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Língua e gramática: cumplicidade e dinamismo.

2.2 “É bom não confundir o dialeto padrão numa língua com a própria língua.”

2.3. Língua e gramática: cumplicidade e dinamismo.

A gramática é, segundo PERINI (2000:30), uma aplicação da lingüística, uma ciência social que trata da linguagem, o mais básico dos fenômenos sociais, por permear todas as atividades de comunicação. A construção de um conhecimento gramatical na escola supõe o que BECHARA (1999:50) define como: a unidade da diversidade, ou seja, o conhecimento de que nenhum falante é capaz de dominar todas essas variedades, mas é capaz de usar e entender mais de um sistema lingüístico de sua língua histórica. Por outro lado, dentro dessa diversidade, a língua histórica é reconhecida pelos falantes de uma mesma comunidade ou de outros idiomas pela unidade mantida em sua constituição. Assim, mesmo englobando diversas variedades dialetais, uma língua histórica (portuguesa, por exemplo) não perde sua unidade como vínculo comum de comunicação. Essa língua unitária é a língua funcional, porque representa a modalidade usada de modo imediato e efetivo. Ora, só se pode descrever uma língua enquanto realidade unitária e homogênea; portanto, a gramática descritiva de uma língua tem a língua funcional como objeto de estudo, ou, como BECHARA (1999:39) explica: Uma gramática, como produto da descrição, nunca é o espelho da língua histórica; é apenas a descrição de uma de suas línguas funcionais.

Nesse contexto, os juízos de valor que caracterizam o certo e o errado não pertencem ao plano histórico, mas situam-se no plano funcional, uma vez que definem se um modo de uso está em conformidade com uma determinada estrutura, com uma tradição idiomática comunitária. Cada língua funcional tem sua própria correção à medida que se investiga se determinada forma de uso da língua está ou não de acordo com tal ou qual estrutura de uma língua funcional. Assim, uma gramática descritiva não estabelece juízos de valor pois apenas “descreve” um sistema lingüístico em seus aspectos, ou, como nos explica CÂMARA (1989:42): trata de deduzir o estado lingüístico cientificamente, isto é, por um método objetivo à maneira de qualquer outra ciência descritiva; cria-se assim um novo conceito de gramática, que está para as formas lingüísticas como a geometria para as formas espaciais.

A gramática descritiva, disciplina de caráter científico, é objetiva e imparcial, descreve, por metodologia específica, uma realidade lingüística particular, homogênea e unitária, em seus aspectos: fonético, fonológico, morfossintático e léxico e tem a língua funcional como objeto próprio da descrição estrutural e funcional. Refere-se, portanto, ao que BECHARA (1999:39) denomina: arquitetura da língua histórica, cuidando de um modelo exemplar, uma forma eleita entre as várias formas de falar que constituem a língua histórica. Em contrapartida, o “correto” e o “incorreto” situam-se no plano da estrutura da língua funcional. Portanto, a uma gramática descritiva, cabe apenas registrar como se diz numa língua funcional.

O outro tipo de gramática, a normativa, seleciona os modelos dados como “exemplares”, estabelecendo regras para a utilização da língua. Ainda recorrendo a BECHARA (1999:52):

Cabe à gramática normativa, que não é uma disciplina com finalidade científica e sim pedagógica, elencar os fatos recomendados como modelares da exemplaridade idiomática para serem utilizados em circunstâncias especiais do convívio social. A gramática normativa recomenda como se deve falar e escrever segundo o uso e a autoridade dos escritores corretos e dos gramáticos e dicionaristas esclarecidos.

A gramática normativa perde a característica da objetividade no momento em que se fundamenta em tradições e modelos de exemplaridade. Assim, restringe-se a uma disciplina gramatical que muitas vezes serve de referência no julgamento de uma pessoa em relação ao uso da língua (falar ou escrever sem gramática) 3. Segundo CÂMARA (1989:42):

Com efeito, a gramática – tal como se estabeleceu na filosofia greco-latina e continuou a vigorar nos tempos modernos – procura firmar um modelo de falar bem, por uma tradição do uso das classes cultas, restrita no tempo e no espaço; ou, em outros termos, é normativa. Esta preocupação já lhe tira o caráter de observação objetiva, que é o fundamento de toda ciência desinteressada. Seria, quando muito, uma ciência aplicada, à maneira da higiene e do direito penal. Mas a própria observação em que se fundamenta é fragmentária, perfunctória, incoerente e contraditória, guiada por conceitos que estão fora da linguagem, como principalmente os da lógica criada para regular a eficiência do raciocínio e incapaz de explicar o fenômeno lingüístico em sua plenitude, mesmo na sua função representativa e muito menos na manifestação psíquica e no apelo.

Numa análise comparativa, pode-se dizer que a gramática normativa estuda os fatos da língua padrão, transformando-os em regras da norma culta, ditando normas para a correta utilização do idioma e considerando “erro” as outras possibilidades existentes nas diversas variedades da língua. A descritiva trabalha com qualquer variedade da língua e não apenas a culta, descrevendo fatos da língua culta antes de serem transformados em regras pela gramática normativa. TRAVAGLIA (1997:31) afirma:

A gramática normativa é mais uma espécie de lei que regula o uso da língua em uma sociedade. A parte de descrição da norma culta e padrão não se transforma em regra de gramática normativa até que seja dito que a língua só é daquela forma, só pode aparecer e ser usada naquela forma. É preciso, pois, separar a descrição que se faz da norma culta da língua, que é apenas gramática descritiva de uma variedade da língua, com a transformação do resultado dessa descrição em leis para uso da língua.

Ao lado dessas duas gramáticas, a internalizada aparece como um outro tipo, que TRAVAGLIA denomina também como de uso, e implícita, na medida em que o falante não tem consciência dela. Refere-se ao domínio interno das regras da língua, que possibilita ao falante o uso automático da língua em qualquer situação de interação comunicativa. Essa gramática é o objeto de estudo dos dois outros tipos (descritiva e normativa) e está diretamente relacionada com o ensino de gramática. LUFT (1998:12) também se refere à importância dessa gramática. Ilustra sua definição através do jogo contrastivo Gramática/gramática, em que a primeira, apesar de necessária por conter as regras de uso da língua, é facilmente confundida com obsessão gramaticalista, em detrimento da segunda, a verdadeira. Para o autor, a gramática profunda da língua permite a quebra de regras e um progressivo crescimento à medida que acompanha o desenvolvimento transformacional dos seus donos. LUFT (1998:12) afirma:

Na verdade, os livros que chamamos Gramáticas são meras tentativas de registro e explicação de parte ínfima das regras contidas na autêntica gramática, a vital, a verdadeira: conjunto de regras que sustentam o sistema de qualquer língua, com ela nascem, evoluem e morrem [...] O que me preocupa profundamente é a maneira de se ensinar a língua materna, as noções falsas de língua e gramática, a obsessão gramaticalista, a distorcida visão de que ensinar uma língua seja ensinar a escrever “certo”, o esquecimento a que se relega a prática da língua, e, mais que tudo: a postura opressora e repressiva, alienada e alienante desse ensino, como em geral de todo o nosso ensino em qualquer nível e disciplina.

O papel da gramática descritiva e normativa no uso efetivo da língua em momento algum deixa de ser importante. O imprescindível é não assumir uma postura gramaticalista, que acaba apagando os talentos naturais e inibindo a expressão. Aprendida pela convivência constante com boa linguagem, é a gramática reflexiva, internalizada, que levará o aluno a utilizar com desembaraço e prazer a sua língua.