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Capítulo 5. O conceito de jogo nas abordagens críticas e a contribuição de Vigotski e Elkonin

5.2. O jogo e a criatividade

O professor tem a oportunidade de ser um organizador, com intencionalidade, da apropriação do conhecimento e das aptidões dos sujeitos. Segundo Vigotski (1987), quanto maior a diversidade de vivências proporcionadas às crianças, maior possibilidade de criação e diversidade dos jogos.

Vigotski (2009) compreende a imaginação como uma atividade humana que combina fatos ou impressões vividas, criando novas imagens e ações. Em outras palavras, criatividade é criar algo novo, a partir da combinação de elementos tomados da realidade, em que aspectos subjetivos e particulares do sujeito intervêm nessa combinação.

Segundo Vigotski (1987, p. 1), a criatividade é um“tipo de actividad del hombre que cree algo nuevo, ya sea cualquier cosa del mundo exterior producto de la actividad creadora o cierta organización del pensamiento o de los sentimientos que actúe”.

A criatividade, de acordo com Vigotski (1987) é a capacidade humana de reelaboração, de produção de algo novo, a partir de elementos da realidade objetiva e estes elementos não são escolhidos ao acaso; eles são escolhidos e reelaborados em função da organização do pensamento e dos sentimentos, o que confere o caráter único, novo e subjetivo do produto criado.

Entretanto, para Vigotski (1987), existe uma distinção entre atividade reprodutora e atividade combinatória e criadora. A primeira está em estreita relação com a memória e se refere a tudo o que é reproduzido a partir de um modelo, de uma situação anteriormente

106 vivida e que é repetida num determinado momento. Portanto, a atividade reprodutora somente existe diante da nossa experiência, repetindo-se com maior ou menor exatidão algo que se viveu no passado. Neste sentido, a conservação da experiência anterior é muito importante para a vida do sujeito, podendo ele repetir tais situações em momentos que requerem comportamentos semelhantes para resoluções de problemas similares; ou seja, diante de uma situação-problema, os indivíduos recorrem à situações anteriormente vividas, às experiências passadas, repetindo comportamento semelhante para resolução de problemas similares. A segunda, denominada de atividade combinatória e criadora, está em estreita relação com a imaginação; parte de uma situação nova para o indivíduo e cria novas ações, a partir de situações vividas, modificando elementos que foram retirados da realidade. Conforme denomina Vigotski (1987, p. 4), a atividade combinatória é a “habilidad para organizar los elementos, combinar lo viejo con lo nuevo constituye la base de la creación”.

Para Vigotski (1987), a criatividade é a habilidade para organizar os elementos de experiências passadas com elementos de experiências presentes, combinando-os e dando-lhes uma nova constituição. .

A atividade combinatória e criadora supera a atividade reprodutora, ou seja, “a possibilidade de criar constitui-se, no desenvolvimento humano, em consonância com a constituição da consciência, e revela uma relação entre o homem e seu entorno que supera a simples reprodução do que já é conhecido” (ZANELLA et al, 2003, p. 144).

Conforme pontuado por Vigotski (1987, p. 2), “El cérebro no solo es órgano que conserva y reproduce nuestra experiencia anterior, sino que también es el órgano que combina, transforma y crea a partir de los elementos de esa experiência anterior nuevos ideas y la nueva conducta.”33.

Para Vigotski (2009), a criatividade é uma realização humana, desde a criação de objetos mais simples e habituais até níveis mais elevados de criação, seja essa criação produzida individual ou coletivamente.

A criatividade, segundo Vigotski (2009), não é um estado pronto e final; ela é um processo dinâmico, que inicia desde a infância, lenta e gradualmente, por formas elementares e simples, ascendendo para outras mais elaboradas. Portanto, criar algo novo pode levar um

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Segundo Vigotski “[...] o cérebro não é somente um órgão que conserva e reproduz nossa experiência anterior, senão é um órgão que também combina, transforma e cria, a partir de elementos dessa experiência anterior novas ideias e novas condutas.”.

107 tempo maior do que o esperado e muitas vezes nem mesmo efetivado de fato, ficando apenas no campo das ideias.

Cada período do desenvolvimento corresponde a uma forma típica de criação e ocupa um compartimento em conjunto com outras formas de atividades, especialmente ligada a experiências vividas.

Segundo Vigotski (2009), a criatividade é constituída desde a infância e prolonga-se por toda a vida, num processo infindável, a partir das experiências passadas, combinando elementos tomados da realidade e situações vividas anteriormente. Nesse sentido, a variedade e riqueza de experiências vividas e acumuladas pelo homem aumentam as chances de combinar elementos e de produzir novas imagens, objetos e situações. Assim, a criatividade tem completa ligação com o jogo, principalmente no momento em que a criança ingressa na escola e a brincadeira deixa de ser atividade principal; mas, conforme mencionado acima, a criança não deixa de brincar, apenas incorpora outros motivos, necessidades, conteúdos e significados à brincadeira. . Nesse sentido, propiciar à criança experiências diversificadas, ricas e elaboradas, contribui para o processo de criação.

Vigotski (1987) explica o desenvolvimento da imaginação, situando-o em dois períodos. Um período que corresponde à idade da criança pequena e outro que compreende à idade pré-escolar e escolar até à adolescência. A passagem de um período ao outro é denominada de período de trânsito, assim, existem dois períodos de trânsito, seguidos por uma fase crítica.

No período inicial em que se encontra a criança pequena, mesmo que a situação imaginária não exista e ela esteja presa à percepção direta/imediata dos objetos, tudo o que a criança vê e escuta constitui os primeiros pontos de apoio para sua futura criação, acumulando material com o qual depois estrutura toda sua fantasia. Esse material passa por um processo de dissociação e associação, dividido em partes e cada uma delas se destaca em comparação com as demais, umas partes se conservam e outras são descartadas, sendo este processo de dissociação a condição necessária para a atividade futura da fantasia.

Na segunda infância, a criança consegue dissociar/separar características de elementos reais diferentes (objetos, imagens e características das pessoas) próximos ao seu convívio pessoal, dividindo-os em partes, e cada uma delas se destaca em comparação com as demais, umas partes se conservam e outras são descartadas. Este processo é denominado de dissociação.

Nesse período, a criatividade está em completa movimentação nas atividades das crianças. Mesmo que ela esteja presa aos seus interesses e vivências pessoais, nos jogos de

108 papéis sociais a criança imagina que um cabo de vassoura é um cavalo, que a boneca é sua filha, que ela é o gato ou o rato, mostrando nesses jogos a mais intensa atividade criativa.

Predominam os jogos de papéis, exemplos clássicos de criação das crianças, ou seja, quando a criança imagina que está montando num cabo de vassoura como se fosse um cavaleiro, a menina que imagina que é mãe quando brinca com sua boneca, quando numa brincadeira a criança imagina-se como um bandido.

Nesses jogos, as crianças reproduzem muito do que observam e veem acontecendo no mundo mais amplo dos adultos, imitam situações, papéis e ações anteriormente vivenciados, mas nunca reproduzem de maneira igual à situação real. Conforme afirma Vigotski (1987),

El juego del niño no es el recuerdo simples de lo vivido, sino la transformación creadora de las impresiones vividas, la combinación y organización de estas impressiones para la formación de uma nueva realidad que responda a las exigencias e inclinaciones del propio niño. De igual forma, el deseo de los niños de crear es tan actividad de imaginación como el juego (VIGOTSKI, 1987, p. 3).

Segundo Vigotski (1987), o jogo da criança não é a imitação pura de algo vivido, senão a transformação dessas experiências, as quais são combinadas e organizadas com uma nova formação, de acordo com o sentido dessas experiências e das preferências da própria criança, o que confere ao jogo a produção do novo.

Vigotski (1987, p. 4) atribui o surgimento dos produtos da fantasia à experiência anterior do homem, afirmando que “ toda creación de la imaginación siempre se estructura con elementos tomados de la realidad”34

Segundo Elkonin (1998), nos jogos de papéis sociais ou protagonizados, as crianças imitam o mundo dos adultos e reproduzem em suas brincadeiras situações reais, mas a reprodução nunca é uma cópia fiel, sempre contém um elemento criativo, reelaborando as experiências vividas de acordo com seus afetos e necessidades.

Nesse sentido, pode-se criar graus de combinação cada vez mais novos e mais diversificados; por isso, a importância de se adquirir e se apropriar de maior quantidade de conhecimentos intelectuais e científicos acumulados pela humanidade, em função da possibilidade de extrair da experiência adquirida elementos da realidade, aumentando, assim, sua atividade combinatória, permitindo maior grau de combinação, ou seja, “la actividad

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Segundo Vigotski “[...] toda criação da imaginação sempre se estrutura com elementos tomados da realidade.”.

109 creadora de la imaginación depende directamente de la riqueza y la diversidade de la experiencia anterior”.35 (VIGOTSKI, 1987, p. 5).

A criatividade tem uma relação muito estreita com a imaginação e se processa dialeticamente; ao mesmo tempo que a imaginação depende da experiência, a experiência depende da imaginação, como se fosse um vai-vem entre fantasia e realidade. Em outras palavras, quando se imagina alguma coisa, está se levantando hipóteses e, para isso, a experiência é muito importante. Da mesma forma, quanto maiores, mais ricas e diversas forem as experiências, maiores serão as condições de poder imaginar determinada coisa.

De acordo com Vigotski (1987), para desenvolver a imaginação, o trabalho pedagógico com crianças no período escolar deveria ser orientado para a exercitação da imaginação, constituindo-se uma das uma das forças principais do processo de realização desse objetivo.

No que se refere à constituição dos jogos, ao longo da história da humanidade o homem foi combinando elementos culturais e produzindo novas formas de jogar. Elkonin (1998) relata a diferença entre os jogos praticados pelos povos primitivos e os atuais, em que as regras e a forma de jogo são completamente diferentes. Essas mudanças na forma de jogar ao longo dos anos são devidas às s regras, que foram combinadas e submetidas à imaginação por parte de seus organizadores e participantes.

Estas mudanças contêm a cultura humana, a mão e o trabalho do homem, que ao longo dos anos se apropriou de ferramentas e materiais, aperfeiçoando tecnicamente os objetos e configurando-os em fantasia cristalizada (VIGOTSKI, 2009).

Neste sentido, tudo o que existe no mundo é produzido (criado) pelo homem como meio para satisfação das suas necessidades humanas, que é significado pelo sujeito, baseado na imaginação. Nesse sentido, qualquer jogo criado pelas crianças ou pelos adultos foi pensado, elaborado e planejado, primeiramente nas ideias, antes de serem praticados. A capacidade de o ser humano antecipar suas ações e planejá-las antes de executá-las é uma função possibilitada pelo domínio da linguagem, signo social que auxilia o ser humano a pensar sem necessariamente a presença do objeto, capacidade do ser humano de representação, do pensamento abstrato.

Os animais também brincam, mas não existe processo de criação nas atividades lúdicas deles. A atividade lúdica dos animais é um processo inicial que não pode ser

35 Segundo Vigotski “[...] a atividade criadora da imaginação depende diretamente da riqueza e da diversidade

110 considerado com base na realidade social, os animais não possuem as funções psicológicos superiores e suas atividades são pautadas por instintos biológicos.

A criatividade não é um dom e esta é uma questão fundamental para a psicologia e para a educação. Ela pode ser ensinada e aprendida, o que sugere que o aprendizado impulsiona o desenvolvimento da imaginação, cabendo ao papel do professor propor estratégias para que os alunos obtenham experiências ricas e variadas durante a realização de suas aulas.

Em decorrência dessas breves exposições, podemos pressupor que se o homem fosse um ser totalmente adaptável, sem momentos contraditórios, sem crises, ele não teria desejos, necessidades, aspirações e não poderia criar nada; no entanto, o ser humano vive em constante procura de superação, de viver intensamente cada minuto da vida de forma dinâmica, disso deriva o prazer gerado quando se encontra frente a um problema, ou a uma situação desafiadora, que esteja além de suas possibilidades reais.

Vigotski (1987, p. 13) afirma que “la creación es um processo articulado historicamente, donde toda forma seguinte está determinada por las precedentes”36, e que

todo inventor ou gênio é fruto do seu tempo e do seu meio, sendo que a criação parte das necessidades que estão criadas antes dele e apoia-se nas possibilidades que estão além dele, ou seja, quanto mais ricas e mais diversas forem essas experiências maiores condições de criar o indivíduo terá.

Em outras palavras, a imaginação criadora acompanha cada período de desenvolvimento infantil e é modificada de acordo com as relações sociais que o ser humano vai constituindo com a sociedade. A imaginação da criança é considerada, por muitas teorias, como mais rica que a do adulto, porque na medida em que se vai crescendo a imaginação vai minando. Vigotski (1987) era contrário a tais teorias, destacando que a imaginação da criança não é mais rica e variada que a do adulto, mas o próprio desenvolvimento que é diferente; quer dizer, os interesses, a relação com o meio, as particularidades próprias de cada período de desenvolvimento é que diferem em relação às do adulto. Na concepção de Vigotski, a imaginação não é uma questão de estágio de desenvolvimento, depende de determinantes e das condições sociais e históricas nas quais as pessoas se encontram.

Um exemplo destas determinações pode ser exemplificado pelo fato de que a sociedade aceita como característica da criança a expressão mais livre e espontânea e não aceita o mesmo do adulto; tal significação social é o que, na maioria das vezes, dificulta a

36 Segundo Vigotski, “ a criação é um processo articulado historicamente, em que toda forma seguinte está

111 expressão da imaginação no adulto. O adulto está constantemente preso a certas normas e exigências sociais, que acabam por minar a expressão da imaginação; todavia, sem dúvida, a experiência da criança é menor que a do adulto.

Diante disso, podemos afirmar que os modos de expressão da imaginação são determinados pelas condições sociais e históricas e dependem necessariamente do lugar que a criança ou adulto ocupa na sociedade em cada momento histórico e da quantidade e da qualidade das experiências anteriormente vividas na constituição desse processo, as quais são constituídas por meio das relações entre adulto-criança e da aprendizagem. Para uma maior compreensão dessa relação, é necessário um estudo mais aprofundado sobre a situação da criança na sociedade e nas relações estabelecidas entre adulto-criança, o que no momento não é foco do nosso estudo.

No entanto, cabe ressaltar que todas as transmissões da cultura são feitas por meio da atividade mediada pelos seres humanos. Se o professor, teoricamente, é quem deveria deter experiências mais ricas e variadas, devido ao seu papel dentro da escola e de sua experiência, se existe a possibilidade de criar o novo, então, acreditamos ser possível criar coletivamente novos jogos com o caráter de humanização, superando os jogos praticados com ênfase no rendimento – aqueles que tentam ser cópias fiéis dos jogos tradicionais veiculados na mídia e que atendem a interesses ideológicos da classe burguesa dominante, ou, ainda, que mascaram os problemas sociais da humanidade. Entendemos o jogo como uma atividade de possibilidades, uma condição comum a todos os sujeitos que vivem em sociedade. Acreditamos também que, embora em nossa sociedade contemporânea seja privilegiado o individualismo, é na coletividade, por meio do trabalho, que o individuo ao mesmo tempo se humaniza, transforma-se e transforma a sociedade. Nas palavras de Gonçalves e Bock (2009, p. 127), refletir entre o individual e o coletivo “traz a possibilidade de uma consciência que não é individual e autofundante ou autoiluminada, mas constituída a partir da ação, do trabalho, o que só ocorre coletivamente.”.

Assim, podemos destacar que Vigotski trabalha com a ideia de reelaboração, reconstrução. O professor de Educação Física, no seu fazer pedagógico com o jogo, pode trabalhar de forma intencional para que tal objetivo seja alcançado, sendo um mediador do processo de conhecimentos e de aptidões do sujeito, promovendo seu desenvolvimento.

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