• Nenhum resultado encontrado

2 Sociedade de consumo

2.3 A formação da sociedade de consumo

2.3.1 Karl Marx (1818-1883)

Karl Marx não refletiu sobre o consumismo moderno, este não era um fenômeno do seu tempo. No entanto, foi o primeiro autor a analisar a natureza da mercadoria no sistema capitalista.

O trabalho humano, realizado a partir da interação entre corpo (músculos e membros), mente (pensamento) e a natureza, possui, em uma primeira observação, o caráter de subsistência da espécie – ou seja, partindo do que é dado pela natureza, os homens a transformam para satisfazerem suas necessidades biológicas e sociais.

Entretanto, nem tudo que o trabalho humano produz é para sua própria subsistência. O objeto fabricado posto na interação social transforma-se em mercadoria. Aquilo que era apenas para a subsistência do grupo (utilidade) passa, em sociedade, a ganhar outra característica: sua capacidade de realização de trocas. Socialmente a mercadoria passa a interagir as relações humanas.

Assim, Marx inicia as investigações sobre O Capital a partir da sua constituição primária, afirmando que a riqueza nas sociedades capitalistas “aparece como uma imensa coleção de mercadorias” (MARX, 1996, p. 165). No mercado, o objeto, além de sua utilidade, ganha a capacidade de produzir riqueza.

Segundo ele:

A mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie. A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa. Aqui também não se trata de como a coisa satisfaz a necessidade humana, se imediatamente, como meio de subsistência, isto é, objeto de consumo, ou indiretamente, como meio de produção (idem).

A satisfação produzida pelo objeto-mercadoria – seja como subsistência humana, seja como matéria prima no sistema produtivo – é o que, segundo Marx, permitirá o processo de acúmulo de capital. Isso ocorre pelo fato de que no mercado (circulação) a mercadoria se transforma em dinheiro e parcela deste novamente em mercadoria. A famosa fórmula M – D – M’ evidencia a metamorfose pela qual a mercadoria se transforma em dinheiro a ser acumulado pelo capitalista.

No entanto, o processo metamórfico sofrido por ela até se transformar em capital é mais complexo. O triplo movimento – produção-circulação-consumo – contém em cada momento especificidades próprias, e nesse sentido o entendimento de cada um deles torna-se necessário.

Comecemos pelo primeiro momento: a produção. É nela que o processo de criação do valor (de uso e de troca) aparece. Marx, ao analisar a esfera da produção, afirma:

O produto – a propriedade do capitalista – é um valor de uso, fio, botas etc. mas, embora as botas, por exemplo, constituam de certo modo a base do progresso social e nosso capitalista seja um decidido progressista, não fabrica as botas por causa delas mesmas. O valo de uso não é, de modo algum, a coisa qu’on aime pour lui-même (que

se ama por si mesma). Produzem-se aqui valores de uso somente porque e na medida em que sejam substrato material, portadores de valor de troca. E para nosso capitalista, trata-se de duas coisas. Primeiro, ele quer produzir um valor de uso que tenha um valor de troca, um artigo destinado à venda, uma mercadoria. Segundo, ele quer produzir uma mercadoria cujo valor seja mais alto que a soma dos valores das mercadorias exigidas para produzi-la, os meios de produção e a força de trabalho, para as quais adiantou seu bom dinheiro no mercado. Quer produzir não só um valor de uso, mas uma mercadoria, não só valor de uso, mas valor e não só valor, mas também mais-valia (MARX, 1996, p. 305 grifo nosso).

O primeiro passo para a realização do capital foi dado. A vontade do capitalista de produzir algo (mercadoria) a ser posto no mercado (com valor de uso) o permite acumular dinheiro (capital). No capitalismo, não se faz uma troca por meio do produto em si, por exemplo, trigo por ferro, mas há no mercado uma língua universal que é o dinheiro. O dinheiro é o meio pelo qual a transferência de uma mercadoria, que está em uma mão, irá para outra. Veremos adiante a questão do dinheiro no processo de circulação.

No processo produtivo há dois atores envolvidos: o capitalista – com suas máquinas, ferramentas, fábricas e o projeto da mercadoria (a ideia) – e o trabalhador – possuidor apenas da mão de obra que será vendida ao capitalista por um salário que, em tese, deveria proporcionar a ele subsistência.

A elaboração de mais-valia (absoluta) se dá pelo excedente de tempo útil despendido pelo trabalhador na produção da mercadoria, mas não remunerado pelo capitalista ao trabalhador.

Quadro 3 - Geração de mais-valia

Custo dos meios de produção (Máquinas, matéria- prima, ferramentas, manutenção etc.) Salário (3 horas trabalhadas) pago para se produzir 100 pares de sapato

Custo total dos 100 pares de sapato

Custo unitário de cada par de sapato

100 $ 50$ 150 $ 150/100 = 1,5$

Jornada de trabalho ampliada para 9 horas

100 $ (x 3) = 300 50$ (salário permanece o mesmo)

100 pares (x 3) = 300 pares = 350 $

350/300 = 1,16 $

A mais-valia (1,5$ – 1,16$ = 0,34$) gerada pelo aumento do número de horas trabalhadas ficará com o capitalista, não sendo repassada ao trabalhador.

Elaboração: o autor

Pelo exemplo dado, nota-se que o trabalhador, ao vender sua mão de obra ao capitalista, fica subordinado às vontades do patrão, se tornando também uma mercadoria. A necessidade de subsistência do trabalhador – que só possui a mão de obra como ferramenta para sobrevivência no mercado capitalista – o torna manipulável pelo proprietário dos meios de produção. A mão de obra do trabalhador também se torna mercadoria, intercambiável como todas as outras.

Nesse contexto, toda mercadoria traz em si processos de exploração, mas que desaparece motivada pela sacralização social no processo de circulação. O trabalho socialmente útil para se produzir a mercadoria é tornado abstrato, e então ela passa a existir no mercado com vida própria. A mercadoria passa a falar por si mesma, escondendo todo processo de exploração contido nela.

A circulação da mercadoria é o segundo movimento na realização da mercadoria – o primeiro, como vimos, é a produção. Sobre este instante, Marx afirma:

A circulação de mercadorias é o ponto de partida do capital. Produção de mercadorias e circulação desenvolvida de mercadorias, comércio, são os pressupostos históricos sob os quais ele surge. Comercio mundial e mercado mundial inauguram no século XVI a moderna história da vida do capital.

Abstraiamos o conteúdo material da circulação de mercadorias, o intercâmbio dos diferentes valores de uso, e consideremos apenas as formas econômicas engendradas por esse processo, então encontraremos como seu produto último o dinheiro. Esse produto último da circulação de mercadorias é a primeira forma de aparição do capital (MARX, 1996, p. 267).

A circulação das mercadorias ocorrerá no mercado mediante a língua do dinheiro – como afirmamos anteriormente –, permitindo que o capitalista acumule capital. No entanto, para que isso ocorra, é fundamental que seu valor de troca esteja latente socialmente e, para tal

concretização, a mercadoria deve aparecer no mercado com toda a sua sacralidade, com toda sua magia.

Sobre o processo de circulação da mercadoria e acúmulo de capital, Marx (1996) afirma:

A forma direta de circulação de mercadorias é M – D – M, transformação de mercadoria em dinheiro e retransformação de dinheiro em mercadoria, vender para comprar. Ao lado dessa forma, encontramos, no entanto, uma segunda, especificamente diferenciada, a forma D – M – D, transformando dinheiro em mercadoria e retransformação de mercadoria em dinheiro, comprar para vender. Dinheiro que em seu movimento descreve essa última circulação transforma-se em capital, torna-se capital e, de acordo com sua determinação já é capital (MARX, 1996, p. 267/8).

Nessa passagem, Marx nos mostra como se dá o processo de realização do capital. Contudo, é necessário ressaltar que essa realização só ocorre pelo fato de que a mercadoria possui o valor de troca socialmente estabelecido.

Assim, o terceiro movimento de realização da mercadoria aparece: o consumo. É por meio dele que o capital se realiza por completo.

Todavia o consumo da mercadoria está para além do seu valor de uso. Se fosse apenas pelo caráter de satisfação de necessidades biológicas (as que surgem do estômago, como afirma Marx), certamente o sistema capitalista não teria ido muito longe. Como vimos, a realização e a autorreprodução do capital se dá pelo fato de que as mercadorias possuem valor de troca simbolicamente estabelecido em sociedade. Pelo simples valor de uso da mercadoria, o acúmulo de capital não seria suficiente para sua perpetuação.

Marx afirma que, no processo de produção e circulação das mercadorias, ocorre a fetichização, e isso se dá pelo fato de no sistema capitalista de produção haver uma complexa divisão social do trabalho, no qual o trabalhador não possui nenhum controle do que é produzido, sendo, portanto, as relações sociais permeadas pelos objeto-mercadorias e não por indivíduos de carne e osso, participantes de classes sociais distintas. A mercadoria ganha vida própria, tal como no mundo religioso, como descreve Marx:

No mundo da religião os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana. Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias, e que, por isso é inseparável da produção de mercadorias (MARX, 1996, p. 198-199).

Nesse sentido o caráter fetichista (sacralização social) da mercadoria possui dupla função: promover o processo de acúmulo de capital – pois é por meio dele que os indivíduos

são recrutados a se interessarem pelo objeto-mercadoria – e fazer desaparecer o caráter exploratório do trabalho contido na mercadoria.

Assim, uma vez que os consumidores se dispõem a ir ao mercado, não há interesse social de saber se na mercadoria a ser adquirida há exploração ou não. Os consumidores são encantados pela existência própria da mercadoria. Como afirmamos anteriormente, o objeto- mercadoria ganha vida própria falando por si mesmo, ao mesmo tempo que o trabalhador teve sua mão de obra tornada mercadoria no processo produtivo, e, portanto, ele próprio tornado objeto pelo capitalista.

A abordagem marxiana sobre a mercadoria e sua realização é de extrema importância para nossa pesquisa tendo em vista que, na sociedade de consumo, cada vez mais o caráter mágico das mercadorias é potencializado.

O consumo em massa requer produção em massa, e consumo em massa requer mercadoria a preços baixos. No sistema capitalista, como vimos, a acumulação de capital se dá essencialmente pela exploração da mão de obra (mais-valia) e pela circulação, e o caráter fetichista da mercadoria abstrai essa exploração e potencializa o desejo de aquisição.

A característica central da sociedade de consumo é o consumo em massa de mercadorias. Seja para satisfação biológica (alimentos), seja para satisfação pessoal (conforto, segurança etc.) ou social (status).

Sobre o consumo por status, E. Giannetti (2010) apresenta a ideia de bens posicionais61.

Afirma:

Existem bens não posicionais, cuja satisfação independe do fato de os outros terem ou não acesso a ele. Se eu tomo um copo de leite todo dia de manhã e isso me traz prazer e satisfação, o prazer que tiro não depende do que os outros na cidade estão fazendo – não é um bem posicional. Agora, vamos supor que sou um jovem e tenho como aspiração obter um carro importado que vai me dar algum tipo de preeminência e ascendência em relação aos meus pares, em relação às meninas, e as pessoas vão me olhar de outra maneira. Dediquei os melhores anos da minha juventude, honestamente, a um trabalho insano num banco para conquistar o meu BMW importado, e consegui. Só que, no dia em que chego em casa triunfante, porque consegui obter aquilo pelo qual lutei durante tanto tempo, acontece uma coisa estranha: quando acordo, na manhã seguinte, todos os carros da cidade foram trocados por BMWs iguais à minha. Acabou! Ninguém mexeu na sua BMW, mas aquilo que você conquistou subitamente desapareceu. Esse é o bem posicional, um bem cujo valor depende do fato de que os outros não possuem. Tudo indica que, quanto mais uma sociedade prospera, mais as pessoas almejam bens posicionais, bens que conferem a elas algum tipo de diferença e proeminência (GIANNETTI, 2010, p. 77- 78).

A sacralidade existente numa BMW não é dela em si, mas é produto social. Um automóvel desse, posto numa tribo de aborígenes australianos, não significará absolutamente nada, além da estranheza natural por não o conhecerem.

É a partir desta compreensão que podemos afirmar que o fenômeno do consumismo ganha forma e força no momento em que a produção e a circulação de mercadorias são potencializadas pela industrialização e pela expansão do mercado a partir do século XIX. A relação é umbilical. Quanto mais a mercadoria circula, mais características metafísicas ela absorve, tendo em vista que quando mais consumidores a contemplam, mais são as faculdades simbólicas criadas.