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Kelsen Das Problem der Souveränität 1920, p 125.

CAPÍTULO III RELAÇÃO E NORMA

54 Kelsen Das Problem der Souveränität 1920, p 125.

que correntemente se entende, o direito objetivo ou a norma funda­ menta, tanto lógica como realmente, a relação jurídica. De acordo com esta representação, a norma objetiva é o fator gerador da relação jurí­ dica. "A norma do direito ao pagamento de uma dívida não existe em virtude de os credores formularem habitualmente esta exigência, mas, ao contrário, os credores só formulam esta exigência em virtude de existir a norma; o direito não é estabelecido a partir da abstração dos casos observados, mas como resultado de uma dedução feita a partir de uma regra formulada por alguém''

A expressão ''a norma gera a relação jurídica’' pode ser com­ preendida num duplo sentido; realmente e logicamente. Examinemos o primeiro caso. Antes de mais nada importa notar (e os próprios juristas buscaram suficientemente tal convicção) que o conjunto das normas escritas ou não escritas pertence, em si, mais ao domínio da criação literária'^®. Tal conjunto de normas adquire uma significação real graças somente às relações que são concebidas como derivadas destas normas e que delas derivam efetivamente. Até o próprio Hans Kelsen, o mais coerente defensor do método puramente normativo, não pôde deixar de reconhecer que era necessário conferir, de uma ou de outra maneira, à ordem normativa ideal, um elemento de vida real, isto é, de conduta humana efetiva Na realidade, quem considerasse, por exemplo, as leis da Rússia czarista como direito ainda vigente, seria um provável candidato ao manicômio. O método jurídico formal que cuida somente das normas e "do que é conforme ao direito" não pode conservar a sua autonomia a não ser dentro de estreitos limites e, portanto, a não ser enquanto a tensão entre o fato e a norma não ultrapassar um certo máximo. Na realidade material a relação prevalece sobre a norma, Se nenhum devedor pagasse suas dívidas, então a regra correspondente deveria ser considerada inexistente de fato. E se, ainda assim, se quisesse afirmar a existência desta regra, seria necessário então mitificar a norma de qualquer modo. Numero­ sas teorias de direito são empregadas visando mitificação e baseando-a em considerações metodológicas muito sutis.

O direito, enquanto fenômeno social objetivo, não pode esgotar-se na norma ou na regra, seja ela da escrita ou não. A norma como tal, isto é, 0 seu conteúdo lógico, ou é deduzida diretamente das relações já existentes ou, então, representa quando é promulgada como lei

5 5 . Sersenevic. Obscaja teorija prava, 1910, p. 74.

5 6 . “É preciso ter em conta que as leis engendram o “Direito”, somente na medida em que se realizem e que as normas saiam ‘‘da existência da pape­ lada” para se afirmarem na vida humana como poder” (Hold Ferneck. Die Rechtswidrigkeit, lena, 1903, p. 11).

5 7 . Kelsen. D er soziologische und der Juristische Staatsbegriff, Tübingen,

estadual apenas um sintoma que permite prever com certa probabi­ lidade 0 futuro nascimento das relações correspondentes. Para afir­ mar a existência objetiva do direito não é suficiente conhecer apenas 0 seu conteúdo normativo, mas é necessário igualmente saber se este conteúdo normativo é realizado na vida, ou seja, através de relações sociais. A origem normal dos erros neste caso está no modo de pen­ sar dogmático que confere ao conceito de norma vigente um signifi­ cado específico que não coincide com aquilo que o sociólogo ou o historiador entendem por existência objetiva do direito, Quando o jurista dogmático tem de decidir se uma determinada forma jurídica está ou não em vigor, ele não procura geralmente determinar a exis­ tência ou não de um determinado fenômeno social objetivo, mas ape­ nas a presença, ou a ausência, de um vínculo lógico entre a proposi­ ção normativa dada e as premissas normativas mais gerais

Assim, para o jurista dogmático, dentro dos estreitos limites da sua tarefa puramente técnica, verdadeiramente não existem senão nor­ mas; ele pode, pois, identificar com a maior serenidade o direito e a norma. Com relação ao direito consuetudinário, ele deve, quer queira quer não, voltar-se para a realidade. Mas se a lei estadual é para o jurista o supremo princípio normativo, ou, utilizando uma expressão técnica, a origem do direito, as considerações do jurista dogmático acerca do direito vigente não comprometem de modo algum o histo­ riador cujo desejo é estudar o direito realmente existente. O estudo científico, ou seja, teórico, não pode levar em consideração senão realidades de fato. Se certas relações foram efetivamente constituídas, isso significa que nasceu um direito correspondente; porém, se uma lei ou um decreto foram apenas promulgados sem que na prática tivesse surgido qualquer relação correspondente, então isso significa que foi feita uma tentativa fracassada para criar um direito. Este ponto de vista de modo nenhum tem seu equivalente na negação da vontade de classe como fator de evolução ou na renúncia à interven­ ção consciente enquanto evolui o desenvolvimento social ou ainda no ''economismo", no fatalismo e em outras coisas abomináveis. A ação política revolucionária pode vencer muitas dificuldades; ela pode rea­ lizar amanhã aquilo que hoje ainda não existe; mas não pode repen­ tinamente dar existência àquilo que efetivamente não existiu no pas­ sado. Por outro lado, quando afirmamos que o projeto de construção de um edifício e mesmo a planta desse edifício não representam ainda a sua verdadeira construção, isso não quer dizer, de nenhum modo,

5 8. Na língua russa para designar o direito positivo e o direito vigente utilizam-se termos que têm a mesma raiz. No alemão, a diferença lógica torna- se mais evidente através do emprego de dois verbos diferentes: “wirken” no sentido de ser eficiente e "gelten” no sentido de ser válido, ou seja, de estar ligado a uma premissa normativa mais geral.

que a sua construção não necessite nem de projeto, nem de planta. Mas se a decisão não foi além do plano, então não podemos afirmar que 0 edifício tenha sido construído.

Nós podemos modificar a proposição mencionada e colocar em primeiro lugar, não já a norma como tal, mas as forças objetivas regu­ ladoras e atuantes na sociedade, ou, segundo a expressão dos juristas, a ordem jurídica objetiva

Mas, mesmo sob esta formulação modificada, esta tese pode ser submetida ainda a uma outra crítica. Se por forças sociais reguladoras entendem-se apenas essas mesmas relações na sua regularidade e na sua continuidade, caímos numa simples tautologia; mas, se se entende como tal uma ordem particular, organizada conscientemente, que ga­ rante e preserva estas relações, o erro lógico torna-se então inteira- níiente claro. Com efeito, não pode afirmar-se que a relação entre o credor e o devedor seja criada pelo sistema coativo de cumprimento de dívidas existentes no Estado em questão. Esta ordem, existente obje­ tivamente, garante certamente a relação, preserva-a mas em nenhum caso a cria. A melhor prova de que não se trata de uma querela ver­ bal e escolástica está no fato de que podem imaginar-se os mais diversos graus de perfeição no funcionamento desta regulamentação social, exterior e coativa, e por conseguinte os mais diversos graus na preservação de certas relações (justificando tudo isso através de exem­ plos históricos), sem que estas relações sofram a menor modificação na sua própria existência. Podemos também imaginar um caso limite onde não exista, ao lado das duas partes que mutuamente entram em relação, uma terceira força capaz de estabelecer uma norma e de garantir a sua observância; por exemplo, um contrato qualquer entre habitantes do Var e os Gregos. Contudo, mesmo neste caso, a relação permanece Porém, basta imaginar o desaparecimento de uma das

5 9 . É preciso notar aqui que uma atividade social reguladora pode igual­ mente passar sem normas estabelecidas a priori. É isso que prova a criação

jurisprudencial do direito. A sua importância foi particularmente grande naque­ les períodos que não conheceram produção centralizada de leis. Assim, por exemplo, o conceito de uma norma acabada, dada exteriormente, era totalmente estranha aos tribunais da antiga Germania. Todas as compilações de regras náo eram para os jurados leis imperativas, mas sim meios auxiliares que lhes permitiam formar a sua própria opinião. (Stinzing. Geschichte der deutschen Rechtswissenschaft, t. I, 1880, p. 39.)

6 0 , Todo o sistema jurídico feudal baseava-se em tais relações contratuais não garantidas por qualquer “terceira força". Igualmente o Direito internacio­ nal moderno não conhece nenhuma coação organizada do exterior. Com certeza tais relações jurídicas não garantidas não se caracterizam pela sua estabilida- de, mas isso não nos outorga o direito de negar a sua existência. Um direito absolutamente constante não existe em nenhum caso; por outro lado, a esta­ bilidade das relações jurídicas privadas, no Estado burguês moderno "bem

partes, ou seja, de um dos sujeitos, enquanto titular de um interesse particular autônomo, para que imediatamente desapareça também a

possibilidade da própria relação.

Podem replicar-nos que, se se abstrair da norma objetiva, os con­ ceitos de relação jurídica e de sujeito jurídico ficam suspensos no ar sem poderem ser captados, em geral, por nenhuma definição. Tal objeção traduz o espírito eminentemente prático e empírico da juris** prudência moderna, a qual está firmemente convencida somente de uma única verdade: a saber, a de que todo o processo estaria con­ denado se a parte que conduz o processo não pudesse apoiar-se num dado artigo de uma lei qualquer. Teoricamente, no entanto, a convic­ ção de que o sujeito e a relação jurídica não existem fora da nor­ ma objetiva é tão errônea quanto a convicção segundo a qual o va­ lor não existe e não pode ser definido fora da oferta e da procura, já que ele apenas se manifesta empiricamente nas variações dos preços.

O pensamento jurídico dominante que põe em primeiro plano a norma como regra de conduta, formulada autoritariamente, não é menos empírico e segue junto, como se pode igualmente observar nas teorias econômicas, com um formalismo extremo totalmente des­ ligado da vida,

A oferta e a procura podem existir para quaisquer espécies de objetos e entre os quais também aqueles que, de nenhum modo, cons­ tituem produtos do trabalho. Deduz-se daí que o valor pode ser deter­ minado fora de qualquer relação com o tempo de trabalho socialmente necessário à produção do objeto em questão. A avaliação empírlco- individual serve aqui de fundamento à teoria lógico-formal da utili­ dade marginal. Igualmente, as normas emanadas do Estado podem referir-se aos mais diversos domínios e apresentar os mais variados caracteres. Donde se conclui que a essência do direito se esgota nas normas de conduta ou nas ordens emanadas de uma autoridade supe­ rior, e que a própria matéria das relações sociais não contém por excelência os elementos geradores da forma jurídica.

A teoria lógico-formal do positivismo jurídico baseia-se no fato empírico de as relações, que se encontram sob a proteção do Estado, serem as que são melhor garantidas.

A questão por nós examinada, reduz-se — para empregar a ter­ minologia da concepção materialista da história — ao problema das organizado”, de modo algum baseia-se apenas na polícia e nos tribunais. As dívi­ das não são pagas pelos indivíduos somente porque elas “de qualquer modo se­ riam pagas’', mas também para que eles possam conservar o seu crédito no futuro. É o que resulta das conseqüências práticas que implicam, no mundo dos negócios, as letras de câmbio sujeitas a protesto.

relações recíprocas entre a superestrutura jurídica e a superestrutura política. Considerando, pois, sob todos os pontos de vista, a norma como o momento primário, então, antes de analisarmos qualquer su­ perestrutura jurídica, nós temos de pressupor a existência de uma autoridade que formule as normas, em outros termos, a existência de uma organização política. Devemos concluir daí que a superestrutura jurídica é uma conseqüência da superestrutura política.

Marx mesmo salienta, contudo, que as relações de propriedade, que constituem a camada fundamental e mais profunda da superes­ trutura jurídica, se encontram em contato tão estreito com a base, que surgem como sendo as “próprias relações de produção" das quais são a ''expressão jurídica” O Estado, ou seja, a organização do domínio político de classe, nasce no terreno de dadas relações de produção e de propriedade. As relações de produção e a sua expressão jurídica formam aquilo que Marx chamava de, na seqüência de Hegel, a socie­ dade civil. A superestrutura política e, notadamente, a vida política estadual oficial constituem um momento secundário e derivado.

A maneira como Marx representa as relações entre a sociedade civil e 0 Estado revela-se na seguinte citação: ''O indivíduo egoísta da sociedade burguesa esforça-se em vão, na sua representação não- sensível e na sua abstração sem vida, por se engrandecer a ponto de considerar-se um átomo, ou seja, como um ser sem a mínima relação, bastando-se a si próprio, sem necessidades, absolutamente pleno, em plena felicidade; mas a desafortunada realidade sensível não cuida da sua imaginação; e cada um dos seus sentidos constrange-o a pen­ sar no significado do mundo e dos indivíduos que existem além de si próprio; e até o seu profano estômago o lembra diariamente que 0 mundo fora dele não se encontra vazio e que, ao contrário, é ele que verdadeiramente o enche. Cada uma das suas atividades e das suas propriedades essenciais, cada um dos seus instintos vitais torna- se uma carência, uma necessidade que transforma seu egoísmo, seu

interesse pessoal em interesse por outras coisas e por outros homens que existem além dele. Mas como a carência de um determinado indivíduo não tem em si mesma sentido inteligível para o outro indi­ víduo egoísta que possua os meios de satisfazer tal carência, como a carência não tem, portanto, relação imediata com a sua satisfação, todo o indivíduo se encontra obrigado a criar esta relação fazendo-se igualmente intermediário entre a carência de outrem e os objetos desta carência. Portanto, o que mantém unidos os membros da sociedade burguesa outra coisa não é senão a necessidade natural, ou as proprie­ dades essenciais do homem (por mais alienadas que possam parecer), em suma, o interesse, sendo que a vida civil é o vínculo desta socie­ dade burguesa, e não a vída política. O que assegura a coesão dos

átomos da sociedade burguesa não é, pois, o Estado, mas o fato de tais átomos não serem átomos a não ser na representação, no céu da sua imaginação, e o de, na realidade, serem seres prodigiosamente diferentes dos átomos: não egoísmos divinos, mas homens egoístas.

Atualmente, apenas a superstição política sustenta que a coesão da vida civil é produto do Estado, quando, na verdade, é a coesão do Estado que, na realidade, é mantida como fato da vida civil"

Em outro ensaio, Á crítica moralizante ou a moral crítica, Marx volta ao mesmo problema. Ele polemiza com o representante do "'so­ cialismo verdadeiro", Karl Heinzen, e escreve: ''Aliás, se a burguesia mantém politicamente, ou seja, pelo seu poder político, 'a injustiça nas relações de propriedade' " não foi ela que a criou. "A injustiça nas relações de propriedade" tal como está condicionada pela moderna divisão do trabalho, pela forma moderna de troca, pela concorrência, pela concentração etc., de nenhum modo tem a sua origem na supre- macia política da burguesia; pelo contrário, a supremacia política da burguesia é que tem a sua fonte nessas modernas relações de produ­ ção que os economistas burgueses proclamam como leis necessárias, eternas" «2,

Assim, o caminho que vai da relação de produção à relação jurí­ dica, ou relação de propriedade, é mais curto do que imagina a