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2 Sociedade de consumo

2.3 A formação da sociedade de consumo

2.3.2 TorsteinVeblen (1857-1929)

O economista Torstein Veblen (1857-1929), com sua obra A teoria da classe ociosa, publicada em 1899, foi pioneiro na análise sobre como uma determinada classe econômica, por meio do consumo, altera as relações sociais. Ele a intitula de classe ociosa, e o consumo por ela engendrado, de conspícuo. No entanto, o autor afirma que o surgimento da classe ociosa não foi fruto do desenvolvimento capitalista, ao contrário, surgiu muito antes deste modo de produção. Afirma ele:

Em seu pleno desenvolvimento, a instituição da classe ociosa surge nos estágios mais avançados da cultura bárbara, como por exemplo na Europa e no Japão feudais. Em tais comunidades as diferenças entre as classes são de observância obrigatória, sobressaindo-se entre elas, como de mais notável significação econômica, as diferenças de ocupação. As classes mais altas são costumeiramente excluídas de ocupações industriais, cingindo-se às funções inerentemente honoríficas. (...) A classe ociosa, como um todo, compreende as classes nobres e as classes sacerdotais e grande parte de seus agregados. As ocupações são diferentes dentro da classe ociosa, mas todas elas têm uma característica comum – não são ocupações industriais. Essas ocupações não industriais das classes altas são em linhas gerais de quatro espécies – ocupações governamentais, guerreiras, religiosas e esportivas” (VEBLEN, 1984, p. 5).

A classe ociosa para Veblen é, assim, a possuidora de tempo livre, a que está livre das atividades produtivas (industriais) e que, portanto, será beneficiária da riqueza produzida pelas classes economicamente baixas.

A existência de uma classe com tais características está ligada fundamentalmente à exploração de outros grupos, à existência da propriedade privada (Veblen, p. 16). Isso se deve ao fato de que é por meio do trabalho que os homens conseguem sua alimentação, vestuário e moradia. Se a classe ociosa está isenta de trabalhos produtivos e se liga a atividades de caráter simbólico, o que resta a ela é se apropriar dos frutos do trabalho de outros grupos sociais.

Contudo, o consumo da classe ociosa não está restrito à mera satisfação das necessidades primárias – pelo contrário, ele é caracterizado pelo exagero e pela insatisfação. Nesse sentido, afirma Veblen:

Assim, logo que a propriedade se torna a base da estima da comunidade, torna-se ela também um requisito daquela auto-satisfação que se chama respeito próprio. Nas comunidades em que a propriedade dos bens é particular, tem o indivíduo, para a sua própria paz de espírito, de possuir tantos bens quanto os outros de sua classe, e é extremamente agradável possuir alguma coisa mais do que os outros. Nem bem, todavia, adquire o indivíduo maior riqueza e com ela se acostuma, o novo padrão cessa de lhe dar maior satisfação que o padrão anterior. De qualquer modo, há uma tendência constante no sentido de fazer de cada padrão pecuniário o ponto de partida para um novo aumento de riqueza; o novo padrão, por sua vez, produz um novo critério de suficiência e uma nova classificação pecuniária em relação aos vizinhos. Relativamente à questão ora discutida o fim da acumulação de riquezas é sempre uma autoclassificação do indivíduo em comparação com o resto da comunidade no tocante à força pecuniária. O indivíduo normal, enquanto tal comparação lhe é distintamente desfavorável, vive cronicamente descontente com a sua própria situação; logo que ele atinge o que pode chamar o padrão pecuniário médio da comunidade ou de sua classe na comunidade, aquele descontentamento crônico se transforma num esforço impaciente para se distanciar cada vez mais de tal padrão.

(...)

Pela sua própria natureza, o desejo de riquezas nunca se extingue em indivíduo algum, e evidentemente está fora de questão uma saciedade do desejo geral ou médio de riqueza. Nenhum aumento geral de riqueza na comunidade, por mais geral, igual ou “justa” que seja a sua distribuição, levará mesmo de longe ao estancamento das necessidades individuais, por que o fundamento de tais necessidades é o desejo de cada um de sobrepujar todos os outros na acumulação de bens. Admitem alguns que o incentivo à acumulação está na necessidade de subsistência ou de conforto físico; se esse fosse o caso, poder-se-ia conceber que as necessidades econômicas conjuntas da comunidade se satisfizessem num ponto qualquer de progresso na eficiência industrial. A luta é, contudo, essencialmente uma luta por honorabilidade fundada numa odiosa comparação de prestígio entre os indivíduos; assim sendo, é impossível uma realização definitiva (VEBLEN, 1984, p. 18-19).

Essa longa e importante citação nos permite compreender que a classe ociosa, na concepção de Veblen, pode ser compreendida como o fundamento da sociedade de consumo atual, tendo em vista que esta se caracteriza não pelo consumo do produto em si. Não é o objeto, a coisa em si, que é consumido nesse tipo de sociedade, mas são as configurações simbólicas que o compõem, que produzem consumidores insaciáveis. Não é a casa, o carro, o iphone que está sendo consumido, mas o significado contido nele, sendo este compreendido como elemento de diferenciação, de status social.

A insaciabilidade nessa sociedade se produz a partir do momento em que novos produtos são lançados no mercado com a promessa, sempre eterna, de satisfação das necessidades e da geração do conforto, do alcance de novos posicionamentos no grupo ou na sociedade. E isso se deve também ao fato de que o ciclo virtuoso de valorização do capital ter de ser constante, e para isso deve sempre lançar novos produtos prometendo a eterna satisfação.

A busca da honorabilidade pela classe ociosa, como afirma Veblen, é um desses elementos simbólicos a serem conquistados pelos grupos socialmente desqualificados. Fica nas mãos dela a função de sempre conquistar os lançamentos do mercado – para manter ou aprimorar seu status – para assim, logo em seguida, serem copiados pelas classes inferiores.

A teoria de Veblen se torna importante em nossa análise, tendo em vista que uma classe ociosa e seu estilo de consumo é o propulsor do consumo social. Isso se explica pelo fato de que para se gerar uma sociedade de consumidores, se faz necessário a cópia social do consumo entre grupos. Além disso, também é necessário que os grupos propensos ao consumo sejam criados economicamente. A burguesia entre os séculos XVII e XIX é essa classe propensa ao consumo, e em potência o grupo que copiava a classe ociosa (a nobreza) com seu estilo conspícuo de consumo.

Fazendo coro à tese veblenesca, de que uma classe reproduz os desejos e necessidades de adquirir e consumir os objetos de outra superior, o filósofo e sociólogo Georg Simmel (1858- 1918) apresenta a moda como elemento estruturador da atividade do consumo. Afirma que a imitação é o princípio norteador das relações pessoais, tornando-se, assim, o elemento definidor das estruturas do sistema social.

Simmel (2008), em seus escritos sobre filosofia da moda, afirma que o ser humano, apesar de ser dual, homogeneíza suas ações, formando assim um corpo socialmente unitário. Dessa forma, a moda é esse fenômeno que provoca socialmente a tendência à cópia, a homogeneização. Afirma ele:

A essência da moda consiste em que só uma parte do grupo a pratica, enquanto a totalidade se encontra a caminho dela. Uma vez plenamente difundida, isto é, logo que aquilo que, no início, só alguns faziam é exercido realmente por todos, sem exceção, como aconteceu em certos elementos do vestuário e das formas de trato, já não se considera moda. Cada expansão sua impele-a para o seu fim, porque ela ab- roga assim a possibilidade da diferença. Através deste jogo entre a tendência para a difusão geral e a aniquilação do seu sentido, que suscita justamente esta expansão, ela tem o peculiar fascínio das fronteiras, o fascínio do simultâneo começo e fim, o encanto da novidade e, ao mesmo tempo, o da efemeridade. A sua questão não é ser ou não ser; ela é ao mesmo tempo ser e não ser, encontra-se sempre na divisão de águas entre passado e futuro e assim, enquanto persiste no seu clímax, dá-nos um sentimento muito forte de presença, como só poucos fenómenos o conseguem (SIMMEL, 2008, p. 31-32).

A homogeneização referida por Simmel tornou-se um dos elementos da própria estrutura do sistema econômico. A produção em série tornou-se possível no momento em que os gostos e desejos socialmente produzidos são horizontalizados. Nesse sentido, a moda possui a tarefa de provocar nas classes socialmente inferiores os desejos e gostos das superiores.

Ora, em virtude de a moda, enquanto tal, não poder justamente ter uma difusão geral, germina no indivíduo a satisfação de que ela representa nele sempre algo de particular e estranho, embora ele se sinta, ao mesmo tempo, interiormente sustentado por uma totalidade, que aspira ao semelhante, e não, como noutras satisfações sociais, por uma totalidade que realiza o semelhante. Por isso, a disposição anímica, que o fenómeno da moda compraz, é uma mescla visivelmente saborosa de aprovação e de inveja. Inveja-se o homem da moda como indivíduo, aprova-se como ser genérico (SIMMEL, 2008, p.33).

A compreensão que Simmel faz do caráter imitativo dos grupos sociais permite-nos afirmar que a teoria da classe ociosa de Veblen encontrou ecos.

Gilles Lipovetsky (2009) também afirma:

No início muito limitada, a confusão nos trajes só progrediu na passagem do século XVI ao XVII: a imitação do vestuário nobre propagou-se em novas camadas sociais, a moda penetrou na média e por vezes na pequena burguesia, advogados e pequenos comerciantes adotam já em grande número os tecidos, as toucas, as rendas e bordados usados pela nobreza. O processo prosseguirá ainda no século XVII, estritamente circunscrito, é verdade, às populações abastadas e urbanas, excluindo sempre o mundo rural; veremos, então, os artesãos e os camponeses empoar-se e usar peruca à maneira dos aristocratas (LIPOVETSKY, 2009, p. 44-45).

O caráter imitativo produziu ao longo dos últimos cinco séculos, como podemos observar, um novo estilo societário. O consumismo moderno (século XX), afirmamos, está com suas raízes fincadas nas relações sociais dos séculos anteriores.

Assim, entendemos que a moda se tornou mais um elemento estruturador das relações pessoais e delimitador de espaços sociais, permitindo-nos compreender o fenômeno atual da sociedade de consumo. O jogo dual promovido pela moda – novo/efêmero – impulsiona no século XX a formação do consumismo contemporâneo.

Isso ocorre pelo fato de o novo sempre prometer a diferenciação social, o bem-estar, o conforto e a felicidade – promessas da modernidade. Porém, como afirma Simmel, a moda, ao pronunciar o novo, traz em si o velho, a eterna luta recomeça. Numa metáfora, a sociedade é como Prometeu tendo seu fígado todos os dias sendo devorado; ao anoitecer, a regeneração do órgão o conduz para novo sofrimento no dia seguinte.

O fenômeno do consumismo moderno está aí embutido. O consumidor moderno que adquire o novo possui a consciência de que não tardará e o objeto estará efemerizado. O caráter frenético da moda, como afirma Simmel, torna obsoleto o objeto, não pela condição do uso, mas pelo fato de algo se apresentar como novo.

O novo traz em si o caráter fetichizado da mercadoria, como afirmou Marx. O novo nem sempre seduz pelas qualidades do valor de uso, mas principalmente pelo que suas características metafísicas – produtos da imaginação humana – permitem apresentar nas relações sociais entre indivíduos ou grupos.

São as estratégias para que ocorra a eterna valorização do capital. É necessário que incessantemente produtos novos sejam apresentados ao mercado. Uma das características para que o novo pereça com certa frequência é a própria ideia de obsolescência programada, chave para a constante recriação de produtos.

A ideia de bem posicional, citada anteriormente, também pode ser compreendida na tese de Simmel. A BMW nova adquirida por um indivíduo só terá validade social se poucos a possuírem. O novo é entendido não como aquilo que está sem uso, mas o que me dá destaque. Daí a ideia de a moda sempre produzir o novo, mesmo sendo algo que já foi produto social em determinado momento histórico. A reelaboração do que um dia já foi objeto de desejo é visto como novo devido ao fato de produzir posicionamento social de destaque.

Corroborando com tal ideia, Lipovetsky (2009) traça um panorama da moda, afirmando ser ela um produto típico das sociedades modernas. Como fenômeno da modernidade, a moda produz desdobramentos jamais vistos em outras épocas históricas, como por exemplo, a obsolescência programada dos objetos. Afirma ele:

Forma moda que se manifesta em toda a sua radicalidade na cadência acelerada das mudanças de produtos, na instabilidade e na precariedade das coisas industriais. A lógica econômica realmente varreu todo ideal de permanência, é a regra do efêmero que governa a produção e o consumo dos objetos. Doravante, a temporalidade curta da moda fagocitou o universo da mercadoria, metamorfoseado, desde a Segunda Guerra Mundial, por um processo de renovação e de obsolescência “programada” propício a revigorar sempre mais o consumo (...). Com a moda consumada, o tempo breve da moda, seu desuso sistemático tornaram-se características inerentes à produção e ao consumo de massa. A lei é inexorável: uma firma que não cria regularmente novos modelos perde força de penetração no mercado e enfraquece sua qualidade numa sociedade em que a opinião espontânea dos consumidores é a de que, por natureza, o novo é superior ao antigo (LIPOVETSKY, 2009, p. 185).

O século XX viu surgir daí um novo estilo de relação entre o sujeito e o objeto. Há nessa relação a ditadura do novo. Se até o século XVII o caráter de permanência dos objetos era o que determinava o padrão social dos indivíduos, famílias e grupos sociais, a partir da ascensão da burguesia – detentora do capital – como vimos anteriormente, com seu modo de vida a ser copiado da nobreza, instaura-se aí o domínio e a ditadura do novo. Ainda de acordo com Lipovetsky (2009)

A oferta e a procura funcionam pelo Novo; nosso sistema econômico é arrastado numa espiral onde a inovação grande ou pequena é rainha, onde o desuso se acelera: certos especialistas em marketing e em inovação podem assegurar que, em dez anos, 80 a 90% dos produtos atuais estarão desclassificados, serão apresentados sob uma forma nova e em nova embalagem. “É novo, é Sony”, todas as publicidades lançam toda a luz na novidade dos produtos – “Novo Pampers”, “Novo Ford Escort”, “Novos pudins com ovos de Francorusse” – o novo aparece como o imperativo categórico da produção e do marketing, nossa economia-moda caminha no forcing e na sedução insubstituível, da velocidade, da diferença (LIPOVETSKY, 2009, p. 185-186).

A moda, como se vê, tornou-se o motor do consumismo moderno, e para que isso ocorra com eficácia, é necessário que haja uma classe que alavanque os novos gostos, as novas necessidades, que procure por novos produtos, cujo objetivo é senão a diferenciação social, o conforto ou a felicidade.

A burguesia como classe socialmente detentora do poder econômico se torna atualmente – nas palavras de Veblen – a classe ociosa que possui o consumo conspícuo – e que será o grupo a ser copiado, imitado – nos termos de Simmel – pelas classes subalternas.

Retomando as discussões de T. Veblen, sobre a classe ociosa e seu consumo conspícuo, ele aponta para o caráter circunscrito dos bens de consumo. A atividade de consumir produtos de luxo representa a diferenciação social dos indivíduos, como se vê nesta passagem:

Para o homem ocioso, o consumo conspícuo de bens valiosos é um instrumento de respeitabilidade. A medida que acumula riqueza, ele é incapaz, sozinho, de demostrar a própria opulência dessa forma. Recorre por isso ao auxílio de amigos e rivais, dando- lhes presentes valiosos e convidando-os para festas e divertimentos dispendiosos (VEBLEN, 1984, p. 38)

A ociosidade das classes economicamente superiores faz com que haja o fenômeno do dispêndio, tendo em vista que os membros desta recorrem constantemente, para se diferenciarem dentro de seu próprio grupo, a níveis de consumo cada vez mais elevados.

Esse fenômeno foi possível até o momento que grupos específicos – nobreza, aristocracia, clero – possuíam o monopólio da riqueza. A partir do momento que foi possível o acúmulo de bens materiais por outros grupos sociais – como a burguesia –, o fenômeno do consumo de bens luxuosos deixa de estar circunscrito ao universo da classe ociosa.

Uma vez ascendida à condição de classe detentora de capital, a burguesia se torna o grupo propenso ao consumo, imitando, assim, as classes socialmente privilegiadas pela condição do nascimento (aristocracia).

Vê-se que a competição social entre classes está dada pelo fato de um grupo imitar o estilo de vida do outro. No entanto, para que haja tal competição é preciso que as necessidades conhecidas como fundamentais (alimentação, vestuário e habitação) estejam saciadas. Além disso, há de se ter aumento da renda dos grupos economicamente inferiores. Uma vez concretizados esses dois fatores, a disputa imitativa inicia-se incorporando valores, hábitos, desejos, vontades das classes superiores, às inferiores; e uma vez incorporados, as classes superiores necessariamente buscam novos elementos de consumo para dar continuidade à diferenciação social.

Essa competição imitativa, na teoria de Veblen, nos dá pistas para compreender claramente o fenômeno do consumismo moderno. Isso ocorre pelo fato de o estabelecimento

de padrões sociais por classes economicamente superiores ter-se tornado, ao longo do século XX, o motor de práticas sociais que potencializam a prática do consumo a níveis jamais vistos em outros períodos históricos.

Veblen, ao analisar o consumo dos grupos sociais, afirma que a competição entre eles é o que move e faz surgir novos padrões de vida. Essa disputa é, em nosso entendimento, um dos pilares para se compreender o consumismo. Segundo Veblen:

O padrão de vida é pela sua natureza um hábito. Constitui, em método e intensidade, um hábito de reação a um dado estímulo. A dificuldade em abandonar um padrão estabelecido consiste na dificuldade em quebrar um hábito já formado. A relativa facilidade com que é feito um avanço no padrão de vida significa que viver é um processo de desdobramento da atividade e que a mesma se desdobrará prontamente numa nova direção, sempre, quando e onde diminuir a resistência a auto-expressão (VEBLEN, 1984, p. 51).

Nessa passagem, fica claro que a competição entre grupos impulsiona o consumo social, tendo em vista que é por meio da aquisição de produtos – para satisfazer novos padrões sociais – que se produzem as diferenças entre as classes.