é o diálogo que supõe tensão e presume que duas pessoas não estejam de acordo. Temos aí o conflito; se é sutil ou manifesto, não importa. Quando dois pontos de vista se chocam, o

20

“Au théâtre l’attention de chacun change constamment d’objet. Parfois vous focalisez sur l’action principale, parfois sur un acteur à l’arrière-plan, parfois vous détaillez la scène, parfois vous prenez conscience de la présence du public (...) Aucune caméra ni aucun micro ne peut recréer ces conditions directement, mais ils peuvent orienter et focaliser votre attention et servir aussi bien l’action secondaire. Le cinéma peut produire sa propre théâtralité”.

59 dramaturgo é obrigado a dar a cada um deles um peso equivalente de credibilidade, se não conseguir fazê-lo o resultado será fraco. Devo explorar duas opiniões contraditórias, com o mesmo grau de compreensão