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Para o dialético, o que importa é ter o vento da história universal em suas velas. Pensar signifi ca para ele: içar as velas. O que é decisivo é como elas são posicionadas. As palavras são suas velas. O modo como são dispostas transforma-as em conceitos. (BENJAMIN, 2007, p.515)

Ao longo desse primeiro capítulo fi zemos leituras de textos de arquivistas e de pesquisadores de ensino de História, bem como de alguns sites com atividades educativas online, nos quais podemos perceber como arquivistas e pesquisadores de ensino de História vêm se empenhando em criar um campo comum, através de diálogos refl exivos e práticas. Nesse movimento de aproximação, autores e instituições vêm compartilhando palavras como documento, memória,

patrimônio e ensino de História, a partir de alguns eixos argumentativos, em torno dos quais se desdobram signifi cados diversos, que podem ser percebidos em seus discursos e práticas. Nesse momento podemos perguntar se nessa tessitura discursiva estariam formando-se lugares comuns:

Podemos hoje conceber um lugar comum emergindo e confi gurando-se a partir de palavras, imagens, crenças, valores, argumentos, partilhados por grupos de pessoas em diversas esferas de atividade prática e que sustentam narrativas, pressupostos, conhecimentos, (pré)conceitos, teorias, historicamente produzidos.

Existem outros signifi cados de lugar comum, muitas vezes confundido com o senso comum, caracterizado como aquilo que, sendo conhecido por todos, tornou-se trivial, banal; uma ideia ou expressão que se tornou um jargão. Vemos que tanto o sentido de ideia partilhada quanto o sentido de ideia trivializada impregnam o lugar comum. Como estariam relacionados esses dois movimentos ou sentidos de lugar comum? Como funcionam esses lugares comuns, essas palavras/imagens não só “presentes na mente e na linguagem”, mas entranhadas nas práticas – discursivas, escolares? (Smolka, 2006, p. 101)

Documento, memória, patrimônio, ensino de História: poderíamos nos referir a essas imagens como topoi? Um topos é algo comum, partilhado e aceito por uma comunidade, e pode também ser reconhecido na fala de um outro sem que haja partilha.

Um “feixe de topoi” constitui o signifi cado das palavras historicamente construído. Os topoi aparecem como um lugar ao mesmo tempo de estabilização, de contenção, e de mobilização e produção de sentidos, indício de memória na língua, lugar comum... ao mesmo tempo, da ideologia e da subjetividade (Smolka, 2000, p. 188).

A ideia de criação de um domínio comum, a partir de referências cruzadas entre os diferentes discursos sobre um objeto, também foi investigada por Bresciani. Na construção da historiografi a do Brasil, uma rede de autores entreteceu, por meio de diálogos, críticas, oposições e citações, um campo comum, que confi gurou a moderna historiografi a do Brasil (2005, p. 31). Nesse domínio, uma das questões é a das identidades nacionais, que se confi guram

como um lugar-comum. Os lugares comuns, mais do que de clichês e banalidades, signifi cam lugares do “comum”,

ou seja, um fundo compartilhado de ideias, noções, teorias, crenças e preconceitos, permitindo a troca de palavras, argumentos e opiniões sobre uma comunidade política efetiva. Nesse sentido, a identidade nacional se oferece como denominador comum que permite falar de lugares “diferentes”, possibilitando diálogos e comparações, a despeito da instabilidade e dos múltiplos deslocamentos das imagens e representações que a constituem (p. 41).

O lugar comum é construído a partir do entrecruzamento de vozes e signifi cados, articulados em torno de um campo compartilhado, dialogicamente. Bakhtin (2006, p. 99) lembra-nos que os discursos são sempre dialógicos:

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, travam uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as.

Refl etindo sobre Bakhtin, Smolka (2000), leva-nos a compreender como os aspectos do que chamamos de “histórico-cultural”, ou como “ideológico”, para usar o termo bakhtiniano, podem tornar-se visíveis em uma análise da materialidade da língua, que constitui e estabiliza modos de ação e de elaboração mental, como práticas inscritas e instituídas na cultura (p. 189). Esses discursos constituem-nos como sujeitos, portanto. Para Bakhtin (1981, p. 36-38), a palavra é o fenômeno ideológico por excelência, o modo mais puro e sensível de relação social. Os signos culturais, quando compreendidos e dotados de sentidos, tornam-se parte da consciência, que é verbalmente constituída. Assim, a palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação. Para Bakhtin,

A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento, e ela refl ete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da comunicação ideológica, da

interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. (p. 34)

Vigotski (2001a) aponta a dimensão epistemológica dessa afi rmação, ao dizer que

o signifi cado da palavra é, ao mesmo tempo, um fenômeno de discurso e intelectual, mas isso não signifi ca a sua fi liação puramente externa a dois diferentes campos da vida psíquica. O signifi cado da palavra só é um fenômeno de pensamento na medida em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com o pensamento. [...] O pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza. (p. 409)

A linguagem, tal como nos propõe Vigotski, é o elo entre o indivíduo, a natureza e a cultura, ou melhor, é a forma como a cultura se torna parte da natureza de cada pessoa, como apontam Michael Cole e Sylvia Scribner, na introdução de A Formação Social da Mente (VIGOTSKI, 2008). Nessa perspectiva, podemos ler as articulações discursivas dos grupos sociais em suas dimensões de ação política e de formação, e até mesmo como formas de educação das sensibilidades. Também Peter Gay e Edward Palmer Thompson estudam as relações entre a cultura e as práticas de educação das sensibilidades, nesse entrecruzamento entre indivíduo e sociedade, entendendo a linguagem como parte fundamental dos confl itos sociais, cujas dimensões, conscientes e inconscientes, expressam-se nas práticas culturais, sempre contraditórias e ambivalentes, dialógicas, aproximando-se, nesse sentido, da compreensão de Walter Benjamin sobre o lugar da cultura e da linguagem nos confl itos sociais. Nas palavras de Benjamin, em “Sobre o Conceito de História”,

A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refi nadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confi ança, da coragem, do humor, da astúcia, da fi rmeza, e

agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. (BENJAMIN, 1985, p. 223-224.)

E mais:

Para o dialético, o que importa é ter o vento da história universal em suas velas. Pensar signifi ca para ele: içar as velas. O que é decisivo é como elas são posicionadas. As palavras são suas velas. O modo como são dispostas transforma- as em conceitos. (BENJAMIN, 2007, p. 515.)

Refl etindo a partir dessa perspectiva sobre as leituras feitas nessa pesquisa, percebemos que arquivos e pesquisadores de ensino de História vêm criando um campo discursivo comum, ao longo das últimas décadas, partilhando uma linguagem comum que se articula em torno das ideias de documento, memória, patrimônio, história e educação, como já destacamos anteriormente. Podemos também entrever como, em torno destas palavras, que se tornaram lugares comuns, desdobram-se sentidos ambíguos e confl itantes, que se expressam em seus discursos e na forma assumida por algumas práticas educativas online. Esses confl itos e ambiguidades expressam a arena de luta simbólica em que se encontram, ligada a concepções do presente, na relação com o passado, mas também na projeção de devires imaginados, na criação de memórias do futuro (BAKHTIN, 1997, p. 241; GERALDI, 2003, p. 18).

Precisamos, então, olhar estas palavras detidamente, nas refl exões teóricas e nas propostas dos

sites, perguntando-nos sobre os diferentes sentidos que elas expressam nos topoi, nos lugares comuns. Essa convergência de discursos, em torno de lugares comuns, colabora decisivamente

para a sua legitimação como campo de pesquisa, mas, também, para a reafi rmação de práticas educacionais prevalecentes, que se justifi cam a partir dos sentidos que atribuem a documento, memória, patrimônio, história e educação. Sua presença em diferentes instâncias sociais, sobretudo nas mídias e na cultura escolar, amplia seus sentidos, ao mesmo tempo em que colabora para torná-los opacos, dados como lugares comuns. E, a partir desses lugares comuns, projeta-se um devir, aparentemente desejável, ou, mesmo, aparentemente já dado.

Esse devir, que é projetado como certo, como dado, e que se expressa também na forma que assumem muitos discursos nas (e sobre as) atividades dos arquivos online, alia técnica e política, imaginário e economia. As redes de tecnologia de informação e comunicação, nas quais se inserem as atividades dos arquivos em rede, trazem consigo esses discursos sobre o devir, são arautos de um almejado futuro fl uido, leve e transparente, de acesso democrático à multiplicação das informações em rede. Voltamos, então, a refl etir sobre como esses instrumentos, como os seus meios, não são neutros. Nas palavras de Milton Santos,

a tecnologia atual se impõe como praticamente inevitável. Essa inevitabilidade tanto se deve ao fato de que a sua difusão é comandada por uma mais-valia que opera no nível do mundo e opera em todos os lugares, direta ou indiretamente, quanto em razão da formidável força do imaginário correspondente (Gras & Poirot -Delpech, 1992), que facilita a sua inserção em toda parte. (2006, p.118)

A força do imaginário em torno da tecnologia não ocupa um papel secundário, mas acompanha sua ampliação e cria a aura a partir da qual se constrói uma opacidade sobre seu caráter político. Uma vez constituídas, o próximo passo, no tempo, é sua irreversibilidade:

Praticamente inevitáveis, as tecnologias contemporâneas se tornam, também, irreversíveis. Mas, em termos... Sua irreversibilidade advém de sua factibilidade. Ainda que fosse possível abandonar algumas técnicas como modo de fazer, permanecem aquelas que se impuseram como modo de ser, incorporadas à natureza e ao território, como paisagem artifi cial. Neste sentido elas são irreversíveis, na medida em que, em um primeiro momento, são um produto da história, e, em um segundo momento, elas são produtoras da história, já que diretamente participam desse processo. (2006, p.118)

Se as tecnologias, uma vez instauradas, tornam-se irreversíveis, precisamos estudá-las em seu caráter técnico e político, em seu caráter de linguagem e de instrumento (VIGOTSKI, 2008), para podermos tecer outras tramas, outros projetos de devir que incluam os sujeitos e suas experiências, nas práticas de educação em arquivos. E de compreender sua potencialidade de estimular experiências de diálogo com as memórias, as percepções dos sujeitos que aprendem,

num movimento de busca de construção de outra racionalidade, estética. Ou seja, uma racionalidade comprometida com a constituição de sujeitos que produzam conhecimentos, mas que possam, também, revisitar suas próprias sensibilidades, de modo a incluírem o outro, situado no tempo e no espaço, na criação de espaços de experiências compartilhadas:

Abertas para as múltiplas dimensões da experiência histórica, voltadas para uma racionalidade estética. Esta que liberta o imaginário e a diversidade, em todas as suas dimensões (na linguagem escrita e falada, na expressão corporal, na produção de imagens, de símbolos). Racionalidade estética que permite a explicitação de pontos de vista e não de pontos fi xos; racionalidade que transforma os tempos passados em tempos redescobertos - na produção dos saberes históricos educacionais –, possibilitando conferir às experiências outrora vividas, atualizações de signifi cados. (GALZERANI, 2008 a).

Os capítulos que se seguem têm como foco cada um desses topoi, dessas arenas de luta, que são analisadas em suas dinâmicas internas e na relação com as outras imagens que compõem esse tecido discursivo.

ARQUIVOS

E

EDUCAÇÃO