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Capítulo 1 – Video game: as pedras fundamentais se desmancham no ar?

1.4 Jogos sob as lentes do drama?

Autores, das mais diversas linhas de pensamento, tais como Boal (2002), Courtney (1980), Esslin (1978), Huizinga (2008) e Murray (2003) escreveram sobre relações entre o jogo e drama ou, de tão natural que lhes pareceu, usaram termos de ambas as teorias nos seus trabalhos sem aprofundamento. Huizinga (2008, p. 133) sugere que as raízes da poesia estão no jogo e que das formas poéticas a que mais mantém relação com o jogo é o drama. Já Murray (2003 p. 140), chega a afirmar que “Todo jogo, eletrônico ou não, pode ser vivenciado como um drama simbólico.” Não me parece profícuo tentar aqui concluir se o drama é uma forma de jogo ou o contrário. Mas é evidente que entre jogo e drama há muito em comum, independentemente das suas respectivas raízes. Sobre tal assunto há uma vasta bibliografia, entretanto, dado o caráter deste trabalho, destaco autores que discutam aspectos das relações estabelecidas entre drama e o tipo de jogo que é objeto da presente pesquisa, os video games.

Em Hamlet no holodeck, Murray (2003) desenvolve um estudo de perspectivas para as práticas narrativas no ambiente eletrônico. A autora ressalta as especificidades das novas mídias e as alterações nas formas tradicionais de contar histórias decorrentes da imersão no meio digital. Dentro desse contexto inclui os jogos como forma de narrativa dramática multilinear que mantém similaridades com o drama tradicional (ação, conflito, representação, suspensão da descrença...), mas que se distingue deste no que é próprio dos ambientes computacionais. Tais ambientes seriam procedimentais, participativos, espaciais e enciclopédicos. Ser procedimental, do ponto de vista de Murray (2003. p. 78), significa “ser capaz de executar uma série de regras.” Dessa forma, o computador pode incorporar comportamentos baseados em regras gerais ou exatas. A segunda característica do meio digital para Murray (2003, p.80), extremamente relacionada com a primeira, é sua organização participativa:

Achamos os ambientes procedimentais atraentes não apenas porque eles exibem comportamentos gerados a partir de regras, mas também porque podemos induzir o comportamento. Eles reagem às informações que inserimos neles. Assim como a propriedade de representação primária da câmera e do projetor de

cinema é a reconstituição fotográfica da ação no tempo, a propriedade de representação primária do computador é a reconstituição codificada de respostas comportamentais.

Murray (2003, p. 84) defende o meio digital como espacial em oposição à literatura ou ao cinema, meios em que o espaço é representado pela descrição verbal e pela imagem; segundo a autora, só o meio digital possibilitaria uma experiência de exploração do espaço. Por fim, o ambiente computacional seria enciclopédico na medida em que apresenta uma capacidade de armazenamento de dados muito superior às outras mídias, permitindo assim a criação de “[...] narrativas entrecruzadas que formam uma rede densa e de grande extensão.” (MURRAY, 2003, p. 89) Ao opor as quatro características do meio digital aos suportes tradicionais do drama, Murray (2003) desconsidera algumas experiências no teatro em que há exploração do espaço e participação dos espectadores tal como ocorre no Teatro do Oprimido, do brasileiro Augusto Boal. Desconsidera também o lugar do ator, que faz parte do ato de contar a história como agente e espectador de modo muito similar ao jogador que participa da ação. O ambiente teatral pode ser até mesmo procedimental, obviamente com uma diferença de grau em relação ao meio digital. É possível verificar-se, por exemplo, uma organização procedimental na dramaturgia de Armand Gatti que propõe regras para o desenvolvimento da ação de acordo com as reações da plateia. Já o caráter enciclopédico não é possível de se verificar em nenhum meio anterior ao digital.

Outra referência teórica importante para o desenvolvimento desta pesquisa é a obra Computer as Theatre (LAUREL, 1993), em que A Poética de Aristóteles, e a teoria do drama que dela deriva, é minuciosamente analisada e proposta como referência para o desenvolvimento de softwares. Embora o foco do trabalho de Laurel não seja o desenvolvimento de jogos, a autora os coloca entre os possíveis beneficiados por uma abordagem dramática. Da tradição de escrita dramática derivada dos escritos aristotélicos, Laurel (1993) extrai procedimentos para estruturar a ação mimetizada em suporte computacional, composição de personagens e linguagem verbal em meio digital.

Já o trabalho Videogames of the oppressed (FRASCA, 2001), ainda que escrito por um ludologista, reconhece a impossibilidade de privar o jogador da construção de significados, e dado este fato, propõe um estudo da possibilidade de construir jogos que estimulem o pensamento crítico e o debate. Para tanto, o autor se baseia no teatro do oprimido, uma poética desenvolvida pelo encenador e teórico brasileiro Augusto Boal. No entanto, muito embora

descreva os procedimentos utilizados em algumas formas do teatro do oprimido (Teatro Fórum, Teatro Invisível, Arco-íris do Desejo), o interesse de Frasca no trabalho de Boal é mais ideológico que formal. Frasca deseja criar jogos que estimulem o seu usuário a uma análise crítica (a partir de ações) sobre o processo de opressão, assim como fez Boal no Teatro.

Os trabalhos supracitados abrem espaço para esta dissertação. Confirmam a procedência de se estudar os video games sob as lentes do drama e fornecem pistas das possíveis relações entre drama e estes jogos, ainda que não se debrucem sobre estas. O que essa pesquisa propõe, num sentido contrário, é verificar como o desenvolvimento tecnológico interferiu nas possibilidades de uso de procedimentos dramatúrgicos nos jogos produzidos para console para então fundamentar o conhecimento sobre o gênero dramático em face da observação da sua presença nos video games. Desse modo, segue-se o segundo capítulo em que verifico estratégias de composição dramatúrgicas ao longo das sete gerações de consoles de video game.