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4 ADOLESCÊNCIA E A CONSTRUÇÃO DA AUTONOMIA MORAL

4.3 Justiça

JUSTIÇA

5- Quando o filho faz alguma coisa errada, o pai deve proibi-lo de fazer algo que ele goste. 9- Os pais devem sempre contornar os erros dos filhos para não viverem brigando com eles. 11- Um pai deve sempre se auto-controlar para castigar seu filho.

16- Um pai pode punir fisicamente seu filho caso ele faça algo muito errado. 19- Um pai que tem dois filhos precisa sempre agir do mesmo modo com os dois. 24- Um pai deve ajudar seu filho a arcar com as conseqüências dos seus atos. 35- O pai pode falar e não agir conforme as suas palavras.

36- Os filhos devem respeitar os pais mesmo que os pais não os respeitem.

O sentimento de justiça tem um significado todo especial para a teoria do juízo moral em Piaget (1932/1994). Segundo ele, a justiça é a condição imanente e a lei de equilíbrio das relações, e, dessa forma, as noções de justo e injusto são elaboradas pela criança e se desenvolvem normalmente à revelia da interferência do adulto, como fruto das relações de cooperação:

...se o aspecto afetivo da cooperação e da reciprocidade escapa do interrogatório, há uma noção, a mais racional, sem dúvida, das noções morais, que parece resultar diretamente da cooperação, cuja análise psicológica pode ser tentada sem muitas dificuldades: a noção da justiça. (Piaget, 1932/1994, p.156).

Dessa forma, para o pai que quer cooperar com o seu filho uma boa questão é sempre essa: estou sendo justo? Quando a resposta é que, sim, porque o adolescente desobedeceu e merece por isso ficar sem aquilo que mais gosta, podemos dizer que a noção de justiça presente é a retributiva, ou seja, a menos evoluída, que se define pela proporcionalidade entre o ato e a sansão.

Há duas noções distintas de justiça. Dizemos que uma sanção é injusta quando pune o inocente, recompensa um culpado ou, em geral, não é dosada na proporção exata do mérito ou da falta. Dizemos, por outro lado, que uma repartição é injusta quando favorece uns à custa de outros. Nesta segunda acepção, a idéia de justiça implica apenas a idéia de igualdade. Na primeira acepção, a noção de justiça é inseparável daquela de sanção e define-se pela correlação entre os atos e sua retribuição. (Piaget, 1932/1994, p. 157)

Muitas vezes a justiça retributiva é a mais utilizada pelos adultos. Segue um relato interessante: “Em um consultório médico uma mãe grita ao telefone com sua filha que, pelo

teor da conversa, tinha mais ou menos dezoito anos: ‘quer dizer que o seu namorado ligou para você, dizendo que o carro dele tinha quebrado e você saiu de madrugada para ajudá- lo?’ – pausa para que a filha falasse – a mãe continua em um tom mais irritado: ‘como assim, qualquer um faria isso, você está querendo me afrontar menina’ – outra pausa – a mãe continua: ‘eu falo com você como eu quiser, sou eu quem lhe dou tudo, o carro, seu apartamento e você é que não tem o direito de falar comigo assim’ – a mãe desliga o telefone, que volta a chamar em seguida, mas a mãe manda a secretária dizer à filha que ela não falaria mais com ela.”

Qual é a justiça empregada nesse exemplo? A justiça retributiva do tipo toma-lá-dá-cá: “Eu lhe dou carro e apartamento e você me obedece. Você me desafia, eu tiro tudo de você, inclusive, e, especialmente, o respeito em ouvir o seu ponto de vista”. Piaget (1932/1994) encontrou essa forma de justiça entre as crianças mais novas, todavia alega que:

Para uns, a sanção é justa e necessária; e tanto mais justa quanto mais severa; é eficaz no sentido de que a criança devidamente castigada saberá, melhor que a outra, cumprir seu dever. [...] essa noção, subsiste em qualquer idade, mesmo entre muitos adultos, favorecido por certos tipos de reações familiares ou sociais. (Piaget, 1932/1994, p. 159)

Para o autor, dois elementos constituem a justiça retributiva: as noções de expiação e recompensa, e por outro lado, a reposição ou reparação, que constitui o elo de solidariedade com o grupo, quebrado pelo “culpado” ao descumprir a regra. Da mesma forma pode-se afirmar a existência de três origens para os aspectos principais da retribuição: “certas reações individuais condicionam o aparecimento da retribuição, a coação adulta explica a formação da noção da expiação, e a cooperação explica os destinos ulteriores da noção de sanção.” (Piaget, 1932/1994, p.241)

Sobre punição Piaget (1932/1994, p.241) afirma que a intervenção do adulto desempenha uma função de, somada aos fatores individuais, desencadear psicologicamente na criança a idéia de sanção expiatória. Porque a criança gosta de seus pais e desde bebê tem seus comportamentos sancionados por eles, acaba por compreender a sanção como moralmente obrigatória, pois para ela, aceitar as punições constitui a mais natural das reparações. Conforme as palavras do autor:

Esta noção „primitiva‟ e materialista da sanção expiatória, portanto, não é, segundo nós, imposta tal e qual pelo adulto à criança, e talvez nunca tenha sido inventada por

uma consciência psicologicamente adulta. Mas é o produto fatal da punição, sendo esta refratada através da mentalidade misticamente realista da criança. (Piaget, 1932/1994, p.241)

É justo o pai bater no seu filho? Seja qual for a situação? Não, a resposta é não. A agressão física é o exemplo por excelência de sansão arbitrária. Não há nenhuma regra quebrada, que possa ser ressarcida por um ato de violência, ainda que uma criança tenha batido na outra em meio a um conflito, bater nela para que sinta o quanto doeu na outra, é na verdade ensiná-la que os mais fortes batem nos mais fracos, e, que sempre que se tem um problema, uma solução pode ser a agressão. As crianças necessitam vivenciar formas mais elaboradas e evoluídas de solucionar conflitos para poder construírem também tais possibilidades. (Selman, 1989, Sastre & Moreno, 2002).

Se o símbolo é necessário para os que são inaptos para compreender as razões de repreensão, perde toda a necessidade para os que compreendem. Além disso, se a sanção não tem outra relação com o ato sancionado que não a de simples símbolo, será sempre “arbitrária” em seu conteúdo. Ora, é justamente o que a consciência racional não poderia admitir e o que procuram evitar os que querem fazer da sanção a conseqüência natural do ato.” (Piaget, 1932/1994, p. 273).

A proposta de Piaget (1932/1994, p.162) é que, quando uma regra é quebrada, e com isso o elo de solidariedade com o grupo é desfeito, devem se utilizar sansões por reciprocidade que fazem compreender ao culpado o significado de sua falta: há relação de conteúdo e de natureza entre falta e punição. Portanto, não há dúvida que, todo pai necessita buscar o auto-controle no momento de punir seu filho. Normalmente, quando os filhos fazem algo errado, ou desobedecem aos pais, ou, pior ainda, quando as faltas trazem prejuízos financeiros (infelizmente, os danos materiais, para alguns pais sempre desencadeiam mais a fúria do que as questões morais ou os valores propriamente ditos – Caetano, 2005, p. 161), tais conflitos costumam desencadear reações nervosas, e, os pais necessitam sempre se lembrarem de que são os adultos da relação.

Por outro lado, alguns pais, para não viverem em constante briga ou desentendimento com os seus filhos, buscam contornar os erros dos mesmos, impedindo-os de arcar com as conseqüências dos seus atos. Esse tipo de atitude é injusto também, para com aqueles que estão em formação, pois, as sansões são necessárias para que se possam vivenciar a reciprocidade nas relações, e para que, se possa tomar consciência da legitimidade da regra quebrada. “Constatamos que a sanção que parece mais justa no estágio da cooperação é aquela que deriva da idéia da reciprocidade”. (Piaget, 1932/1994, p. 273)

Piaget (1932/1994, p.236) afirma que conforme os resultados de suas pesquisas, o desenvolvimento infantil é marcado por três grandes períodos no tocante a evolução da noção de justiça. O primeiro período se refere aquele em que a justiça está subordinada à autoridade, trata-se da justiça retributiva, já descrita nos parágrafos anteriores, um segundo período no qual a criança vivencia um igualitarismo progressivo, e o último período, marcado pelo acréscimo das preocupações de eqüidade à justiça puramente igualitária.

Acontece frequentemente que os pais ou os professores favorecem a criança obediente em detrimento das outras. Tal desigualdade de tratamento, justa do ponto de vista retributivo, é injusta do ponto de vista distributivo. (Piaget, 1932/1994, p. 200).

Um pai que tem dois filhos deve sempre agir do mesmo modo com os dois? Caso a pergunta fosse outra ainda: É justo um pai punir um filho desobediente deixando-o sem presente e presenteando os outros filhos obedientes? A primeira questão diz respeito à noção de justiça distributiva, que se define pela igualdade e a segunda diz respeito à noção da justiça retributiva, relacionada a sansão.

Quanto à segunda pergunta precisa ser subdividida: pensando que os dois são filhos e que têm direitos comuns, a resposta seria sim, um pai deve agir do mesmo modo com os dois filhos, mas se os filhos fossem os da segunda pergunta, ou se tratasse de um filho bebê e outro adolescente, é impossível que os pais ajam da mesma maneira com ambos. No primeiro caso, o pensamento diz respeito à justiça distributiva por igualdade:

Mas, para que haja real igualdade e autêntica necessidade de reciprocidade, é necessária uma regra coletiva, produto sui generis da vida em comum: é preciso que, das ações e reações dos indivíduos uns sobre os outros, nasça a consciência de um equilíbrio necessário, obrigando e limitando, ao mesmo tempo, o alter e o ego. Este equilíbrio ideal entrevisto por ocasião de cada disputa e cada pacificação, supõe naturalmente, uma longa educação recíproca das crianças, umas pelas outras. (Piaget, 1932/1994, p.239)

Com relação ao segundo caso, ou seja, pensando que cada filho é um, com suas necessidades, suas características, suas dificuldades, o genitor precisa levar em conta todos esses fatores para ser justo. Segundo Piaget: “O igualitarismo simples cede passo diante de uma noção mais refinada de justiça, que podemos chamar a “equidade”, a qual consiste em nunca definir a igualdade sem considerar a situação particular de cada um”. (Piaget, 1932/1994, p.216).

Assim a justiça que os pais ensinam aos seus filhos é muito mais aquela que os seus atos revelam na convivência e nas relações diárias, que a justiça pregada ou verbalizada nas lições de moral. Um pai pode falar e não agir conforme as suas palavras? A resposta é não.

A autoridade como tal não poderia ser fonte de justiça, porque o desenvolvimento da justiça supõe a autonomia. Naturalmente, isto não significa que o adulto não tenha nada a ver no desenvolvimento da justiça, mesmo distributiva. À medida que ele pratica a reciprocidade com a criança e prega com o exemplo e não apenas com as palavras, exerce, aqui como em tudo, sua enorme influência. (Piaget, 1932/1994, p.239).

Portanto, trata-se de uma questão de justiça e de reciprocidade: o dever dos filhos de respeitar aos pais implica que os pais respeitem os filhos também. Em outras palavras, a proposta do respeito mútuo, da obediência aos princípios de justiça que nascem das relações de cooperação, é o caminho único para a construção da autonomia.