• Nenhum resultado encontrado

3.3 FUNDAMENTOS CURRICULARES

3.3.1 Justificativa: formar para o mercado ou formar para a sociedade?

A justificativa do novo PPP apoia-se sobre um diagnóstico do curso, exposto no quadro 2. Neste, há a identificação de uma série de dificuldades e problemas a serem superados.

Quadro 2. Diagnóstico da Situação Atual do curso de Medicina da UFPB (p.13-14)

a) Inadequação entre os conteúdos programáticos do curso e a atual necessidade médico-social encontrada no mercado de trabalho;

b) Dissociação entre o ensino dos ciclos básico e profissional;

c) Pouca ênfase aos aspectos preventivos da Medicina, resultando numa formação acadêmica predominantemente curativa, sem o compromisso com a vigilância à saúde;

d) Insuficiente valorização dos aspectos bioéticos, cada vez mais necessários na moderna medicina dos transplantes, da inseminação artificial, úteros de aluguel e engenharia genética;

e) Elevada carga de disciplinas, muitas vezes, de pouca relevância para a formação do médico; f) A relação numérica professor/alunos, não se encontra dentro dos padrões preceituados atualmente; g) Repetição de conteúdos em disciplinas afins;

h) Uso intensivo de aula expositiva para grande número de alunos;

i) Ênfase no papel do Professor como fonte principal de conhecimento, valorizando a informação e não a formação;

j) Cursos individualizados por disciplinas independentes e pouco articulados, cada departamento coordenando isoladamente o seu curso;

l) Técnicas didáticas clássicas e desvinculadas dos modernos métodos pedagógicos, centralizando no professor o processo ensino/aprendizagem e deixando o aluno em plano secundário, desmotivado e passivo;

m) Métodos de Avaliação que medem, essencialmente, a memorização sem levar em consideração a aquisição de habilidades, capacidade para resolver problemas, de aprender sozinho e de dominar uma metodologia científica;

n) Atividades práticas insuficientes e fragmentadas em ambulatórios e enfermarias especializadas, onde o paciente é visto como portador de órgão ou sistema doente e não como um Ser humano doente; o) Prática “hospitalocêntrica” com insuficiente contato do aluno com o atendimento médico- comunitário (Postos de Saúde, Ambulatórios, Ações Preventivas das Secretarias de Saúde, PSF) fato que o distancia da realidade de saúde em que se inserirá como profissional;

p) Ignorar, por completo, as atividades de formação complementar empreendidas pelo aluno, como programas de Monitoria, Programa de Iniciação Científica, programas de extensão e outros estudos complementares;

q) Internato muito curto com afastamento dos docentes e transferência de responsabilidades para os residentes;

r) Desconsideração ao aluno como Pessoa e descompromisso com o seu desenvolvimento mental e acadêmico.

(Fonte: adaptado a partir de UFPB, 2007)

Trata-se de um diagnóstico bastante semelhante aos apresentados pelos relatórios da primeira e segunda fase da CINAEM (apud CRUZ, 2002), e que são coerentes com a manifesta influência que esta comissão teve no processo de reformulação curricular de diversas escolas brasileiras, inclusive a UFPB. Além disso, também está em consonância com a CINAEM o diagnóstico de uma crise do ensino médico que tem como contexto um quadro de progressos tecnológicos, com aumento de custos na saúde, sem aumento da eficácia no provimento de saúde aos diferentes grupos populacionais. Este “diagnóstico da situação atual” traz a análise de que as atuais políticas públicas de saúde buscam fazer frente a esta crise sanitária através da vigilância à saúde, atuando sobre os determinantes sociais do adoecimento, “sejam eles condições de trabalho, de habitação, de alimentação, de transporte, de educação, de higiene, de lazer ou de orientação sanitária” (idem, p.13). Esta análise está permeada por um olhar mecanicista, que faz um “diagnóstico”, como se tratasse de um corpo doente (conforme o procedimento que Cruz, 2002, aponta na própria comissão CINAEM, em sua primeira e segunda fases). Porém, ela tem ao mesmo tempo um caráter dialético, na medida em que traz para o fundamento curricular da UFPB a necessidade de o ensino médico incorporar o paradigma das condições sociais de adoecimento e da vigilância à saúde, o que significa, finalmente, incorporar em um currículo conservador os elementos que foram cristalizados no debate sanitário brasileiro a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde (BRASIL, 1986). Assim, pode-se dizer que este “diagnóstico” da situação precedente à reforma curricular está permeado por uma concepção de Saúde e Educação que combina

elementos deterministas / idealistas com elementos dialéticos. Esta é reforçada pelo último parágrafo do “diagnóstico” (idem, p.14): “Com essas deficiências, percebe-se um distanciamento entre o perfil do médico, hoje exigido pela comunidade, pelo mercado de trabalho e por nós preconizado, e o médico graduado por nosso curso de Medicina”. O diagnóstico explicita dois modelos de formação coexistindo, aparentemente sem disputas, nesta afirmação: o modelo de formação para atender às exigências da comunidade e o modelo de formação para o mercado de trabalho. A formação para a comunidade é semelhante, ou antes, compatível com a formação exigida pelo mercado? Sem responder à questão, o PPP apresenta-os como sendo semelhantes ao modelo preconizado pelo movimento favorável à mudança. Mais uma vez, reflete-se a tentativa de apresentar-se como um consenso que na verdade não existe, consoante com a hipótese da “farsa estratégica” representada, ao menos em parte, pelo arranjo curricular. A partir daí, dentro de uma perspectiva idealista/tecnicista, tudo passa a ser uma questão de adequar este perfil profissional “consensualmente” desejado com o perfil do profissional “graduado por nosso curso de Medicina” (idem, ibidem).

Retomando as dificuldades apresentadas no quadro 2, pode-se dividi-las em grupos afins. Pode-se, apenas para fins operacionais, apontar que os itens “a”, “c”, “d”, “k”, “n” e “o” estão mais relacionados à concepção de prática médica: uma prática especializada (item “k”), com uma relação precária com a teoria (item “a”), bem como uma prática reducionista (item “n”), voltada para aspectos curativos, em detrimento de ações de vigilância (item “c”), que negligencia aspectos bioéticos (item “d”), bem como negligencia os outros cenários fora do hospital-escola (item “o”). Já os itens “b”, “f”, “g”, “h”, “i”, “j”, “l” e “m” relacionam-se com as questões pedagógicas e didáticas, no sentido estrito. Trata-se de apontar uma prática pedagógica ineficiente, que utiliza métodos ultrapassados, com métodos de avaliação inadequados. É um processo pedagógico centrado no professor, baseado na transmissão de informações através de aulas expositivas. Ainda no aspecto pedagógico, aponta-se a dissociação ciclo básico / profissional e a insuficiência do estágio curricular obrigatório (o “internato”), com duração de apenas um ano, enquanto o preconizado desde as DCN de 2001 é de dois anos. Reforça-se novamente que tal esquematização é apenas operativa, com finalidade de “visualização” dos aspectos curriculares, pois dentro de uma concepção dialética de educação, não é possível a rígida separação entre as representações de prática profissional e as práticas pedagógicas, sendo que ambas estão interligadas por uma relação dialética dentro da escola.

A partir do diagnóstico, o PPP apresenta “O que e como transformar” (UFPB, 2007, p.15), ainda dentro da Justificativa. Nesta seção, enuncia-se a necessidade do PPP ser fruto de

uma “construção coletiva de professores, estudantes e todos os atores envolvidos no processo ensino-aprendizagem” (idem, ibidem, grifos do documento). Este deve também “considerar a flexibilidade individual de estudos e atender às expectativas do desenvolvimento do setor saúde na nossa região” (idem, grifos do documento). Preconiza também (idem, ibidem, grifos do documento):

3. Promover o contato do estudante com pacientes, a partir do primeiro período do Curso, de modo a reduzir a distância entre o ciclo básico e o profissionalizante e minimizar a formação asséptica de Relação Estudante- Paciente durante os primeiros anos de formação. Ao mesmo tempo, propiciar a interação ativa do aluno com usuário e profissionais de saúde desde o início de sua formação.

Esta diretriz está voltada para a “dissociação entre ciclo básico e profissional” identificada no “diagnóstico”. Além disso, o contato precoce com pacientes e profissionais desde os primeiros períodos parece estar voltado para a melhor adequação da formação às necessidades sociais e de mercado de trabalho também já expressas anteriormente. Outras medidas voltadas mais especificamente para a prática profissional que se deseja fomentar são (idem, ibidem, grifos do documento):

4. Utilizar, prioritariamente, técnicas pedagógicas centradas no aluno

como sujeito da aprendizagem e apoiadas no professor como facilitador do

processo ensino-aprendizagem; de modo a propiciar os meios necessários para que ele se desenvolva no campo cognitivo, de habilidades e de

Atitude Médica, e desenvolva capacidades para a auto-aprendizagem e auto-avaliação;

5. Incluir, de maneira mais sistemática, as dimensões éticas, humanísticas e

de cidadania na formação do estudante de Medicina;

6. Enfatizar os aspectos preventivos da Medicina e levar o estudante a

conhecer, in loco, o Sistema Oficial de Saúde vigente no país, dentro do

qual irá atuar como profissional;

7. Vincular, através da integração ensino-serviço, a formação médico-

acadêmica às necessidades sociais de saúde, com ênfase no SUS;

8. Prover o curso de ambulatórios de atendimento médico não

especializado, de modo a reduzir a ênfase nas especialidades;

9. Aumentar o treinamento prático dos alunos, através da extensão do internato (Estágio Prático Obrigatório) de dois períodos letivos para dois anos; (...)

11.Trabalhar no sentido de diminuir a relação número de

alunos/professor;

12. Criar laboratórios de habilidades;

13. Fazer uma revisão das disciplinas, procurando uma melhor composição de conteúdos programáticos, agrupando-as em Módulos de ensino que constituirão a nova unidade de construção curricular;

14. Facilitar a integração dos conteúdos do Curso e evitar a repetição de temas em momentos diferentes da formação;

15. Fomentar a interdisciplinaridade;

16. Assistir o aluno, durante a sua formação, através de um Programa de

Orientação Acadêmica e Tutoria (PROAT), e do Programa de Assistência Psicopedagógica (PAP).

São medidas importantes, que visam à reestruturação da relação teoria-prática ao incluir as dinâmicas sociais no cotidiano formativo dos estudantes, dentro de uma perspectiva epistemológica ampliada, a interdisciplinaridade. Deve-se fazer a ressalva de que para a efetiva construção da interdisciplinaridade seria necessário haver explicitamente, no apontamento sobre o que transformar, a designação de espaços de construção dialogada do cuidado não apenas com profissionais médicos, mas com todos os profissionais que compõem o setor saúde, como os nutricionistas, enfermeiros, fisioterapeutas, farmacêuticos, educadores físicos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, etc., tanto nos cenários de prática quanto nos espaços escolares. Ao não deixar claros os pressupostos do pensar e fazer da ação interdisciplinar, o PPP torna-se frágil no sentido de não possibilitar aos docentes e estudantes o exercício de uma prática dialógica entre a equipe de profissionais e os usuários, entendidos ambos como sujeitos em construção, em busca do ser-mais freireano, sejam acometidos por doenças ou não.

Do ponto de vista da orientação pedagógica, as recomendações feitas são bastante avançadas, remetendo às transformações curriculares da FAMEMA e do CCS-UEL. Resta a dúvida sobre de que forma serão implementadas estas transformações no cotidiano do pensar e fazer da formação do profissional médico ao nível do curso superior. Por exemplo, que movimentos concretos serão feitos para melhorar a relação professor-aluno? Como será feita a revisão das disciplinas na formulação dos módulos? São questionamentos que o PPP propõe aos que executam tais proposições ou diretrizes curriculares planejadas. Estes questionamentos, porque conectados com os conceitos de Saúde e Educação em sua interconexão teoria-prática, serão o fio condutor da análise do PPP.

3.3.2 Marco Teórico / Metodologia

O PPP inicia sua discussão da metodologia do currículo colocando, para consecução de seus objetivos, quatro missões específicas do curso de Medicina (idem, p.17):

1 – Oferecer ao estudante os meios adequados para assimilar os conhecimentos médico-científicos indispensáveis a um exercício profissional de qualidade;

2 – Prover o treinamento necessário ao desenvolvimento das habilidades inerentes à prática médica, definida no perfil do profissional a ser formado por esta Universidade;

3 – Promover o desenvolvimento de uma atitude profissional pautada na ética, na responsabilidade como agente de transformação social e no respeito ao ser humano em toda sua dimensão bio-psico-socio-cultural;

4 – Preparar o futuro médico para a auto-avaliação responsável, a aprendizagem contínua e a geração de conhecimento através da utilização do método científico.

Para cumprir estas “missões”, enuncia-se a necessidade de “uma mudança importante no processo ensino/aprendizagem e no relacionamento professor/aluno” (idem, ibidem). Esta mudança visa estimular o “amadurecimento da personalidade do estudante, que geralmente chega ao curso médico como adolescente” (idem, ibidem). Este amadurecimento visa que o estudante adote “uma atitude de liderança, honestidade, respeito ao paciente e aos companheiros, em especial quando em equipes multiprofissionais” (idem, ibidem).

A seguir, apresenta-se a estratégia para efetuar esta mudança pedagógica (idem, ibidem):

A estratégia utilizada para atingir essa meta é a Pedagogia Interativa. Partindo do princípio de que o que realmente interessa em qualquer curso é o que o aluno aprende e não o que o professor ensina, o aluno passa a ser a figura central no processo ensino/aprendizagem – Aprendizagem Centrada

no Aluno.

Esta orientação pedagógica está em consonância com aquela que se tornou consensual nas discussões da CINAEM, da Rede UNIDA e que efetivamente vinha sendo implementada em escolas médicas de destaque, sobressaindo-se as escolas da UEL e de Marília. A tentativa de superação da Educação bancária fica evidente quando se anunciam os problemas que se quer superar com a adoção de tal perspectiva pedagógica (idem, ibidem):

Esta nova relação aluno/professor tira o estudante da condição de espectador passivo, transformando-o num parceiro ativo e interessado, corresponsável pelos resultados das atividades acadêmicas. Elimina-se, assim, a influência inibidora que a personalidade dominante de muitos professores pode exercer sobre alunos mais susceptíveis, abrindo-lhes oportunidade para um substancial crescimento pessoal.

A partir daí, apresentam-se três estratégias de aprendizagem: “aprender a aprender, aprender fazendo e aprender através do exemplo” (idem, p.18). Estas estratégias se referem respectivamente ao desenvolvimento de conhecimentos, habilidades e atitudes. Podem-se dividir estas dimensões como “teórica”, “teórico-prática” e “ética” e remetem aos pilares da educação defendidos no Relatório Delors, da UNESCO (DELORS, 1998).

Tais momentos são apresentados como distintos, havendo um método específico para o desenvolvimento de cada uma destas dimensões. Para o “aprender a aprender”, é eleita a Aprendizagem Baseada em Problemas (do inglês Problem Based Learning – PBL), criado na Universidade de McMaster, no Canadá, é uma metodologia ativa de ensino-aprendizagem, porém apresenta como limitação em relação ao método da problematização a sua circunscrição aos aspectos indicados pelos professores que criam os casos, os problemas a partir do qual desenvolvem-se as atividades (VASCONCELOS, 2006). Para o “aprender

fazendo” preconiza-se a prática dos estudantes nos ambulatórios, enfermarias, centros cirúrgicos, urgências, bem como em laboratórios de habilidades. Por fim, para “aprender através do exemplo” o PPP apresenta como estratégia o Programa de Orientação Acadêmica e Tutoria, no sentido de...

[...] conduzir a formação do estudante para as características subjetivas que compõem o perfil do profissional a ser formado pelo curso. O Tutor deve funcionar como exemplo de profissional e servir como modelo de Identificação para o aluno. [...] Deverá também orientá-lo na sua atitude profissional, que inclui apresentação pessoal, comportamento ético, responsabilidades social, legal e ética, como futuro profissional.

Este investimento no papel do tutor na reprodução de valores evoca o questionamento de que não é a tutoria em si, mas a sua orientação teórico-metodológica que pode de fato promover um aprendizado através dos exemplos. Imaginar um tutor cuja atitude paternalmente irá instruir seus pupilos é retroceder à pedagogia centrada no professor: no ensino tutorial, este é apenas um facilitador das descobertas que o estudante faz em contato com os “problemas” advindos da realidade (TOMAZ, 2001; CYRINO & TORALLES- PEREIRA, 2004).

Algumas observações são feitas no sentido de introduzir um caráter praxeológico a tais momentos do aprendizado. Por exemplo, no “aprender a aprender”, ou seja, na dimensão cognitiva, observa-se que os casos do PBL poderiam advir da prática dos estudantes ou ser feitos pelos professores. Partir da prática dos estudantes poderia conduzir o PBL na direção de uma pedagogia problematizadora, pautada nas idéias de Paulo Freire, em que a prática seja elemento para ampliar a discussão numa perspectiva dialética. No que se refere à dimensão das habilidades, observa-se que o “aprender fazendo” deve ser um potencializador do processo de aprendizagem, a partir da sequência prática-teoria-prática, o que parece insinuar a construção de uma práxis.

Porém, a limitação destas opções metodológicas fica evidente na medida em que se apresentam os aspectos cognitivos, práticos e éticos como existindo separadamente, devendo ser desenvolvidos em estratégias distintas, conforme quadro abaixo (quadro 3):

Quadro 3: Apresentação esquemática das estratégias pedagógicas

Dimensão formativa Estratégia pedagógica

Cognitiva “Aprender a aprender” – Aprendizagem Baseada em Problemas

Prática (habilidades) “aprender fazendo” – práticas nos cenários de práticas

Atitudes (ética) “aprender através do exemplo” - Programa de Orientação Acadêmica e Tutoria

(Fonte: adaptado de UFPB, 2007)

Para que tais componentes possam realmente conformar uma práxis, será necessário que o currículo integre-os dentro de momentos práticos e teóricos onde, através do método dialético, os estudantes possam refletir e agir a partir de suas teses/sínteses iniciais, confrontando-as com as análises realizadas no calor da relação dialógica com a sociedade, em direção a novas sínteses. Será necessário perscrutar a estrutura curricular em busca destes componentes de integração, para que se possa afirmar a coerência entre os elementos teóricos e práticos curriculares, no que concerne aos conceitos de Saúde e Educação evocados.

Documentos relacionados