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LDB: compromisso com a competência lingüística.

CAPÍTULO III: PRATICANDO A COMPLEXIDADE DA LÍNGUA:

3.3. LDB: compromisso com a competência lingüística.

Evidentemente não podemos desconsiderar as orientações emanadas dos órgãos superiores, as limitações impostas pela própria escola, as exigências dos pais, ou até da sociedade, mas sabemos também que estamos, antes de mais nada, comprometidos com a

Lei de Diretrizes e Bases da Educação 2, especificamente com o inciso I do art. 36, em que se lê:

O currículo do ensino médio [...] destacará [...] a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania.

O Conselho Nacional de Educação, ao estabelecer as Diretrizes Curriculares

Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM - institui, no que se refere à Língua

Portuguesa:

Art. 4° - As propostas pedagógicas das escolas e os currículos constantes dessas propostas incluirão competências básicas, conteúdos e formas de tratamento dos conteúdos, previstos pelas finalidades do ensino médio estabelecidas pela lei:

[...]

linguagens contemporâneas, como instrumentos de comunicação e como processos de constituição de conhecimento e de exercício da cidadania.

Art. 5° - Para cumprir as finalidades do ensino médio previstas pela lei, as escolas organizarão seus currículos de modo a:

[...]

II. ter presente que as linguagens são indispensáveis para a constituição de conhecimentos e competências;

[...]

Art. 8° - Na observância da Interdisciplinaridade, as escolas terão presente que:

[...]

II . o ensino deve ir além da descrição e procurar constituir nos alunos a capacidade de analisar, explicar, prever e intervir, objetivos que serão mais facilmente alcançáveis se as disciplinas, integradas em áreas de conhecimento, puderem contribuir, cada uma com sua especificidade, para o estudo comum de problemas concretos, ou para o desenvolvimento de projetos de investigação e/ou de ação;

[...]

Art.9° - Na observância da Contextualização, as escolas terão presente que:

I. na situação de ensino e aprendizagem, o conhecimento é transposto da situação em que foi criado, inventado ou produzido, e, por causa dessa transposição didática, deve ser relacionado com a prática ou a experiência do aluno, a fim de adquirir significado;

II. a relação entre teoria e prática requer a concretização dos conteúdos curriculares em situações mais próximas e familiares do aluno, nas quais se incluem as do trabalho e do exercício da cidadania;

III. a aplicação de conhecimentos constituídos na escola às situações da vida cotidiana e da experiência espontânea permite seu entendimento, crítica e revisão;

Art. 10° - A base nacional dos currículos do ensino médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber:

I. Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e habilidades que permitam ao educando: a) Compreender e usar os sistemas simbólicos das

diferentes linguagens como meios de: organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação. [...]

d) Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade.

[...]

h) Entender o impacto das tecnologias da comunicação e da informação na sua vida, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.

i) Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para a

sua vida.

[...]

III. - Ciências Humanas e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e habilidades que permitam ao educando: [...]

b) Compreender a sociedade, sua gênese e transformação, e os múltiplos fatores que nela intervêm, como produtos da ação humana; a si mesmo como agente social; e os processos sociais como orientadores da dinâmica dos diferentes grupos de indivíduos.” 3

Sabemos que a LDB deve regularizar a vida das redes escolares, no que diz respeito ao ensino formal, ficando fora de seu alcance as manifestações de ensino livre. Sabemos que a Educação não tem sido objeto de significativo investimento na política brasileira. No entanto, embora sem a intenção de analisar a nova LDB, nem tampouco questionar avanços, retrocessos ou estagnação, talvez valha a pena pinçar, numa visão otimista, um pouco da preocupação em relação aos objetivos a serem atingidos, e, conseqüentemente, aos conteúdos a serem ensinados. A lei já não é tão reguladora e permite maior autonomia das escolas na construção de alternativas de uma prática docente real e significativa. Ficam a nosso critério, mais uma vez, os malabarismos na construção de alternativas que vinculem os conteúdos essenciais à prática social, capacitando o educando a perceber-se como agente social de uma sociedade em transformação.

LIBÂNEO (1991:33) afirma:

A Educação escolar possibilita a generalização da experiência da prática sócio-histórica. Provê o conhecimento necessário tendo em vista a apreensão e a explicação da realidade física e social, o desenvolvimento das possibilidades cognoscitivas e operativas dos alunos, a formação de convicções para atuação criativa e crítica na sociedade. A atividade escolar se viabiliza pelo ensino, envolvendo a instrução e os modos e condições do ensino. A linha fundamental, a base objetiva do ensino são os conteúdos. Não conteúdos autonomizados, descolados da vida real, mas impregnados dos seus significados sociais, de forma que os alunos vão

ganhando maior compreensão das contradições fundamentais da sociedade.

No Art. 9o, § 3°, a necessidade de contextualização do conhecimento pressupõe a efetiva utilização de um saber, ou seja, teoria e prática articuladas à realidade do aluno. Dessa forma, não podemos prescindir dessa realidade como fonte de pesquisa para a construção do conhecimento. Se de um lado a lei é bastante reguladora no sentido de freqüência às aulas, de outro, esse artigo nos leva a refletir sobre o conhecimento fora da sala de aula. O reducionismo de uma ação pedagógica a uma aula, ou a determinado número de aulas ainda é exigência de alguns programas escolares. Os cronogramas pré- estabelecidos vinculam a construção do conhecimento a um espaço e tempo reduzidos, como se a aula fosse completa por si mesmo: – em uma aula, o conhecimento começa a ser construído para, depois de tantas aulas estar terminado. Essa segmentação do saber, condicionada a um determinado tempo e espaço, elimina a contextualização e a pesquisa, fatores imprescindíveis não só na aprendizagem, como também na formação integral de um aluno.

Em sua interpretação da LDB, DEMO (1999:79) aborda essa postura tradicional, contraditória em relação aos seus próprios objetivos. Considera que a expressão ano letivo regular já é lucro, no sentido de não dizer que se trata de um ano letivo com 200 dias de aula, mas, em contrapartida, a freqüência obrigatória de alunos e professores resgata o sentido negativo de uma expectativa tipicamente escolar, em que o ano letivo se torna um monte de aulas. Afirma-nos DEMO (1999:79):

[...] O importante mesmo é a aula, e, no fundo, instituição de ensino é aquela dedicada a dar e ouvir aulas. Nossos alunos continuam aprendendo muito pouco, como mostram os dados atuais, mas os professores ainda acreditam na importância de suas aulas. A maioria estaria disposta a ver na falta às aulas um prejuízo insanável para o aluno. A realidade já mostraria o contrário: aluno que perde aula não perde nada. \Porquanto tem coisa muito mais decisiva a fazer na vida, que é pesquisar, formar-se propedeuticamente, elaborar com mão própria, etc.

Assim, o texto [LDB] confunde freqüência às aulas com aprendizagem. Enquanto o Primeiro Mundo pesquisa, o Terceiro dá aula, e, na prática, é em grande parte Terceiro Mundo porque apenas dá aula, ou seja, permanece subalterno a processos impostos de construção de conhecimento.

Uma educação lingüística que vise ao enriquecimento da competência lingüística do aluno provocará uma reforma de currículo e de atividades didáticas. BECHARA (1998:23) considera que o currículo tradicional, em geral, se mostra na prática como antieconômico (porque ensina aos alunos fatos da língua que eles já dominam ao chegar à escola, graças ao saber lingüístico prévio), banal (informações subministradas aos alunos não enriquecem a capacidade operativa do falante, limitando-se a regras classificatórias) e inatural (ensino segue a direção inversa ao desenvolvimento lingüístico dos alunos, partindo de elementos não significativos).

À escola cabe, efetivamente, o ensino da modalidade padrão. Abdicar desse objetivo é admitir a impossibilidade de um aluno aprender a complexa variedade culta da língua só porque não a usa. Não há língua fácil ou difícil, todas são estruturas de igual complexidade. As dificuldades para aprender serão maiores quanto maior for a distância entre o aluno e o uso prático da língua culta. Essa prática, obviamente, deve ser incentivada na escola, para que se possa atingir um grau efetivo de sua utilização no cotidiano do aluno. Para POSSENTI (1999:20) ler e escrever não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude de vida, mas atividades essenciais ao ensino da língua. Portanto, seu lugar privilegiado, embora não exclusivo, é a própria sala de aula.

No planejamento flexível de nosso trabalho, com objetivos voltados à formação crítica e consciente de nosso aluno, uma metodologia que seja construída ao longo desse trabalho e, tendo por princípio a competência no uso da língua portuguesa não só como instrumento de comunicação, mas também como processo de construção de conhecimento e produção cultural, o ensino da gramática não pode ser descritivo/normativo como um fim em si mesmo, mas, como explica TRAVAGLIA (1997:108):

[...] um instrumento para auxiliar o desenvolvimento da competência comunicativa, da capacidade do uso efetivo da língua, servindo antes de tudo ao objetivo de possibilitar a conversa em sala de aula sobre aspectos da língua [...] pois que a gramática é a própria língua em uso.

Para isso, o aluno deve ser parte interativa no processo de construção do conhecimento gramatical. A gramática reflexiva, embasada pela gramática teórica, é que dará significado a si mesma, uma vez que a reflexão sobre os fatos da língua e sua internalização pelo aluno, possibilitar-lhe-ão o domínio e o uso da mesma em situações

concretas e específicas de interação comunicativa. Conforme LUFT (1998:25): Indispensável é a intimidade com a língua. Uma intimidade gramatical, e não gramaticalista. Intimidade com a gramática (da língua), não necessariamente com a Gramática (da escola). Só quando o aluno descobrir a significação real da língua materna dentro de seu dia-a-dia é que ele poderá valorizar a variedade culta e esta deixará de ser para ele uma estranha. O início dessa descoberta para o aluno supõe o caminhar de mãos dadas com o professor pelo mundo das palavras, buscando os seus significados. Prestar atenção às palavras, ser curioso, investigar-lhes o campo semântico. Estes são recursos que darão ao jovem a oportunidade de descobrir que elas têm vida e cor, encontram-se ligadas e dependentes entre si e organizam-se num campo lingüístico e conceitual

.

Ao pronunciar o mundo, as palavras estão carregadas de uma força semântica capaz de transformar esse mundo. Quando o jovem utiliza a palavra, deve sabê-la forte, engajada em uma estrutura que expressa o pensamento de quem a pronuncia. Dessa forma, estará atingindo o conhecimento, no nível do logos,4 autenticamente reflexivo, consciente e alimentado pelo constante desvelamento da realidade. Não se pode negar que, enquanto o jovem mantiver um nível de percepção do mundo condicionado pela estrutura social em que se encontra, a Língua Portuguesa culta será, para ele, mais uma manifestação cultural alheia às suas próprias cultura e língua.

A falsa concepção de que ensinar é depositar conteúdos, demonstrando uma inegável descrença no jovem e subestimando o seu poder de refletir, torna o educador um cúmplice do processo de subordinação a que ele próprio já se sente submetido. A postura tradicional ensino/aprendizagem pressupõe um dar/receber que focaliza um professor que sabe, em detrimento de um aluno que não sabe. Não há cumplicidade num processo construtivo, não há reflexão crítica, nem diálogo, nesse grande espaço representativo de comunicação interativa que é a sala de aula. LUFT (1998:42) sugere que, muitas vezes, o professor mantém uma postura tradicional apenas para não enfrentar os vários obstáculos que se colocam à sua frente, acreditando ser mais cômodo adaptar-se ao que já existe, aos currículos, livros didáticos e opiniões previamente estabelecidos. Em relação a essa postura

4 Do grego lógos = o princípio de inteligibilidade, a razão. Segundo Heráclito, a razão ou lei universal, o princípio supremo de unificação, portador do ritmo, da justiça e da harmonia que regem o Universo. Segundo Platão, o princípio de ordem, mediador entre o mundo sensível e o inteligível.

do professor, explica-nos LUFT (1998:43):

[...] Melhor é não ter convicções próprias; melhor ainda, não inovar. Sair da rotina da tradição é inquietante: para si, para os colegas, para as autoridades, para o sistema.

Enfim, a ingenuidade tradicional parte do pressuposto de que o aluno não sabe a língua, tem de aprendê-la, e aos professores cabe ensiná- la.

Esse equívoco vai nortear todos os programas, planejamentos, atividades, metodologias, estudos e exercícios das aulas de Português.

Sem dúvida alguma, ainda que contraditoriamente, a escola se mantém como elemento propagador da ideologia da classe dominante. Prova disso é que treinou seu aluno tão bem durante a pré-escola e o ensino fundamental, que, agora, no ensino médio, ele é incapaz de se perceber como agente de sua própria história para, como tal, fazer uso da língua em sua ação nessa história.

A repetição, por anos e anos, de regras e conceitos prontos dá ao aluno uma visão estática, imutável, imobilizada do sistema lingüístico, acentua os erros, predispõe o jovem à aceitação de modelos prontos. O aluno cumpre o seu papel e o professor cumpre o seu programa, ambos legitimando a ordem vigente. À educação que assim se constitui, FREIRE denomina bancária5 e explica (1998-b:131): [ela] anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não sua criticidade e satisfaz aos interesses dos opressores (...). Esse tipo de educação estimula a neutralidade e retira da educação o seu objetivo fundamental que é, ainda conforme FREIRE (1998-b:110): a intervenção no mundo. O mundo de hoje exige dos homens que eles sejam sujeitos críticos de sua época e não apenas que se ajustem a uma realidade, como meros espectadores, ou, como explica FREIRE (1996:53): acomodados às prescrições alheias que, dolorosamente, ainda julgam ser opções suas. Uma educação bancária favorece essa acomodação, excluindo do homem a atitude crítica, reduzindo-lhe a fé em si mesmo e em sua possibilidade de uma convivência autêntica.