• Nenhum resultado encontrado

1.3 Um pouco das conseqüências do modelo de ocupação da Cuiabá-Santarém

1.3.3 A violência no campo

Outra anomalia comum na região Amazônica, resultante de seu processo de ocupação é a violência no campo, a qual também está intimamente ligada ao desmatamento e à grilagem das terras públicas.

As histórias de conflito e violência no campo são conhecidas nacional e internacionalmente, tendo como principais vítimas líderes sindicais, trabalhadores rurais, religiosos, advogados, ambientalistas, parlamentares, além de outros defensores dos direitos humanos (SAUER, 2005), que denunciaram políticos corruptos, ameaças de latifundiários e exploração ilegal de madeira

.

Sauer (2005) pondera que os conflitos de terras em regiões de fronteira podem se entendidos a partir da sobreposição entre duas economias antagônicas: terra para trabalho

14 Segundo Becker (2004), a expansão das fronteiras compreende, além da Cuiabá-Santarém e de pontos de sua

(camponeses) versus terra de exploração (empresários e fazendeiros). O conflito, muitas vezes, ocorre sob a conveniência e tolerância do Estado, que permite que milícias privadas sejam criadas para garantir a posse e a defesa da terra na Amazônia. O autor relata que esses conflitos são acompanhados da pistolagem – decorrente da repartição do poder estatal, com os defensores e prepostos do grande capital, que se instalou na região amazônica a partir dos anos 1970 –, que acontece obedecendo aos seguintes passos:

O pistoleiro surge na região para proteger de “invasão” (por parte de posseiros) as grandes extensões de terras adquiridas por latifundiários, mas ociosas ou improdutivas. Um pistoleiro pode ser contatado para expulsar camponeses de terras ocupadas, para assassinar lideranças e sindicalistas, ou ainda para “ajudar” nas ações policiais de despejo de posseiros. Como o contingente policial era, e ainda é, insuficiente para executar despejos forçados, fazendeiros contrataram pistoleiros para reforçar os contingentes policiais encarregados da expulsão (SAUER, 2005, p.31-32).

O Pará é um dos estados líderes nesse tipo de violência. Nos últimos dez anos, houve 985 conflitos de terra, que resultaram na morte de 177 pessoas (Quadro 4). Esse caos deve-se, em parte, à "federalização das terras amazônicas", que ocorreu em 1971, por meio do Decreto Federal nº 1164, do Governo Federal15.

Quadro 4 – Conflito de Terra, assassinatos e ameaçados de morte no Pará (1995-2005)

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total Conflitos de terra 38 63 60 37 86 53 115 110 136 104 183 985 Assassinatos 14 33 12 12 9 5 8 20 33 15 16 177 Ameaçados de morte 54 24 11 11 36 17 46 78 61 103 96 537

Fonte: Setor de Documentação da Comissão Pastoral da Terra16.

Em 1987, foi revogado o Decreto nº 1164, mas mantiveram-se as situações já consolidadas. Com isso, as áreas então federalizadas não foram devolvidas ao Estado do Pará

15 O Decreto-lei nº 1.164/71 trata-se do mesmo decreto que estabeleceu a abertura das rodovias federais

Transamazônica e BR-163 e retirou dos estados as terras situadas dentro de uma faixa de 100 km de cada lado dessas estradas. O Pará, por ter sido o estado mais cortado pelas vias, foi intensamente penalizado, pois restou sob sua jurisdição apenas 30% das terras do seu Estado (LOUREIRO, PINTO, 2005). Além do Decreto-lei nº 1.164/71, vieram outros decretos nos anos 1980 que também tinham o objetivo de transferir as terras na Amazônia para o domínio federal ou mesmo a iniciativa privada, como no caso do Programa Grande Carajás.

16 Disponível em <http://www.cptnac.com.br/pub/publicacoes/649d92964f417efce1f83597d1a01f39.pdf>.

e o Governo Federal simplesmente abandonou as terras. Nessa situação, o Pará não podia ingerir nessas áreas que não eram de seu domínio, criando uma confusão documental e cadastral sem precedentes. O resultado dessa “patologia fundiária” teve um alto preço, ainda pago com a vida de muitos trabalhadores e sem-terra:

A indiferença do poder público à má sorte dos trabalhadores sem-terra, a aliança e a tolerância do Estado com os abusos do capital, da elite ou dos desclassificados sociais que se instalaram na região, geraram a concentração de terras, a exclusão social, a desigualdade, a descrença no poder público e fomentaram os conflitos e a violência hoje existentes na região (LOREIRO, PINTO, 2005).

Uma das vítimas mais recentes desse conflito na fronteira paraense foi Dorothy Stang, americana naturalizada brasileira, que era missionária da Congregação Notre Dame e trabalhava no Pará, desde fins da década de 1960, como defensora das causas ambientais e dos direitos humanos, em geral. Foi assassinada com seis tiros, em Anapu (PA), em 12 de fevereiro de 2005, aos 73 anos, por denunciar a atuação de fazendeiros e madeireiros que buscavam ampliar a apropriação ilegal das terras públicas e realizar o desmatamento descontrolado e agiam contra os direitos trabalhistas dos moradores locais.

A notícia do episódio causou grande impacto na opinião pública, extrapolando as fronteiras nacionais e ganhando dimensão internacional e Dorothy se tornou uma mártir da luta no campo. O fato levou à instalação da “Comissão externa para acompanhar as investigações relativas ao assassinato da missionária Dorothy Stang”, no senado Federal, por meio do Ato nº08, de 2005.

A principal característica da violência na fronteira paraense é a impunidade dos autores do crime (SCHOLZ et al. 2004; SAUER, 2005), que ocorre sob o olhar conivente e tolerante do poder público. As autoridades toleraram, por muitos anos, a pistolagem e a existência das milícias privadas para defender os políticos beneficiados com terras, “tapando os olhos” para as flagrantes violações aos direitos humanos. Essa prática acabou por se enraizar nas relações sociais e políticas da região (LOUREIRO, PINTO, 2005).

Entretanto, a solução desse conflito, que poderia ocorrer com a reforma agrária, foi negada diversas vezes, sendo abortada em muitos momentos nos quais essa medida parecia estar institucionalmente conformada (DIEGUES, 2005). Recentemente, o Governo Lula – sobretudo após a pressão gerada pelo assassinato da irmã Dorothy Stang – procura retomar o domínio dessa situação, mas tem dificuldade em controlar esse caos que ele mesmo permitiu se desenvolver.