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1 O conceito de desenvolvimento sustentável no Relatório Brundtland: limites e

1.5 A ideologia por trás do desenvolvimento sustentável

1.5.1 A natureza destrutiva do capitalismo

Durante o último século, as ações antrópicas determinaram alterações no meio ambiente sobre as quais podemos afirmar que geraram desequilíbrios a ponto de ser possível dizer que há uma crise ambiental.

A relação da humanidade com o meio ambiente sempre foi antagônica. A subsistência dos grupos humanos depende exclusivamente da base material. Contudo, essa relação apesar de contraditória, nunca colocou em risco a própria existência humana.

No entanto, a partir da Revolução Industrial (século XVIII), o modelo de produção e consumo desenvolvido vem acarretando danos aos recursos naturais e, por consequência, à própria sociedade humana. A necessidade das nações industrializadas e dos seus respectivos mercados de ampliar suas áreas de exploração em busca de comércio e matéria-prima para maximizar suas taxas de lucro potencializa o antagonismo entre homens e natureza.

O estilo fossilista (ALTVATER, 1995) do industrialismo capitalista foi um dos principais elementos para a criação dos desequilíbrios ambientais durante o século XX. Para compreendermos essa desregulação do sistema capitalista e entendermos por que, até o atual momento, ele foi danoso ao meio ambiente natural e social, é importante levarmos em consideração a natureza de tal sistema. Para isso, Altvater (1995) propõe conceitos da física – sintropia (estado de um sistema fechado de elevada ordem) e entropia (medida do grau de desorganização do sistema) – para auxiliar na discussão.

Para o autor, o sistema capitalista industrial, que possui um caráter fossilista inerente, se utiliza de energia fóssil (portanto, acumulada por milhões de anos) – como petróleo, gás, carvão – para se reproduzir. Nesse caso, o sistema industrial retira de ilhas não renováveis de sintropia energia para a produção, resultando em um índice de entropia (desorganização do sistema) muito alto. Isso ocorre porque a quantidade da produção de bens exige uma quantidade cada vez maior de energia. Porém, as ilhas de sintropia (fluxo de energia), diferentemente do que se pensava há décadas, não são ilimitadas. Além desse fator, há o processo de desordem (alta entropia) provocado pela poluição no planeta.

Dessa maneira, pode-se compreender que o sistema industrial atual se utiliza, em um curto espaço de tempo, de ativos ambientais que foram organizados naturalmente durante milênios. O que significa que a capacidade de reposição desses ativos é infinitamente menor do

que o seu uso. Nas palavras de Altvater (1995, p. 48), “os limites da sintropia positiva e o inevitável crescimento da entropia em qualquer processo econômico revelam-se, portanto, uma barreira ecológica ao desenvolvimento”.

Essa desordem natural ambiental global, produzida pelo sistema industrial, leva-nos a compreender o desequilíbrio entre os países e a desordem do sistema como um todo. Ao longo dos últimos dois séculos, percebemos que territórios com grandes ilhas de sintropia (jazidas de petróleo, carvão mineral, gás, ouro, etc.) foram explorados com a intenção de promover a riqueza em alguns lugares específicos do globo. Apesar de participarem do modelo industrial de produção, esses países/territórios são apenas lugares de exploração. O uso desses recursos quase sempre ocorre em locais muitas vezes distantes de onde foram retirados. Logo, populações locais que deveriam se beneficiar da riqueza mineral extraída do seu espaço ficam apenas com os passivos ambientais e sociais. A lógica do mercado ao longo de décadas de exploração colocou milhões de pessoas em estado de extrema pobreza (Ásia, África e América Latina), ao passo que em outros lugares os benefícios econômicos e sociais causados pela exploração de riqueza nesses continentes são imensos.

Não restam dúvidas que o modelo fordista de produção industrial produz danos ao meio ambiente e à sociedade humana. Partindo desse pressuposto e de dois grandes desastres ambientais ocorridos nas décadas de 1950 e 1960 (Minamata, no Japão, e Londres, na Inglaterra), a Organização das Nações Unidas iniciou uma série de conferências para se debater a relação entre desenvolvimento econômico e meio ambiente.

Nota-se, entretanto, como visto na primeira parte deste capítulo, que a ideia de um desenvolvimento econômico que seja ambientalmente sustentável – apresentado em 1987 pela CNUMAD – está atrelada a um projeto ideológico, cujos atores centrais são os países de desenvolvimento industrial avançado, ou seja, os ricos.

Observamos que o Relatório Brundtland aponta, por diversas vezes, a pobreza como sendo o elemento central que trava a possibilidade de um desenvolvimento sustentável. Tomando esse posicionamento, torna-se evidente que os membros da Comissão – apesar de ter vários representantes de países pobres – são levados a se colocar a favor do discurso hegemônico dos países ricos.

Para compreender essa postura da Comissão Brundtland, é imperativo lembrar que durante os anos 1970 e 1980 o mundo entrou em uma recessão econômica importante – a Era do Ouro do capitalismo (Hobsbawm, 2001) havia desmoronado – e o elemento reestruturador encontrado pelos países ricos foi a chamada acumulação flexível (Harvey, 2013), em oposição

à rigidez do sistema fordista que dava sinais de esgotamento desde os anos 1960, como afirma Harvey:

De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do Keynesianismo de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistema de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (especialmente no chamado setor “monopolista”). E toda tentativa de superar esses problemas de rigidez encontrava a força aparentemente invencível do poder profundamente entrincheirado da classe trabalhadora (HARVEY, 2013, p. 135).

Para que tal acumulação fosse possível, eram necessárias novas formas de produzir, contratar pessoal e estabelecer novos mercados. Segundo Harvey (2013), essa acumulação é possível, pois:

(...) se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas. (...) Ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitam, enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variegado (HARVEY, 2013, p. 140).

Assim, um novo sistema de gerenciamento e de produção foi alavancado definitivamente: o toyotismo. Surgido no Japão, esse modelo preza pela chamada produção just

in time – na hora – ou seja, aquela em que não há estoques e a produção é feita por meio da

demanda efetiva. A flexibilidade desse modelo propicia alterações na condução da produção de mercadorias, o que permite corrigir rapidamente os erros de planejamento, provocar novas demandas e alavancar o mercado consumidor sempre com novas necessidades. Com relação a essa nova dinâmica de produção, Harvey (2013) afirma que:

As economias de escala buscadas na produção fordista de massa foram substituídas por uma crescente capacidade de manufatura de uma variedade de bens e preços baixos em pequenos lotes.

(...)

Esses sistemas de produção flexível permitiram uma aceleração do ritmo da inovação do produto, ao lado da exploração de nichos de mercado altamente especializados e de pequena escala – ao mesmo tempo que dependeram dela. Em condições recessivas e de aumento de competição, o impulso de explorar essas possibilidades tornou-se fundamental para a sobrevivência. O tempo de giro – que sempre é uma chave da lucratividade capitalista – foi reduzido de modo dramático pelo uso de novas

tecnologias produtivas (automação, robôs) e de novas formas organizacionais (como o sistema de gerenciamento de estoques “just in time”, que corta dramaticamente a

quantidade de material necessária para manter a produção fluindo). Mas a aceleração do tempo de giro na produção teria sido inútil sem a redução do tempo de giro no consumo. A meia vida de um produto fordista típico, por exemplo, era de cinco a sete anos, mas a acumulação flexível diminuiu isso em mais da metade de certos setores (como o têxtil e o vestuário), enquanto em outros – tais como as chamadas indústrias

“thoughtware” (por exemplo, vídeo games e programas de computador) – a meia vida

está caindo para menos de dezoito meses. A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós- moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais (HARVEY, 2013, p. 148).

Nessa passagem Harvey nos dá a chave interpretativa e compreensiva de como o sistema toyotista, a partir de todas as inovações tecno-gerenciais, potencializou a sociedade de consumo que estava por meio do fordismo/keynesianismo dando sinais de esgotamento.

A rápida obsolescência – diminuição da vida útil – de um produto é o elemento fundamental para se potencializar o consumo social. Na lógica toyotista, um produto perde sua eficiência não porque houve o desgaste natural das funções, mas devido ao fato do constante lançamento de novos produtos com mais tecnologia49. O processo de realização do capital,

funda-se, nesse sentido, na ampliação de novos mercados proporcionados pela intensa inovação tecnológica e velocidade na produção, potencializada pela robotização das plantas industriais. É nesse sentido que quando a Comissão Brundtland afirma que a pobreza é obstáculo ao desenvolvimento sustentável, o primeiro elemento a ser superado não é a crise ambiental, mas sim a crise econômica. Por esse motivo, tornava-se, e ainda se torna, impositivo que os países pobres conseguissem criar em seus espaços um mercado consumidor de massa, o que para isso se tornava fundamental o fim da miséria e da pobreza. Acabar com a miséria e a pobreza deveria ser um postulado, antes de tudo, humanitário, e não simplesmente para servir ao desenvolvimento e crescimento das economias nacionais.

O discurso produzido pela Comissão é visivelmente neoliberal, tendo em vista que a saída rumo a retomada do crescimento econômico passa pela ampliação dos mercados nos países pobres – daí a necessidade de, ao longo do Relatório, a Comissão colocar a pobreza no centro dos problemas para se alcançar o desenvolvimento sustentável. Dessa forma a pobreza, vista como a causadora da desregulação ambiental planetária, serve fundamentalmente para

49Exemplo disso são os telefones celulares. Por meio do anexo I, observamos a existência de cinco modelos de

aparelho celular da empresa norte-americana Apple. O modelo 5S foi lançado no mercado em setembro de 2013 e o último modelo lançado pela empresa, o 6S Plus, foi lançado em setembro de 2015. São cinco modelos em três anos.

sustentar essa expansão, já que em nome do equilíbrio ambiental as economias desenvolvidas teriam o papel de auxiliar as economias não desenvolvidas a alcançarem um patamar mínimo de crescimento econômico, o que faria com que tais nações se tornassem novos mercados consumidores.

Nesse âmbito, o discurso de defesa do meio ambiente, perpetrado pós anos 70 do século passado, possui um caráter salvacionista da economia mundial. Logo, entendemos que a ausência de debate no relatório sobre os padrões de consumo (produtivo e final) ocorre devido ao fato de estes serem a última etapa de realização da mercadoria, impulsionando as taxas de lucro – que são a mola propulsora do sistema capitalista. Refletir sobre um modo de vida no qual o consumo deva ser freado em nome da preservação ambiental é colocar em xeque a própria dinâmica do sistema econômico. Sobre isso, Cardoso e Vieira afirmam:

O desenvolvimento capitalista não é um modelo generalizável. Não é possível, espacial, material ou humanamente, que os padrões de consumo dos 10 ou 20% mais ricos sejam adquiridos por vastas populações. Seria preciso recursos naturais de quase duas vezes ao planeta Terra para isso. Eis aí a maior contradição do capitalismo. Sua perpetuação até o momento presente se deu pela expansão constante tanto do mercado consumidor, como da produção e consequentemente, da circulação de mercadorias. Ora, se não é possível manter a ampliação sem limites de uma dessas esferas, logo o modelo como um todo está em crise. As condições planetárias, perceptivelmente, não permitem a manutenção do mesmo padrão de crescimento. Daí o discurso do “desenvolvimento sustentável”, como projeto de manutenção do modelo com preocupações de ordem ecológica (CARDOSO e VIEIRA, 2011, p. 119/120).

Como veremos adiante, o fenômeno do consumismo – derivado de uma lógica de acumulação fordista/toyotista – surge no século XX para responder às necessidades dos países em desenvolvimento cujos mercados se abriam para a entrada de mercadorias (a exemplo do Brasil), somadas à ampliação dos mercados nos próprios países desenvolvidos (exemplo dos EUA), maximizando o acúmulo de capital.

Nota-se que com o crescente desenvolvimento de tecnologias, o consumo se amplia não só nos países desenvolvidos, mas também nos países em desenvolvimento. No quarto capítulo veremos, como exemplo, o setor automotivo, que é um dos setores principais na geração de emprego – devido à complexidade da sua cadeia produtiva –, mas promotor de danos socioambientais.

Nesse sentido, apenas uma ação radical, como a proposta pelo economista Nicholas G. Roengen em 1976, é que possibilitaria frear de algum modo os danos do sistema industrial capitalista. Cechin (2010) diz:

Georgescu propôs um programa de austeridade, um freio ao crescimento, para ser aplicado primeiro às economias avançadas. O Programa Bioeconômico Mínimo listava os seguintes pontos:

2) Os países não desenvolvidos devem ter ajuda dos países desenvolvidos para chegarem a um patamar de qualidade de vida.

3) A humanidade deveria gradualmente reduzir sua população até o nível em que pudesse ser alimentada apenas por agricultura orgânica.

4) Até que o uso direto da energia solar seja viável e generalizado, todo desperdício de energia deve ser evitado.

5) As pessoas devem se livrar da sede de bugigangas extravagantes como, por exemplo, carrinhos de golfe.

6) As pessoas devem se livrar da moda. É uma doença jogar fora um casaco ou um móvel enquanto ainda podem ser usados. Trocar de carro todo ano, então, é um crime bioeconômico. Se os consumidores se reeducassem para desprezar a moda, os produtores focariam na durabilidade.

7) Relacionado ao último ponto, é necessário que os bens duráveis sejam ainda mais duráveis e que sejam desenhados para serem consertáveis (CECHIN, 2010, p. 210).

As propostas radicais de Roengen não saíram do papel, até mesmo porque se fossem efetivadas, o sistema capitalista industrial perderia sua base que é a expansão constante das taxas de lucro, tendo em vista que dos sete pontos apresentados, cinco estão relacionados com alterações no sistema de produção e consumo, elementos que caracterizam o sistema econômico.