• Nenhum resultado encontrado

3.4 Aspectos políticos-institucionais

3.4.2 Justiça e Segurança Pública

A Lei Municipal nº 158/1990, que criou o distrito, determinava, em seu artigo 3º, que em 180 dias a prefeitura de Altamira tomaria as providências para a implantação da Delegacia Distrital de Polícia pelo Poder Executivo e de um Cartório de Registro Civil e Juizado de Paz, pelo Poder Judiciário.

Na verdade, uma espera interminável. Até hoje, não existe na localidade nenhum Cartório; tampouco um órgão do Poder Judiciário ou do Ministério Público. Nem Estadual, nem Federal. Funciona apenas um destacamento operacional de Polícia Militar e, em 2005, instalou-se uma Delegacia de Polícia Civil.

A localização de Castelo de Sonhos, distante da capital do Estado e da própria sede municipal, acrescido ao fato de estar no interior, dificulta a atuação dos órgãos públicos federais e estaduais – já escassos na Amazônia como um todo – propiciando a livre ação de alguns segmentos, que atuam à margem da lei. Isso acaba por fortalecer a atribuição da expressão “terra sem lei” àquele povoado, cuja história é marcada pela ausência, omissão ou parcialidade dos Poderes Públicos Federal, Estadual e Municipal. Como diz Sauer (2005) a região é uma “mescla de omissão, conivência e conluio com os poderes constituídos”. Essa omissão não é um fenômeno recente no Pará. Em dezembro de 1977, poucos anos depois da abertura da BR-163, o jornalista Lúcio Flávio Pinto (1980, p.178) registrava esse problema, como detalha o trecho abaixo:

O pior crime que se pode cometer atualmente no sul do Pará é o da omissão; mas esse crime vem sendo praticado constantemente pelo poder público. O poder público vem adiando uma providência que já deveria ter sido adotada há muito tempo, para pelo menos tentar controlar a disseminação dos atos de violência e arbítrio; a justiça continua inteiramente ausente (ou, quando presente, age com incrível incompetência) da mais dinâmica frente pioneira da Amazônia, onde provavelmente se concentram alguns dos mais graves problemas fundiários do país.

Os órgãos executivos ainda não conseguiram superar suas competições ou divergências internas e chegar a uma prática expedita e eficiente. As partes, por tudo isso, são estimuladas a resolver suas pendências diretamente, num campo de batalha onde domina o mais forte, mas não há rigorosamente vencedores.

Toni e Kaimowitz (2003) explicam que isso ocorre pelo fato de que a “fronteira estatal” não acompanha o ritmo da velocidade com que avançam as frentes pioneiras, criando “um vácuo de poder que acaba sendo preenchido pela ação de forças de mercado ou pela violência”. De fato, a chegada do Estado nas fronteiras, quando acontece, ocorre tardiamente e, muitas vezes, de modo distorcido de suas atribuições legais.

Nos arredores castelenses, a Polícia Militar exerce o “papel que caberia ao Poder Judiciário”: quando alguém não paga, eles vão com o credor atrás do devedor para cobrar o pagamento da dívida; separam briga de marido e mulher, dentre outros. Porém, há quem alegue que a presença do poder público, quando se faz presente, ocorre com o comprometimento da segurança com a elite local, como denunciou uma senhora: “É só dar uma gorjeta para eles. Quem paga, ganha. Seria melhor sem eles”.

Segundo depoimentos de trabalhadores, a força policial é mantida por segmentos da “comunidade”: um grupo de empresários, fazendeiros e madeireiros, que lhes fornece alimentação, combustível, manutenção do veículo, dentre outros, em troca de “controle das ações policiais”. Há também denúncias de envolvimento da Polícia Militar com as milícias privadas, comandadas por grileiros da região. Muitos moradores criticaram essa atuação, manifestando, inclusive, que seria melhor sem eles, pois “seria um problema a menos, um medo a menos a ser enfrentado” (SAUER, 2005).

A atuação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) também não é bem vista por muitos da comunidade. Apesar do Ibama ser um dos poucos órgãos federais que atuam na região – embora esporadicamente –, os entrevistados reclamaram contra a atuação ilegal de alguns de seus funcionários, que em articulação com madeireiros e despachantes, são responsáveis pela venda de notas frias de Autorizações para Transporte de Produtos Florestais (ATPFs), formando o que chamaram de “tráfico de madeira”.

Visando a coibir essas ilegalidades, o Governo Federal inclusive deflagrou, no âmbito do Plano BR-163, operações integradas da Polícia Federal e do Ibama, como as Operações Faroeste e Curupira, ocorridas respectivamente no oeste do Pará e no Mato Grosso. Na

ocasião, vários funcionários do Ibama foram presos58. Mas, apesar das denúncias e atitudes tomadas, o “esquema” continuou: na pesquisa de campo, algumas pessoas da comunidade relataram a continuidade da ilicitude e mostravam os caminhões carregados de toras de madeira, completando: “Tudo de tráfico! Varia de 5 a 6 mil por caminhão”.

Como, então, ter justiça ambiental na Amazônia se o próprio órgão executor da política ambiental – um dos poucos entes do poder público que se faz presente – é o primeiro a desviar-se de sua finalidade? Como ter credibilidade nesses órgãos? A quem recorrer desses desvios da finalidade pública? Aos órgãos do Judiciário que não existem?

Como se nota, a ausência do Poder Judiciário, do Ministério Público e de uma Defensoria Pública no local cria, portanto, entraves de grandes proporções à promoção dos direitos difusos, mas também dos civis, econômicos e sociais, pois o acesso ao Judiciário – um direito garantido constitucionalmente – não tem como se concretizar. Diante das violações ao leque de direitos assegurados, as vítimas simplesmente não têm a quem se socorrer ou solicitar apoio e proteção.

A estrutura do ordenamento jurídico no tocante à competência dos órgãos para julgamento das ações contribui para inviabilizar esse acesso, uma vez que, em muitas ações judiciais de competência processual absoluta, o castelense que quiser ver o seu direito submetido ao manto da justiça, terá que despender dinheiro, tempo e paciência para se deslocar os quase 1.000 Km até a sede de Altamira e acompanhar de perto a tramitação do processo e a participar dos ritos processuais, que exigem sua presença. Dessa forma, o direito de apelo ao Judiciário torna-se um ato inacessível às pessoas menos privilegiadas economicamente.

O jurista Eros Roberto Grau (2002) escreveu que a lei, para muitos latino-americanos, é um dado de pura abstração; é uma mera expressão formal do Estado de Direito. O fato de existir uma lei não contribui para a legalidade, nem altera as condições sociais de uma maioria de desprivilegiados economicamente, situados na periferia do sistema capitalista de produção. A realidade vislumbrada em Castelo de Sonhos é, sem dúvida, ilustrativa do pensamento do jurista, pois toda a base jurídica que respalda a sociedade brasileira, é, sem exagero, uma pura abstração no vilarejo.

58 A Operação Faroeste ocorreu em 07 de dezembro de 2004, como o objetivo de desarticular as quadrilhas

especializadas em Grilagem de Terras Públicas atuantes na região oeste do Pará. Dela resultaram 18 mandados de prisão temporária, dos quais oito eram funcionários do Incra, no Pará. A Operação Curupira teve como objetivo investigar e desarticular o esquema de fraude e corrupção que foi instalado no Ibama/MT desde o início da década de 90. Foram decretadas 126 prisões, incluindo empresários e respectivos procuradores (despachantes), além de funcionários do Ibama. Fonte: MMA,2006.

Em decorrência desse clima de injustiça, corrupção e insegurança na fronteira amazônica, em geral, muitos atores da sociedade civil envolvidos nos conflitos de terra e ambientais são constantemente ameaçados e assassinados. Essa falta de segurança gera desconfiança da comunidade em relação aos próprios atores estatais, o que é intensificado pela insuficiente presença do Estado ou por sua ausência na região. Com isso, há uma sensação de impunidade, insegurança e medo que ronda os militantes e pequenos agricultores e comunidades tradicionais.

Diante disso, Scholz et al. (2004) afirmam que, para trabalhar de modo eficiente na região, primeiramente, seria necessário ampliar a presença do Estado, sobretudo com a implantação de unidades do Judiciário e da polícia e também de outros atores públicos, como o Ibama e o Incra.

Fearnside (2004) defende posição semelhante. Para ele, a região da BR-163 não possui chances de se tornar um corredor de desenvolvimento sustentável, a menos que haja uma mudança profunda no quadro regional, que compreenda a presença do poder público. O autor também adverte que outro elemento crucial para alcançar esse escopo é a vontade da população local de viver um “estado de lei”.

Contudo, os casos de conluio da força policial e do órgão executor de meio ambiente federal revelam que a mera ampliação da presença do Estado não alterará a conjuntura local e mesmo regional. Essa constatação também conflita com os cenários constituídos com base na governança forte, no âmbito do Plano BR-163 Sustentável.

De fato, a implantação de um Estado de Direito, não apenas em Castelo de Sonhos, mas em várias outras regiões amazônicas, é uma conditio sine qua non para o desenvolvimento sustentável da área de influência da BR-163. Todavia, a desconcentração das instituições públicas, com a perpetuação de suas mazelas críticas, tendem a reproduzir o problema ou pouco solucioná-lo.

Como dizem Busztyn e Bursztyn (2006, p.110), “A fragilidade do poder público, resultante da crise do Estado, compromete a governabilidade e a governança”. Por isso, são necessários o fortalecimento institucional, a formação de recursos humanos capacitados e a criação de uma estrutura operacional capaz de dar subsídios à atuação governamental efetiva e eficaz.