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Os documentos arquivísticos na era de sua reprodutibilidade

29 LÉON SÓ EXISTIA NA INTERNET HÁ TRÊS ANOS

Foi ele que, em seguida, reencontrou a pista do engodo e chegou até um membro do Rotary Clube de La Rochelle que havia introduzido o personagem na Internet em 2007. Questionado pelo Sud-Ouest, ele assegurou, no entanto, que Léon-Robert de l’Astran existiu realmente. “Um livro vago sobre ‘La Rochelle no século XVIII’, do qual ele não pode dar nem o autor nem a editora, havia lhe colocado na pista do homem do qual ele descreve em detalhes a vida e a obra, fornecendo até mesmo dois retratos pintados dele, um de criança e outro adulto,” como podemos ler no site do jornal.

está se apagando. Mas é evidente que essa simultaneidade, essa presentidade sugerida pelo imediatismo das imagens, é em larga medida imaginária, e cria suas próprias fantasias de onipotência: a troca incessante de canais vista como a estratégia contemporânea de desrealização narcísica.

À medida que essa simultaneidade vai abolindo a alteridade entre passado e presente, aqui e ali, ela tende a perder a sua ancoragem na referencialidade, no real, e o presente sucumbe ao seu poder mágico de simulação e projeção de imagens. Não se pode mais perceber a diferença real, a alteridade real no tempo histórico ou na distância geográfi ca. No caso mais extremo, os limites entre fato e fi cção, realidade e percepção se confundem a ponto de nos deixar apenas com a simulação, e o sujeito pós-moderno se dissolve no mundo imaginário da tela. Os perigos resultantes do relativismo e do cinismo tem sido muito debatidos nos últimos anos, mas a fi m de ultrapassar tais perigos devemos reconhecer que eles são inerentes aos nossos modos de processar o conhecimento. (HUYSSEN, 2000, p. 74-75)

Entre as questões a serem enfrentadas na produção de conhecimentos históricos educacionais com pesquisa documental estão a de propor leituras que não se tornem a apologia da positividade do documento de arquivo, mas que, também, não se diluam na subjetividade radical da pós-modernidade, como descrita por Huyssen. Como enfrentar as tensões entre o discurso que sustenta o caráter totalmente objetivo da pesquisa documental e as apologias da subjetividade radical, que se envolvem em experiências solipsistas (GINZBURG, 1989) e negam a materialidade do real (THOMPSON, 1981)?

Se concordarmos que, como escreve Nora (2003), o arquivo expressa hoje as tensões entre preservar e destruir, e se pudermos perceber, também, as publicações de imagens de seus registros na rede mundial como atualizações do passado, que retiram dele seu estranhamento, estaremos defronte aos movimentos sobre os quais Benjamin refl etiu, sobretudo quando escreveu sobre a monumentalização do patrimônio e do passado, atualizados em fantasmagorias: “o confronto com a historiografi a convencional e com a “celebração” deve ter como base a polêmica contra a empatia” (2007, p. 217).

Podemos, então, nos perguntar em que medida os sites dos arquivos, especialmente em suas atividades educativas, são formas esteticamente contemporâneas da atualização do passado, que cria o tempo “do sempre igual” (BENJAMIN,2007; GALZERANI, 2002). O presente é, nessa construção discursiva, um ponto do qual olhamos para o tempo que escorre, sobre o qual não podemos agir. Ficamos presos em um discurso que usa os registros do passado para justifi car a confi guração de forças atual e projetá-la no tempo passado e futuro. Nessa aproximação, os registros são lidos como marcas da obsolescência, e apoiam gestos de renúncia à ação critativa na contrução de projetos de futuro. Para o fi lósofo,

A especifi cidade da experiência dialética consiste em dissipar a aparência do sempre igual – e mesmo da repetição – na história. A experiência política autêntica está absolutamente livre desta aparência. (BENJAMIN, 2007, pagina 515)

E mais adiante:

O momento destrutivo ou crítico na historiografi a materialista se manifesta através do fazer explodir a continuidade histórica: é assim que se constitui o objeto histórico. De fato, dentro do curso contínuo da história não é possível visar um objeto histórico. Tanto assim que a historiografi a, desde sempre, simplesmente selecionou um objeto desse curso contínuo. Mas isso ocorria sem um princípio, como expediente; e sua primeira preocupação sempre era a de reinserir o objeto no continuum que ela recriava através da empatia. A historiografi a materialista não escolhe aleatoriamente seus objetos. Ela não os toma, e sim os arranca, por uma explosão, do curso da história. Seus procedimentos são mais abrangentes, seus acontecimentos mais essenciais. (p. 217)

A “interpretação dos fatos”, proposta nas práticas educativas produzidas a partir dessas concepções de história e de memória prevalecentes nos discursos construídos pelos arquivos na atualidade, é modelada por uma concepção que usa os registros do passado para justifi car as confi gurações de forças atuais e projetá-las no tempo passado, como o faz, também, em relação ao futuro. Tendem a provocar, portanto, leituras de documentos produzidas e produtoras de fantasmagorias.

Fausto Colombo (1991) aponta o pouco uso que fazemos desse turbilhão de registros que nos confortam da perda: não há uma correspondência entre o tempo gasto no registro e arquivamento e o tempo de leitura desses registros. Nora, em um artigo de 2003, na Revista Comma, do International Council on Archives (ICA), refl etiu sobre esse movimento, descrevendo esse momento atual, em que o arquivo interessa a todos, e a ninguém, “tout le monde - et personne”. C'est ce qui explique peut-être le contraste entre l'image dont l'archive est chargée - fi gure emblématique du présent, cœur sensible de notre conscience historique - et la relative indifférence publique et sociale dont elle est en fait entourée, en dépit des pieuses protestations dont témoignent les sondages et les molles affi rmations des pouvoirs publics.

Comment expliquer ce contraste? Permettez-moi, pour fi nir, de formuler une hypoothèse.

J'aurais tendance à croire que ce contraste tient à une raison historique très profonde: c'est que la notion même d'archive est liée à l'idée de l'inutilité sociale. Il n'y a en effet d'archive qu'à partir du moment où une pièce a perdu sa valeur d usage pour prendre un autre type de valeur, une valeur symbolique. Quelle que soit l'importance que cette valeur symbolique ait pu revêtir - et fût-elle, comme aujourd'hui, capitale -, l'archive conserve quelque chose de cette marque de naissance: hors d'usage.30

Même si l'archive a cessé d'être un rebut pour devenir un sanctuaire des sociétés contemporaines et l'archiviste un démobilisé de l'histoire pour devenir un acteur social à part entière, et même un acteur essentiel, le monde des archives demeure

30 O que pode talvez explicar o contraste entre a imagem que se sobrepôs ao arquivo - fi gura emblemática do presente, coração sensível de nossa consciência histórica - e da relativa indiferença pública e social que de fato o envolve, apesar dos piedosos protestos de que são testemunho as pesquisas e as fracas afi rmações dos poderes públicos.

Como explicar esse contraste? Permitam-me, para fi nalizar, formular uma hipótese.

Eu tendo a crer que esse contraste tem uma razão histórica muito profunda: a de que a noção mesma de arquivo está ligada à ideia de inutilidade social. Não há, com efeito, um arquivo, senão a partir do momento em que uma peça tenha perdido seu valor de uso, para receber um outro tipo de valor, um valor simbólico. Seja qual for a importância de que esse valor simbólico possa vir a se revestir - seja ela, como hoje, capital - o arquivo conserva qualquer coisa dessa marca de nascença: fora de uso.

frappé de cette infi rmité imaginaire. Bien la comprendre est sans doute le meilleur moyen de la surmonter. 31(p. 48-49)

Hors d'usage: fora de uso. O arquivo real não compartilha da leveza e sedução da navegação online pelos documentos. Se o documento é retirado de suas relações com os outros documentos

que com ele dialogam, e monumentalizado nos sites, transforma-se em patrimônio ofi cial, na relação direta com as práticas socioculturais dominantes (BENJAMIN, 2007; LE GOFF, 1984). A contrapelo dessas tendências hegemônicas, em sua pesquisa histórica, Benjamin vai em busca de objetos excluídos das grandes refl exões, do lixo esquecido (2007, p. 508 et seq.):

À medida em que o valor de uso morre nas coisas, as coisas alienadas são esvaziadas, atraindo para si signifi cados, como cifras. A subjetividade se apossa delas à medida que as investe de intenções de desejo e temor. Pelo fato de as coisas mortas responderem, enquanto imagens, pelas intenções subjetivas, estas se apresentam como imemoriais e eternas. Imagens dialéticas são constelações entre coisas alienadas e o signifi cado incipiente, detendo-se no instante de indiferença entre a morte e o signifi cado. [...] no século XIX, o número de coisas “esvaziadas” aumenta numa medida e num ritmo antes desconhecidos, uma vez que o progresso tecnológico retira continuamente de circulação os novos objetos de uso.

Nesse sentido, ele busca nas ruínas, mais do que nos museus e arquivos, o encontro com o passado. A leitura dos documentos monumentais da nação não diz nada, a não ser se percebidos a contrapelo. Em uma relação entre o sujeito e seu objeto que incorpora ao conhecimento sua dimensão de subjetividade e de sensibilidade, sem deixar de perceber que a subjetividade e a sensibilidade são políticas, em sua dimensão ampla.

A celebração ou apologia está empenhada em encobrir os momentos revolucionários do curso da história. Ela almeja intensamente a produção de uma continuidade, e dá importância apenas àqueles elementos da obra que já fazem parte da infl uência

31 Mesmo que o arquivo tenha deixado de ser um rebotalho, para vir a ser um santuário das sociedades contemporâneas, e o arquivista, um desmobilizado da história, para vir a tornar-se um ator social pleno, e mesmo um ator essencial, o mundo dos arquivos continua marcado por essa enfermidade imaginária. Compreendê-la bem é, sem dúvida, o melhor meio de superá-la.

que ela exerceu. Escapam a ela os pontos nos quais a tradição se rompe e, com isso, escapam-lhe as asperezas e as saliências que oferecem um apoio para aquele que pretende ir além.

Nos últimos anos, a demanda pela publicação de documentos online vem crescendo, e vem imersa nas questões de direito de acesso/reprodução e de privacidade. Existe mesmo a expectativa e o desejo de que toda a documentação do Arquivo seja digitalizada e publicada, fantasia de virtualização que extrapola fronteiras, e que se pudesse ser realizada, possivelmente deixaria seus usuários tão perdidos como se encontrariam nos arquivos reais, em meio ao universo de documentos que formam a base da documentação de pesquisa dos arquivos.

O tempo e os movimentos da pesquisa, seus problemas e rugosidades, não são o tempo dos novos usuários do arquivo real: com sua materialidade, pó, difi culdades de leitura e compreensão dos registros/vestígios do passado, com suas exigências de tempo e formação profi ssional, o arquivo permanece pouco permeável. A digitalização e publicação online de documentos é reinvindicada por jornalistas, estudantes, professores, em especial do ensino básico, majoritariamente produtores e consumidores de uma “história” cujo tempo de leitura/refl exão é dominado pela urgência das mídias e da busca de informação rápida e formatada para ser consumida.

Em sua publicação online os documentos ganham legendas, limpeza, transcrições, contextualização, como nas exposições monumentais. Assim, as representações históricas criadas nos arquivos, e em outros espaços virtuais de memória, são, eventualmente, incorporadas pelos meios de comunicação e se reinserem no fl uxo midiático, ampliando sua abrangência e capacidade de criar imagens sobre o passado.

Esse movimento pode ser percebido já nas representações midiáticas da cidade produzidas pelos almanaques e pela imprensa, já no século dezenove, como vemos nos estudos de Walter Benjamin (1983, p. 57-74), que inspiraram os de Maria Stella Bresciani (1982), Maria Carolina Bovério Galzerani (1998) e Myriam Bahia Lopes (2001), entre outros. Meneses (1999, p. 24- 25) descreve como a informação descontextualizada vincula-se à fragmentação do sujeito, situando, como Benjamin, sua constituição à forma que toma a informação jornalística:

O contexto, como insistem Middleton & Edwards (1990, p. 11) não é simples

background, mas substância da memória coletiva. No entanto, o quadro geral

da “crise da memória” é de molde a privilegiar a fragmentação do sujeito e do universo sobre o qual ele opera, agravando aquela autonomia esquizofrênica que Jameson (1992) associa à sociedade pós-moderna.

As consequências diretas desses fenômenos no campo documental são graves. Terdiman infere, com propriedade, a desorganização da consciência, que já começou a ser induzida, por exemplo, pela prática do jornal impresso, “which is a structured experience of confusion that naturalizes new forms of cultural and perceptual contentes: newspapers trained their readers in the apprehension of detached independent, reifi ed, descontextualized ‘articles’”. Esses elementos discretos, desconectados conceitualmente, mas justapostos pelas exigências do “layout”, criaram uma newspaper culture, que “puts the paradigms of cultural memory in crisis by excluding the context that makes such memory functional for us”. (Terdiman, 1993, p. 37)

Essa mesma descrição pode ser feita dos sites dos arquivos nacionais dos EUA e da Inglaterra, e, especialmente, de suas seções educativas. O layout, fragmentário, justapõe texto e imagens

visuais, lindas, misteriosas e sedutoras, que nos levam a uma experiência sensível de descoberta e prazer, “saborosas colheradas”, cuja leitura é entretecida pela rede temática que se apoia na periodização e nos discursos históricos consagrados pelos livros didáticos. Experiência estética ligada à contemporaneidade, os sites de arquivos atualizam formas de educação das sensibilidades produzidas pelas mídias na alta modernidade.

Dialogando com as refl exões de Galzerani (2005), Salvadori (2000) e Castells (1999), meu olhar é atraído pela coincidência entre o advento do neoliberalismo e a expansão das culturas da memória e dos estudos e práticas políticas enraizadas nos movimentos culturais locais. Na percepção de Castells, nesse mundo de fl uxos globais de riqueza, poder e imagens, a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, está se tornando uma fonte básica de signifi cado social. Em suas palavras,

a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de signifi cado em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. (CASTELLS, 1999, p.23).

Essas tensões expressam-se nas disputas de memória nas práticas de educação das sensibilidades em relação às histórias locais. A história em sua dimensão mais próxima, no entrecruzamento mesmo da experiência do tempo e do espaço vividos, presente como possibilidade de produção de pesquisas históricas educacionais com documentos _cuja perspectiva libertadora estava no horizonte das propostas de ensino de História nos anos 80_ cedeu lugar, inclusive nos sites de arquivo, a propostas de leituras de documentos que se articulam a representações históricas já conhecidas e/ou consagradas nos programas nacionais. Propostas estas que se contrapõem às possibilidades de ampliação de espaços de experiência plurais e polissêmicos, que estimulem emergência dos confl itos, que se articulam à aceitação da alteridade, e dêem visibilidade a outros sujeitos históricos.

Nas disputas políticas sobre a memória em que, também, se veem os arquivos municipais, estão, sobretudo, os que advogam para esses espaços um caráter memorialístico (GONÇALVES, 2006), em que as informações sobre a “memória coletiva”, sobre a “história da comunidade”

seriam acumuladas, voluntariamente, notadamente pelos “homens bons” das pequenas cidades (ZARTH, 2001; GALZERANI, 1998). Em um procedimento que lembra o dos colecionadores de antiguidades dos séculos dezoito e dezenove (CHOAY, 2006). Multiplicam-se as “casas da memória” repletas de relíquias, que agora, também, têm expressão virtual.

As narrativas sobre o passado, nas publicações dos arquivos, são formadas por imagens visuais e palavras selecionadas de seu acervo. Que imagens visuais e palavras são selecionadas nesses projetos? Que representações são construídas? Se os arquivos são lugares da memória, de que memórias(s)?

Ricoeur (1988, p. 304) refl etiu sobre as relações entre identidade e narrativa, assinalando que os homens não se conhecem diretamente, mas sim através de signos culturais, articulados a partir de mediações simbólicas, que por sua vez são as matrizes de toda ação. As narrativas são parte dessas mediações, e evidenciam uma característica importante do conhecimento de si, que é de ser uma interpretação de si. Para além da educação que se concentra nas escolas, podemos perceber como somos perpassados por movimentos e concepções que nos educam, de corpo e alma. Esses movimentos podem ser percebidos nos discursos sobre o passado e sobre o presente construídos nos sites de arquivos e, ligados a esses discursos, estão propostas de um devir.