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No início do século XIX, as cidades foram projetadas a partir de perspectivas higienistas, retirando-se do espaço público o excesso de movimentação, a fim de setorizar os espaços da urbe. Neste contexto, os modelos modernistas de cidade preocupavam-se com uma arquitetura que servisse à melhoria na produção e circulação das mercadorias, perdendo-se os espaços comunitários, instaurando-se uma cidade racionalizada e produtora de formas homogêneas de vivências com as cidades (Zanella et al., 2012a).

A perspectiva de cidade, inaugurada pela modernidade, faz coro ao conceito que Hissa (2008) nos apresenta sobre ambiente, o qual ele define como “aquilo que a todos circunda, rodeia, envolve: seres vivos, objetos e suas relações.” (p. 260). O ambiente, no entanto, é visto sempre como o outro, distante de mim, apresentando a dicotomia das relações existente entre os sujeitos e destes com “o ambiente” em que vivem. Portanto,

Diante dos valores que cultiva ao longo da trajetória da modernidade, tendo como referência uma ética que permanentemente fabrica um ser estrangeiro dentro de si, o homem exterioriza o ambiente como se dele não fosse feito. Como se, ele próprio, não fosse o que, rotineiramente, produz e consome. Diante do que produz e consome, por intermédio do que faz e no que se

transforma, o homem é o ambiente transformado em estrangeiro frente a si mesmo (Hissa, 2008, p. 265).

No entanto, “a cidade e seus habitantes, ainda que sujeitos a políticas de modelização e a modos hegemônicos de subjetivação, não se deixam modular” (Zanella et al., 2012a, p. 124). As cidades racionais, pensadas pelos arquitetos e projetadas como espaços modulares/modulantes, não são as mesmas cidades vivenciadas pelos sujeitos nas suas relações. Essa perspectiva é encontrada atualmente em estudos que consideram a cidade a partir das relações que os sujeitos estabelecem entre si e com os espaços da mesma. Como “produção social, obra do homem, a cidade é, também, o homem que se transforma na sua criação: o homem é a cidade” (Hissa, 2008, p. 266).

Nesta pesquisa, utilizamos autores que reconhecem as diversas vozes sociais existentes na urbe. A cidade é vista enquanto diversa e múltipla no seu contexto e nas relações estabelecidas com os sujeitos que as compõem (BARBOZA, 2012; CANEVACCI, 2004; LEVITAN; FURTADO; ZANELLA, 2009; MAGNANI, 2005; HISSA, 2008; ZANELLA et al., 2012b; NOGUEIRA, 2009).

Cabe aqui articularmos o que compreendemos por cidade com o conceito de espaço apresentado por Nogueira (2009). A autora aifrma que espaço é “a possibilidade de existência do ser humano e da produção dessas condições de existência” (p. 70) devendo ser considerado como processo demarcado sócio-historicamente pois, “o tecido urbano é uma obra histórica que se produz continuamente, revelando as contradições das relações históricas que ali se movimentam[...]” (p. 75).

As cidades e sua comunicação urbana são comparadas, por Canevacci (2004), com um coro de múltiplas vozes, cada qual ciente de si e todas sobrepostas umas às outras; elas se entrecruzam, se isolam e se contrastam. Não somos somente espectadores urbanos: na nossa relação com as cidades, no agitar de nossas lembranças, ativamos também as próprias cidades, e assim elas são também “agidas” por nós. Somos atores que dialogamos com a urbe e em cujo diálogo nos movimentamos e movimentamos as cidades também.

Zanella et al. (2012a, p. 125) afirmam que, “na tensão entre a cidade-razão moderna e a metrópole-dispersão contemporânea, os grupos juvenis vêm promovendo outras formas de intervenção nos espaços urbanos, configurando mapas alternativos, cosmopolitas e

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rearranjos nas relações com a política”. Por este motivo, escolhemos trabalhar com os jovens, em seus trajetos e circuitos, e nos espaços ocupados na urbe, voltando nossa atenção para os sentidos produzidos nas relações com as diversas vozes sociais que constituem a urbe e que os constituem enquanto jovens.

Conforme Levitan; Furtado; Zanella (2009, p. 286), “na polifonia da cidade, na emergência dos ritmos e sentidos urbanos, as juventudes apresentam-se como vozes ativas que fazem falar ao urbano sobre suas próprias necessidades e desejos”. Por este motivo, afirmamos nossa escolha de trabalhar com o termo “cidades”, no plural, pois uma cidade não é sempre a mesma para todos os seus habitantes: ela é significada diversamente, dependendo das relações que cada sujeito estabelece com a urbe. As cidades, desta forma, se constituem no mesmo processo em que os sujeitos se constituem, na pluralidade das relações entre textos e contextos.

Para Hissa (2008), as multi(pli)cidades surgem na tessitura do urbano, nas várias cidades produzidas por aqueles que nela habitam. Assim também acontece com Fedora e seu palácio de metal com esferas de vidro em cada cômodo, no interior das quais está uma miniatura da cidade, construída pelas pessoas que sonham com uma Fedora ideal. No entanto, estas miniaturas não expressam a cidade, tampouco o fizeram enquanto estavam sendo construídas. Ela se modifica tão rapidamente que nem o que as pessoas projetam para ela se concretiza (CALVINO, 1990).

Em todas as épocas, alguém, vendo Fedora tal como era, havia imaginado um modo de transformá-la na cidade ideal, mas, enquanto construía o seu modelo em miniatura, Fedora já não era mais a mesma de antes e o que até ontem havia sido um possível futuro hoje não passava de um brinquedo numa esfera de vidro (Calvino, 1990, p. 32).

Nessa vivência com os diversos espaços e trajetos e com as múltiplas vozes que os conotam, cada jovem se apropria dos contextos, produzindo sentidos, significando as relações, modificando-se e modificando as cidades. Percorrer os circuitos desses e com esses jovens possibilitou compreender suas histórias, os processos que marcam suas vidas.

Magnani (2005) afirma que a pesquisa com jovens requer levar em consideração os espaços com os quais eles interagem, “mas não na qualidade de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada desses agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituindo, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço” (p. 177).

Neste contexto, nossos circuitos não foram rígidos, nem pré- definidos. O roteiro das conversas com esses jovens se construiu a partir dos momentos vividos, dos encontros e desencontros, das (im)possibilidades e de seus contatos com as diversas cidades. Nosso olhar se constituiu a partir dos seus olhares, modificando até mesmo o modo como enxergamos até hoje as cidades.

No encontro e no confronto com diferentes “vozes”, cada sujeito se apropria da cultura ao mesmo tempo em que é constituinte desta. Novos sentidos são produzidos nessas relações polifônicas, onde o encontro com um “outro” é marcado tanto por outros sujeitos como pela arquitetura, a mídia, os outdoors, pelas ruas, calçadas, lojas, meios de transportes, pedestres, pelas várias presenças e ausências que tecem a vida urbana cotidianamente. A polifonia de “vozes” constitui a cidade e os sujeitos que nela habitam ou estão de passagem (BARBOZA, 2012, p. 40).

Portanto, compreendemos a cidade através dos diversos espaços que os jovens ocupam e das relações estabelecidas com os mesmos. A cidade, nesta pesquisa, não se apresenta como “pano de fundo”, mas sim como um conceito central para o entendimento das relações e da forma como os jovens as significam. Consideramos essas relações como “lutas contra modos de subjetivação hegemônicos e a sujeição que engendram, constituindo-se como possibilidades de singularização para si e para outros que possam com essas intervenções vir a dialogar” (Zanella et al., 2012a, p. 126).

2. UMA PESQUISA-EXPERIÊNCIA E SUAS