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3.3 FUNDAMENTOS CURRICULARES

3.4.2 Módulos Interdisciplinares Verticais (MIVs)

Os Módulos Interdisciplinares Verticais são constituídos, em sua maioria, pelos conteúdos tradicionais do curso médico: a Anatomia, a Fisiologia, a Embriologia, a Histologia e a Bioquímica. Estas disciplinas não mais compõem unidades curriculares isoladas (as antigas disciplinas), porém coexistem dentro dos módulos interdisciplinares. A nova organização dos conteúdos obedece duas lógicas. Uma delas é a organização a partir dos sistemas orgânicos. Assim, o MIV12 – “Sistema Respiratório”, tem como conteúdos a Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia e Genética e a Pneumologia, que seriam disciplinas independentes no currículo anterior. Além desta lógica dos sistemas orgânicos, a disposição sequencial dos módulos corresponde a uma lógica que pode ser apreendida a partir da visualização do Quadro 6.

Quadro 6 – Organização sequencial dos MIVs, por semestre

SEMESTRES TÍTULOS DOS MIVS

Semestres 1 e 2 – Ciências Estruturais e Funcionais da Medicina

MIV1 - Acolhimento ao estudante; MIV2 - Saúde Coletiva; MIV3 - O Homem como Ser social; MIV4 - Ontogênese e filogênese do Ser humano; MIV5 - A célula: da molécula à organização dos tecidos; MIV6 - Nutrição e Metabolismo; MIV7 - Sistema Nervoso; MIV8 -

Sistema Sensorial; MIV9 - Sistema de Sustentação e Movimento; MIV10 - Sistema Endócrino e Reprodutor; MIV11 - Sistema Cardiovascular; MIV12 - Sistema Respiratório; MIV13 - Sistema

Digestório; MIV14 - Sistema nefrourogenital;

Semestre 3 – Particularidades das ciências estruturais e funcionais na

criança e idoso. Mecanismos de intermediação entre o normal e o

patológico

MIV15 - Epidemiologia; MIV16 - Crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente; MIV17 - Morfofisiologia do envelhecimento; MIV18 - Mecanismos gerais de defesa; MIV19 -

Mecanismos gerais de agressão; MIV20 - Farmacologia básica;

Semestre 4 – Elementos introdutórios aos procedimentos clínicos. Inclui: exame do paciente,

elementos de técnicas cirúrgicas e anestésicas, exames complementares,

imagenologia e primeiros socorros.

MIV21 - Semiologia do adulto, da criança e obstétrica; MIV22 - Exames complementares na prática médica; MIV23 - Introdução aos

métodos diagnósticos por imagem; MIV24 - Bases das técnicas dos procedimentos cirúrgicos e anestésicos; MIV25 - Técnicas dos

primeiros atendimentos em urgência e emergência;

Semestres 5 a 8 – Ciências clínicas e

MIV28 - Doenças prevalentes do Sistema Endócrino; MIV29 - Doenças prevalentes da cabeça e pescoço; MIV30 - Doenças

prevalentes do sistema tegumentar;

MIV31 - Doenças Prevalentes do Sistema Cardio-circulatório e Vascular Periférico; MIV32 - Doenças prevalentes do sistema nefrourogenital; MIV33 - Asistência à saúde da mulher; MIV34 -

Assistência materna e neonatal;

MIV35 - Doenças prevalentes do sistema hematológico; MIV36 - Doenças infecto-contagiosas; MIV37 - Assistência à saúde do adulto

, criança e do adolescente; MIV38 - Elementos de Medicina Legal; MIV39 - Abordagem clínica e cirúrgica das doenças e traumas do Sistema Osteo-articular; MIV40 - Doenças Problemas prevalentes do sistema sensorial e vias aéreas superiores; MIV41 - Doenças prevalentes do Sistema nervoso central e periférico; MIV42 - Transtornos e condições mentais prevalentes; MIV43 - Assistência à saúde do idoso.

(Fonte: adaptado de UFPB, 2007)

Na leitura do quadro 6 percebe-se que, após a sequência dos três primeiros MIVs (“Acolhimento ao estudante”, “Saúde Coletiva” e “O homem como ser social”), iniciam-se os temas relacionados aos sistemas orgânicos. Estes se sucedem a partir das “ciências estruturais e funcionais da Medicina” nos dois primeiros semestres, prosseguem no terceiro semestre, associando-se aos “mecanismos de intermediação entre o normal e o patológico”, havendo uma transição, no quarto semestre para os “procedimentos clínicos”, que prosseguem do quinto ao oitavo período.

É interessante perceber que, em princípio, este “currículo nuclear” do curso mantém a mesma estrutura de dissociação ciclo básico / ciclo profissional-clínico, característica do modelo flexneriano. Porém, cabe a dúvida sobre como seria possível colocar os estudantes em contato com o conhecimento básico acerca do corpo humano e as doenças, em sua dimensão biológica, articulando-os com as dimensões psicológicas e sócio-políticas? As escolas de Londrina e Marília responderam a este problema lançando mão de uma concepção de currículo em que a interdisciplinaridade e a integração com a comunidade fossem tomadas como princípios centrais e estruturantes (FEUERWERKER, 2002). Para que a interdisciplinaridade de fato se materializasse no currículo, e, especificamente, no caso do trato com os conteúdos “duros” relacionados ao aspecto biológico do processo saúde-doença, sem restringir-se ao conceito mecanicista-biologicista de Saúde, tais escolas procuraram assegurar duas coisas:

1. a adoção das metodologias ativas de ensino-aprendizagem em todos os módulos curriculares, que no caso da abordagem dos conteúdos classicamente biológicos foi o PBL; e

2. que na construção e planejamento de cada problema (nos quais o PBL está baseado) houvesse a participação de professores de diferentes subáreas do conhecimento da área de saúde. (FEUERWERKER, 2002)

Assim, seguindo o exemplo do Sistema Nervoso, no interior do mesmo módulo, os professores de diferentes subáreas poderiam criar um caso, uma situação-problema relacionado a um sujeito portador de uma doença neurológica, como a doença de Parkinson, cuja esposa o abandonou constrangida pelo sofrimento de conviver com este sujeito, que também é alcoolista e não tem renda. A discussão sobre o cuidado das necessidades de saúde deste sujeito necessitaria articular conhecimentos de aspectos anatômicos, histológicos, fisiopatológicos do Sistema Nervoso, bem como de aspectos farmacológicos, psiquiátricos, sociais e políticos relacionados às vulnerabilidades e aos recursos passíveis de mobilização em seu favor. Para pensar a construção do caso nestas condições, seria desejável a participação de professores de Neuroanatomia, Histologia, Fisiologia, Clínica Médica e Saúde Coletiva12. Isto ocorreu, não sem conflitos e disputas, na FAMEMA e CCS-UEL (FEUERWERKER, 2002). Entretanto, a análise do PPP da UFPB sugere que a construção interdisciplinar dos casos não é uma preocupação central dos MIVs. Pelo menos não da interdisciplinaridade tal como concebida em outras escolas. O quadro 7 sugere de que interdisciplinaridade se está falando nos Módulos Interdisciplinares Verticais.

Quadro 7. Módulos, temas e disciplinas envolvidas nos MIVs do 2º semestre

Nome Temas Disciplinas envolvidas

MIV 10 –Sistema Endócrino e

reprodutor Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Ginecologia e Urologia Disciplinas=Temas MIV11 – Sistema Cardiovascular Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Cardiologia Disciplinas=Temas MIV12 – Sistema Respiratório Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Pneumologia Disciplinas=Temas

MIV13 – Sistema Digestório Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Biofísica,

Gastroenterologia Disciplinas=Temas MIV14 – Sistema Nefrourogenital Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, Genética, Nefrologia,

Urologia

Disciplinas=Temas

(Fonte: adaptado de UFPB, 2007) A fórmula “disciplinas=temas” explicita a curiosa noção de interdisciplinaridade expressa nos MIVs. Pode-se dizer que é uma “interdisciplinaridade seletiva”, pois nela só entram os

12 Cabe aqui a ressalva, sem prejuízo da argumentação em curso, de que, em tese, uma abordagem de fato praxeológica deste caso não poderia ser feita no PBL, onde o problema é “feito de papel” para servir a uma discussão teórica. Entretanto, o PBL é uma ferramenta fundamental para a abordagem pedagogicamente ativa de conteúdos, representado um avanço inquestionável em relação às tradicionais aulas expositivas.

conteúdos clássicos relacionados ao conceito mecanicista biologicista de Saúde. Quem está habilitado a ministrar o tema Embriologia é a disciplina Embriologia. Entretanto, neste procedimento descarta-se o fato de que os aspectos embriológicos estão relacionados a aspectos psicossociais. A mãe alcoolista conceberá um filho com uma série de mal-formações associadas ao uso de álcool, e este uso abusivo tem, explicitamente, um componente psíquico e sociopolítico. Assim, a exclusão das disciplinas do campo da Psicologia e Psiquiatria e da Saúde Coletiva na construção dos MIVs não diretamente relacionados, pela ideologia dominante, a temas “psicológicos” ou “sociais”, cria desde o princípio uma barreira para o tratamento interdisciplinar dos conteúdos. Uma barreira que dificilmente será superada na globalidade do currículo.

Finalmente, esta fórmula “disciplinas=temas”, ou seja, quem ministra o conteúdo é o professor da disciplina homônima, representa uma enorme “tentação” de recrudescimento do modelo pedagógico da aula expositiva. O hipotético professor de Embriologia, que há 10 anos ministra a mesma aula expositiva será agora convidado a aderir ao PBL ou à problematização, exigindo reformulação profunda e laboriosa de suas “convicções pedagógicas”. Será que ele vai se empolgar? Por outro lado, um grupo de professores de diferentes subáreas da área da saúde, muitos dos quais sem domínio profundo do tema Embriologia, poderia ser mais suscetível de aderir a uma metodologia pedagógica ativa, como o PBL, onde a ausência de conhecimento profundo do tema específico é inclusive desejável para impedir o professor de incorrer na transmissão expositiva dos conteúdos.

Neste sentido, há uma evidente contradição entre a prática curricular e seus fundamentos, pois nos elementos introdutórios o PPP manifesta que uma de suas principais tarefas é desfazer a fragmentação curricular e a dissociação entre ciclo básico e ciclo clínico. A cada semestre, durante 24 horas semanais, ou seja, durante seis turnos de quatro horas, os estudantes estudarão a Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia, etc. de cada aparelho orgânico, no “ciclo básico”, e depois, mais adiante no curso médico, no “ciclo clínico”, as disciplinas relacionadas às especialidades tradicionais da clínica e da cirurgia.

Ao menos a aparência de uma tentativa de desfazer tal dissociação transparece ao exame do conteúdo dos MIVs do “ciclo básico”, como se pode ver no Quadro 7. Cada MIV corresponde a um sistema orgânico; os temas de cada módulo correspondem às disciplinas que estudam os diferentes aspectos deste sistema. Assim, para todos os MIVs do primeiro e segundo períodos, discriminados no quadro, sucedem-se, como temas, Embriologia, Histologia, Fisiologia, Anatomia... e depois, uma disciplina clínica relacionada àquele aparelho. Por exemplo, no MIV10, Sistema Endócrino-Reprodutor, além das disciplinas

básicas já citadas, incluem-se as disciplinas Ginecologia e Urologia, a que correspondem, como se pode perceber, as homônimas especialidades médicas focais. No entanto, esta integração fica, ainda, restrita ao plano biológico: estuda-se o sistema reprodutor, seus hormônios, a disposição de seus órgãos, e finalmente, as doenças que o acometem. Entretanto, não há, nos conteúdos do MIV10, nenhuma referência à ampliação do conceito de Saúde. As afecções do sistema reprodutor serão estudadas dentro do contexto social no qual se apresentam? Além disso, não há nenhuma garantia implícita ou explícita na formulação dos módulos de que as práticas educativas estarão em acordo com conceitos dialéticos de Educação. Pelo contrário, a julgar pelo desenho dos MIVs, estruturados em função dos conteúdos, o que se espera é a reprodução da educação não-dialética, idealista, que Freire denominava bancária.

Este foi, desde o princípio, o cavalo-de-batalha das escolas de Londrina e Marília (FEUERWERKER, 2002), e de outras escolas que lograram mudanças de nível avançado (LAMPERT, 2002), esta foi a mudança de perspectiva que orientou a reestruturação dos módulos curriculares nestas escolas. Até aqui, a “leitura horizontal e exaustiva” do PPP não permite inferir que haja a mesma mudança de perspectiva no caso da UFPB. O exame dos demais módulos do PPP, sua disposição interna e suas relações com a totalidade do currículo, pode indicar algumas respostas em que se possa vislumbrar as possibilidades de mudança efetiva e de recurso a conceitos ampliados de Saúde e Educação, através da coerência entre teoria e prática curricular.

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