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3.5.2 – Kitnet – o Filme

Gênero: Documentário / Ano: 2007 / Realização: André Araújo / Produção: André Araújo, Aline Salles, Flávia Rodrigues, Maria Amélia Castro Alves para Euzéeoscara, Public / Produção executiva: Marcelo Silva e Zelma Coelho / Roteiro: André Araújo, Aline Salles, Flávia Rodrigues / Fotografia: Herinaldo Batista, Hermes Macedo / Edição: Tatu / Som: não creditado / Música: DJ Romão Nogueira, André Araújo / Duração: 26’18” / Financiamento: Edital de cultura da Prefeitura de Palmas .

Sinopse: A equipe do documentário adentra diversos lares populares de Palmas, as famosas kitnets, geralmente unidades conjugadas com um quarto e sala, para escutar seus moradores. Antigos habitantes, jovens casais, artistas, arrendantes e um representante do poder público narram e opinam sobre a experiência de viver nesses lugares e o significado das kitnets na urbanidade da capital.

A distância de três anos entre a realização de Under the Rainbow e este documentário seguinte do mesmo André Araújo já explicita uma sensível modificação nos meios de produção e também no resultado final da obra. Por um lado, parte da produção esteve a cargo desta vez da Public, uma das agências de publicidade mais prestigiadas do Tocantins, encabeçada pelo também cineasta Marcelo Silva. Por outro, Araújo teve como porta para o financiamento a vitória em um edital da Prefeitura de Palmas para a área da cultura. Desenhava-se, assim, a perspectiva de um filme com uma equipe mais numerosa, mais profissionalizada, com acabamento mais rigoroso e ambicioso.

O filme tem uma influência beirando o constrangedor do [Eduardo] Coutinho, copiado do

Edifício Master, apesar de não ter o mesmo dispositivo narrativo. E esse foi o primeiro em

que a gente realmente planejou o orçamento. (...) Existia um dado não oficial na época e um dos personagens até fala isso no filme, que mais de 50% da população morava em kitnet naquele momento. Então eu achei aquilo muito relevante como um traço identificador de uma cidade em construção, e a partir daí é que o projeto foi sendo estruturado. Não foi na base do vamos lá filmar (informação oral)29.

Enquanto Under the Rainbow analisava o viver em Palmas, ou antes, as transformações nesse viver, mas usava para tanto um evento comum em grandes cidades ao redor do mundo e que só ganhava notoriedade agora por ocorrer também na pequena e provinciana capital

tocatinense, Kitnet – o Filme, ao contrário, vai mergulhar num aspecto que, se não é exclusivo, ao menos é típico de Palmas. Como motivo central da obra, surge a questão da moradia popular, dos minúsculos apartamentos cuja maior peculiaridade está na convivência quase obrigatória com a intimidade do outro, do vizinho de porta, dos sons e dos hábitos que chegam do outro lado da parede. Esse traço distintivo gera, como se pode esperar, um modo de habitar específico, determinado pela arquitetura precária, associado às limitações financeiras dos moradores. Desterritorializadas e imersas nas incertas territorialidades da cidade nova, essas pessoas se tornam fontes potenciais para mais uma historiografia cinematográfica da capital, a partir da memória do povo. E estas fontes ganham relevância a partir do momento em que se percebe que, desde a fundação de Palmas, as kitnets se impõem como muito numerosas e uma opção imperiosa para quem precisa residir no Plano Diretor pagando um preço viável. A frequência de kitnets funciona, desta maneira, como uma singularidade cultural do lugar.

O protagonismo do urbanismo neste filme se afirma logo na abertura (00’26”), constituída por uma montagem frenética baseada em analogias tão divertidas quanto sufocantes entre o desenho do Plano Diretor e outras figuras formadas por quadrículas. A primeira dessas figuras análogas é a imagem de classificados de jornais e seus anúncios em pequenas caixas de diagramação. O nome da cidade e alguns endereços já podem ser lidos nos detalhes. A maior parte dos anúncios, naturalmente, é de aluguel de kitnets. Entre os múltiplos classificados, vão sendo inseridas rápidas imagens de placas de aluguel, anúncios na internet e muros por trás dos quais estão as kitnets. O ritmo da edição é ditado pelos acordes de andamento enérgico da ópera La Gazza Ladra, de Gioacchino Rossini. Na primeira desaceleração da música, a tela, tomada pelas quadrículas de jornal, apresenta uma fusão com uma imagem de satélite de Palmas (00’53”), com suas múltiplas quadras enfileiradas, como se os classificados houvessem simplesmente verdejado e se transformado em terreno e urbe.

Um apanhado introdutório dos depoimentos colhidos é colocado já nesta abertura (01’01”). As personagens, ainda não identificadas, centram suas falas no convívio naqueles apartamentos: a grande rotatividade de moradores, os incômodos dos barulhos, a possibilidade de amizades e ajuda mútua. Acelerado o andamento da ainda mesma peça musical, sucedem-se na montagem uma câmera subjetiva em fast foward com o plano geral da ponte FHC, simulando um carro que chega a Palmas; travellings sobre mapas coloridos do Plano Diretor, com seus endereços alfanuméricos; travellings em fast foward das rotatórias onipresentes; planos- detalhe de diversos objetos comuns às kitnets: relógios de registro de luz e água, caixas de correio, depósitos de lixo, interfones. Imagem de satélite de uma rotatória gira no ecrã, que logo se divide em duas, quatro, nove, doze, quarenta e duas partes com rotatórias, como uma cidade-caleidoscópio. Acrescem-se imagens de postes com emaranhados de fios em ligações clandestinas, churrasqueiras e muito cimento em construções simplórias. Apoteótica, a música se encerra com uma nova visão de satélite da cidade e o título que emerge sobre um

grupo de relógios de registro. Em imagem e som, a edição faz dançar a expressão de uma cidade determinada pela geometria racionalista e enfatiza a similaridade desta geometria com os cubículos habitáveis.

Porém, se até então a cidade em cena era um constructo crítico, ironicamente estetizado, muito mais um painel de formas inócuas do que um lugar de vida, o tom imediatamente se humaniza quando o realizador abre espaço para a primeira depoente, Neires (02’57”). De início, a câmera subjetiva vasculha com extrema indiscrição o cenário, que é o interior da kitnet da personagem. Passeia por uma estante plástica barata, abarrotada de produtos de cozinha, e pelo quarto e seus objetos: despertador, porta-retratos, caixinhas, óculos, pinças, relógio de pulso, ventiladores, TV, malas amontoadas sobre o guarda-roupa. Em voice-over, a moradora explica suas estratégias para caminhar em Palmas, que ainda lhe é estranha, sem se perder. Em novo travelling, subimos junto com a câmera subjetiva as escadas que levam à porta da frente (03’18”). Em plano médio, Neires lá espera pelos entrevistadores e acena para a câmera, enquanto seu nome é revelado nos letreiros.

Em contraste com Under the Rainbow, em que, junto às falas dos depoentes, se faz presente o texto do documentarista, opinativo e até flertando com o lírico, em Kitnet – o Filme toda a verbalização é entregue às personagens entrevistadas, ainda que ocasionalmente haja a interferência pouco significativa da voz de André Araújo e outros membros da equipe de produção a fazer pequenas perguntas ou a completar frases. Neires reaparece sentada à mesa em seu lar, vaso com flores artificiais ao lado, enquadrada em primeiro plano, para tecer uma narrativa representativa do migrante que chega a Palmas por circunstâncias inesperadas da vida e sem o afeto pelo lugar (03’26”). Explica que veio para cidade para acompanhar o marido, aprovado em um concurso. Como ele se estabeleceu antes, Neires recebia informações sobre Palmas por telefone. Seu imaginário começava a se compor pelos relatos de calor extremo e de pernilongos. Mesmo temerosa, viu-se obrigada à mudança. Seu discurso sobre o contato concreto com o lugar indica a insatisfação perpassada por alguma conformação: a comprovação de que, apesar de ter duvidado, o calor era de fato imenso; os agasalhos de frio jogados no lixo pela inutilidade; a decepção e o choro confessados. Diz ela: “Não tinha a mínima noção. Ele só me dizia: você traz isso, isso, isso, porque não tem espaço pra colocar tudo o que nós temos. Então muitas coisas ficaram em Minas [Gerais] por não ter espaço aqui”. Sobre as kitnets, o destino possível, sua principal lamúria é por não estar numa moradia “assim separadinho”, como estava acostumada e imaginava que seria. Com Neires, a cidade não é escolha. É restrição, abdicação, readaptação cheia de obstáculos, mas uma necessidade.

O molde de sequência se repete quando a câmera subjetiva penetra outro lar (06’06”). O passeio pelo plano geral agora se dá em um quarto pequeno, com uma estante repleta de objetos, aparelho de som, panos pendurados na janela por dentro, toalhas pendentes da

parede. No chão, um cesto de roupas sujas e um violão. Ao fundo, um banheiro e extensões elétricas pelas paredes. Um corte nos leva ao ambiente de sala/cozinha. Fogão, panelas, botijão de gás, cadeira, máquina de lavar, ventilador, todos a conviver no mesmo cômodo. Como no depoimento anterior, aqui também as falas já surgem em voice-over durante este vasculhamento. Também da mesma forma, a apresentação dos moradores se dá com uma pose sorridente diante da porta e com letreiros (06’20”). Conhecemos o casal Everton e Elaine, ambos bastante jovens. Everton se encarrega de quase toda a fala, um relato que traz para o filme situações muito corriqueiras da trajetória dos trabalhadores e dos estudantes da cidade. Conheceu Elaine e iniciou um namoro quando dividiam com outras pessoas uma mesma casa. Juntaram-se e passaram a viver na kitnet, dividindo um único colchão de solteiro. Sempre sorridente, Everton brinca: “Cabia, né? Quebrou a regra de que duas pessoas não ocupam o mesmo espaço”. A cama de casal veio em seguida. Agora seguem trabalhando e alimentando planos de uma casa mais espaçosa: “O capital está meio baixo. Daí a gente tem que ir aguentando por aqui até a gente conseguir algo melhor”. Não há informação sobre situação de migração. Faixa etária e sotaques também abrem possibilidade, embora apenas especulativa, do casal ter origem na região. Mas o que de fato marca o depoimento é a leveza na narrativa, a conformidade com a precariedade de condições e uma perspectiva de evolução, ainda que modesta, bem mais incisivas.

Posições semelhantes se dão no depoimento de outro casal, Victor e Valéria, acompanhados na entrevista por uma criança, a filha Ana Clara (10’06”). Também vinda de fora, Valéria revela não ter tido muita informação sobre a capital tocantinense antes de sua chegada, mas considerou a cidade bonita, em especial as praias, e o calor nem tão forte quanto a fama apregoava. Victor direciona elogios às kitnets, igualmente destaca a chance de fazer amigos e sentencia que o grande motivo que leva as pessoas a deixarem esses locais é o incômodo do barulho. No discurso de famílias como Victor e Valéria ou Everton e Elaine, não parece ser a cidade o que condiciona as limitações, que, na verdade, surgem como inerentes às lutas diárias. A vida na kitnet é posta como uma etapa natural, em que até os sofrimentos pontuais podem ser interpretados com certa graça.

Mais um travelling subjetivo começa agora na entrada de um conjunto de kitnets (08’03”). Do lado externo, uma churrasqueira e um saco de carvão. Já dentro da residência, uma TV e caixas de papelão e isopor sobre algum móvel, planos-detalhe que insistem na caracterização de ambientes em que o acúmulo dos objetos básicos da existência doméstica pede um contorcionismo do espaço, mas, ao mesmo tempo, realça o cuidado e o apego ao pouco que se tem. Os moradores são apresentados em primeiro plano, novamente em frente à porta de entrada: o casal Vanessa e Welton. Sentada à mesa na cozinha, Vanessa conduz o relato. Sua história é mais uma de migração: padrasto, mãe e oito irmãos (ela é a nona) se mudaram para Palmas a convite de um tio e diante da promessa de que era um lugar com muita oferta de emprego: “Viemos numa peruinha véia (sic) de São Paulo até aqui” (08’39”) após vender

todas as posses. Ao dar voz à percepção de sua mãe, retoma o discurso da dor da desterritorialização: A senhora não encontrou o que esperava, sofreu com o calor, tinha crianças para criar, mas “foi se acostumando. Agora já tem a casa dela e aí tá bom”.

Figura 19 - Ensaio sobre Kitnet – o Filme, com utilização de fotogramas do filme e fotografias do acervo pessoal.

Vanessa materializa ainda em sua fala uma outra perspectiva da partida, a sua própria, pelos seus olhos de então adolescente: “Ah eu já vim de lá chorando, né? (...) Já tinha meus amigos lá tudo. Cheguei pra cá e eu pensava em arrumar emprego e logo com meu salário voltar pra lá. mas aí, né...”. Entre risadas, o plano é aberto e passa a enquadrar Welton, que está em pé a seu lado: “Conheci um carinha. Estamos juntos até hoje”. A partir de então, a depoente redime cidade e moradia. Declara gosto pelas kitnets, em especial pela possibilidade de

amizade com vizinhos, e confessa que dali só sai para uma casa própria. Ancorado no cotidiano, Welton acrescenta que a boa convivência permite churrasquinhos comunitários e pescarias nos fins de semana. Ainda que dentro de um universo muito simples e que requisita trabalho duro (Vanessa informa que é feirante), Palmas é caracterizada nesta sequência como lugar que efetiva a promessa de oportunidades e que é capaz de gerar afetos, concretizados, na voz do casal, nos aspectos positivos de viver na kitnet.

A exaltação às vantagens daquelas moradias é também a tônica da sequência em que o cineasta põe em cena Carlos Kitnet. Logo a primeira imagem do ambiente em que vive a personagem revela a razão do codinome: Cartazes de propaganda política trazem a imagem de Carlos como candidato a deputado federal (11’26”). A câmera que vasculha o local ainda revela diversos objetos idiossincráticos: porta-retratos, um tapete com o brasão do clube de futebol Flamengo, um quadro com uma imagem kitsch da Virgem Maria. Em sua fala pouco linear, Carlos desenha um retrato de desafios, mas bastante positivo da cidade e das moradias populares. Se por um lado calcula em ao menos 550 reais (em valores da época) o que um jovem precisa receber da família para residir em uma kitnet, por outro reconhece na vida em Palmas a oportunidade de mais praticidade urbana e o caminho mais acessível para economizar e viajar até outros lugares. Se admite que a capital, mesmo cosmopolita, é um lugar em que as pessoas pouco se encontram, enxerga nas kitnets o ambiente propício para relacionamentos mais próximos e um elemento que gera identidade entre os palmenses que comungam do fato de viverem em residências deste tipo. Carlos ainda explicita a curiosa origem de sua estratégia eleitoral: Tendo partido de São Paulo com o mesmo histórico de incertezas e dureza de tantos outros aventureiros, pesquisou muito sobre a nova cidade e descobriu uma forte tendência política do lugar. De uma fonte imprecisa, diz ter coletado a informação de que 33% da população palmense moraria em kitnets, o que significaria, por seus cálculos, 66 mil pessoas, número que “hoje elege dois, três vereadores e define uma eleição de prefeito” (13’02”). As fragilidades impostas aos novos habitantes - e inclusive Carlos viveu na pele essas dificuldades - em seu depoimento se tornam a base para outras soluções de sucesso em uma cidade que parece desafiar os sujeitos à proatividade.

Um elogio final da fala de Carlos à proprietária de sua residência, Dona Deusa, serve de ponte ao documentário para introduzir esta nova personagem, que nos traz a perspectiva diferente do fenômeno habitacional: o lado de quem recebe os forasteiros. Estruturalmente, a mesma câmera subjetiva percorre o ambiente externo de uma casa (bem mais vistosa e ampla do que uma kitnet) (14’30”). Sem se deter nos detalhes do ambiente, vai encontrar Deusa sentada em sua sala. Uma mulher já idosa, a depoente, como é de se esperar, sublinha diversas qualidades no universo imobiliário que gerencia. Saúda seus inquilinos (“Na verdade eu não tenho clientes, eu tenho filhos”) e oferece uma estatística: 80% só deixam seu imóvel quando compram casa própria, o que, segundo ela, é frequente, pois são moradores “abençoados”.

Em tom levemente mais severo, lista as regras da sua casa: “não perturbar, não estragar e pagar em dias” (15’22”).

A sequência dedicada a Deusa, e mesmo o próprio filme como um todo, recebe uma espécie de interlúdio que estranhamente redireciona sua abordagem. A voz da depoente deixa de acompanhar sua imagem na entrevista e passa a um voice-over de uma colagem de arquivos audiovisuais e fotográficos dos primeiros dias de Palmas (15’33”). Muitas dessas imagens são exatamente as mesmas que André Araújo já utilizara em Under the Rainbow (acrescidas agora do acervo do impresso jornalístico O Jornal e de particulares). Lá estão a placa que anuncia o início da construção da cidade, a chegada das máquinas e da população, Siqueira Campos a comandar um trator e ainda uma sequência de fotos antigas de pontos notáveis da capital na sua aurora, cada qual creditado nos letreiros: as avenidas JK e Teotônio Segurado, o Palácio Araguaia, o Centro Comercial Popular, a primeira rodoviária, o refeitório comunitário. Em uma clara demonstração sobre como a reedição pode conferir significados radicalmente distintos para essas relíquias audiovisuais, ao contrário das desconstruções críticas de Under the Rainbow, aqui este painel da capital ancestral é acompanhado pela fala ufanista de Deusa, que aponta a abertura da primeira clareira no cerrado para erguer Palmas como uma de suas maiores emoções. Relembra com voz sorridente como, ao comando de Siqueira, todos as máquinas se uniram para buzinar em celebração ao primeiro dia da capital. Segundo a depoente, todos os presentes choraram neste instante. A própria Deusa surge entre lágrimas durante a entrevista. Resumindo as diversas características do discurso dos pioneiros, ela relembra todas as dificuldades daquele tempo – poeira, mosquitos, descampados, grandes distâncias, falta de insumos – como uma espécie de troféu à resistência e à fé no lugar. E finaliza, deixando de lado as questões das kitnets: “É um sonho dourado realizado. Porque dizer assim: eu fiz parte disso aqui” (17’45”). Sem um contraponto a este discurso, o realizador manifesta o artifício de atribuir a Deusa a alusão àquele passado idealizado e sustentado pelas imagens remotas, embora, com isto, o próprio documentário corra o risco de assimilar a sua discussão esta mesma visão oficialista da história.

Enquanto a montagem de abertura de Kitnet – o Filme incluía uma das portas de entrada na cidade, a ponte FHC, em outro momento um diferente ponto de vista dos recém-chegados é materializado na tela: a visão aérea da capital que têm aqueles que vêm de avião. Com travellings aéreos realizados com lente grande-angular a simular uma aterrisagem, o plano geral de avenidas e rotatórias é acompanhado de vozes masculinas não identificadas que elucubram sobre a amplidão do horizonte, o vazio urbano, a insegurança e a solidão de descer numa cidade onde não se conhece ninguém. Em mais um redirecionamento, o documentário abre mão do foco nas moradias e se volta predominantemente ao tema da cidade como ponto de confluência de desterritorializados e as expectativas e angústias que um imaginário insuficiente traz para a mudança de terra. Uma das vozes comenta que conhece “muita gente, não só lá do Nordeste, mas do Brasil todo que às vezes fala: ‘ah, mas rapaz, tá

morando onde?’, ‘ah eu tô morando em Palmas’, ‘mas rapaz, e os índios lá?’ né? O pessoal tem essa ideia, tem essa visão. Eu acho que pelo Brasil ser tão imenso, a gente pensa que algumas cidades ainda têm índio. Na verdade, aqui tem índio, mas não andando pelado na rua, atirando flechas, como o pessoal acha que é” (18’32”).

Há de se destacar que, se até então a obra exibia em sua trilha musical apenas peças sem qualquer caráter regionalista – além da ópera de Rossini, as sequências eram sustentadas por temas incidentais do DJ Romão Nogueira e do próprio André Araújo, em uma inédita incursão como compositor –, nestes planos aéreos irrompem acordes e instrumentos facilmente identificados com a música nordestina. Pela fala citada acima, já estávamos informados das relações das personagens com o Nordeste brasileiro. Assim, este fundo musical, em lugar de remeter a uma territorialidade tocantinense, que poderia muito bem incluir sons nordestinos