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4.1.3 L IDANDO E CONVIVENDO COM A DOENÇA GRAVE

4.1 – OS VIÚVOS E AS EXPERIÊNCIAS DE DOENÇA E MORTE

4.1.3 L IDANDO E CONVIVENDO COM A DOENÇA GRAVE

Em todas as narrativas, o estar junto durante a evolução da doença foi uma constante. Como já referido, havia impasses em relação às decisões de se submeter a tratamentos, quando a mulher se recusava a isto, mas tal decisão era acatada, de modo geral, pelo companheiro. À medida que a doença avançava, havia modificações nas atividades e nas rotinas da vida cotidiana, a fim de se estar próximo o mais possível - pois o estar junto, nesses momentos, era tido não como uma responsabilidade por dever, mas como lealdade afetiva e solidariedade à companheira de tantas jornadas - verdadeiramente, aqui me parece em ação a Teoria da Dádiva, de Marcel Mauss (1974): de fato, era uma espécie de reciprocidade, de retribuição, feita por este marido, do que tinha recebido da esposa, ao longo do casamento, em termos de compartilhamento da vida. Eis o que conta Roberto:

- (...) Eu falei: “_ Olhe! A questão é essa: o cara quer lhe operar.” Ela falou: “_ Roberto, EU NÃO VOU ME OPERAR! (.3) NÃO existe possibilidade! Eu já ACEITEI, inclusive trabalhei demais nesses quinze dias. (.hh) NÃO admito a IDÉIA de ficar presa numa cama, ou a idéia de ficar cega. Não admito! Eu prefiro a idéia de morrer. Vou esticar.” E esse ano = Eu falei: - “_ Bom, tá consciente disso?” Tá. Esse ano, eu diminui meu trabalho, a gente viajou:: - Fomos pra Chile, viajamos o Brasil todo, num sei que mais. Entrei em dança de salão:: EU SABIA que a QUALQUER DIA seria O DIA! (Roberto, E01: 18).

Para o marido afetado por doença na esposa, como já mencionado, foram necessárias mudanças nos esquemas arquitetados para o dia-a-dia, que incluíam: reajustar a carga horária geral do trabalho, na instituição à qual estava vinculado por emprego, de forma a conseguir disponibilidade para acompanhar consultas médicas e/ou terapêuticas instituídas; tomar, sozinho, resoluções, muitas vezes sem poder compartilhar com ninguém - em muitos casos, a decisão final de um procedimento era sempre delegada, pelo médico e familiares, ao marido

(por exemplo, transferir ou não para uma UTI, quando a Medicina “não tinha mais nada a fazer”, sendo tal indicação apenas para afastar parentes e amigos do desfecho fatal; fazer ou não certa cirurgia, que prolongaria inutilmente e com muito padecimento o que restava da vida da esposa); assumir maior atribuição no gerenciamento da casa. Todas estas são questões apontadas, pela maioria dos maridos, como constando do percurso da doença até o desenlace final.

No caso de outras doenças crônicas, como Diabete, Cardiopatia, Nefropatia ou Doença do Colágeno, potencialmente de prognóstico menos sombrio quanto à morte rápida e imediata, ou seja, aquelas de desenvolvimento mais prolongado, e até mesmo no câncer de evolução lenta, as mudanças no entorno eram também mais paulatinas, ensejando uma certa acomodação ao real, e o medo da perda não estava tão eminentemente presente, até que a esposa entrasse no quadro incurável de paciente fora de possibilidade terapêutica (FPT).

Considerando que, neste meu trabalho, pouco mais da metade das causas diretas ou indiretas dos óbitos das esposas decorreram de câncer, doença que, no imaginário popular, é ainda aterradora, pois é vista tanto como causadora de grande sofrimento físico como pela ameaça letal que vem embutida nesse diagnóstico - uma verdadeira sentença de morte com seu estigma -, não é de surpreender a mobilização que ocorreu no entorno da mulher, representada principalmente pelo marido. A escritora Susan Sontag (2002), discutindo a doença como metáfora, mostra que o câncer, hoje - como a tuberculose, no passado -, desperta pavor e desempenha o papel de enfermidade furtiva e cruel. Para a autora, “qualquer doença encarada como um mistério e temida de modo muito agudo será tida como moralmente, senão literalmente, contagiosa” (p. 10). E, de fato, evita-se até mesmo pronunciar a palavra ‘câncer’, substituindo-a por “aquela doença”, como se se tratasse de obscenidade, de mau presságio, do abominável, completamente carregada de poluição e perigo, no sentido mesmo atribuído pela antropóloga britânica Mary Douglas (1991: 18) à impureza: “A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a ordem e a desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte”. Isto aparece claramente na fala de alguns entrevistados, como será visto adiante.

Convém esclarecer, entretanto, que o tipo de doença não me parece que interferiu nem na vivência da perda nem nas reações e providências posteriores. O desassossego com o estado de doença da esposa estava presente também naqueles casos de outra etiologia, não

neoplásica. De qualquer forma, em praticamente todas as situações, as relações do casal passaram por mudanças. É o que discuto a seguir.

4.2MUDANÇASNASRELAÇÕESDOCASAL

Modificações no relacionamento conjugal ocorreram na quase totalidade dos casos estudados. Vários maridos relatam, espontaneamente, mudanças nas relações afetivo-sexuais e de convivência geral do casal, durante a vigência da doença que levou ao óbito. Na verdade, perguntas específicas sobre esta temática não foram inerentes e/ou indispensáveis à minha pesquisa, pois, relembro, meu foco primordial era e é identificar os apoios/suportes recebidos e as representações dos homens em situação de viuvez. Contudo, essas questões apareceram nos depoimentos, e por isso incluo este tópico, o qual passo a discutir. Obviamente, “as transformações da intimidade” - usando uma expressão de Giddens (1993) - decorrentes da doença, ocorreram nos casais onde o curso da enfermidade foi mais ou menos prolongado.

As relações interpessoais que estou considerando aqui vão desde o relacionamento afetivo-sexual até o desempenho dos papéis de dona/dono de casa. Neste sentido, tanto o acompanhamento da esposa doente em seu tratamento como a administração da casa foram tarefas que passaram, concretamente, a constituir o universo do marido. Nas fases iniciais, tais tarefas eram executadas ainda sob a supervisão da esposa, mas com o progredir da doença elas passavam à inteira responsabilidade dele - na maior parte dos casos, havia a assessoria de uma empregada doméstica, que teve papel preponderante na organização e no desenvolvimento das atividades intradomiciliares, tanto no período de doença quanto após a morte da mulher.

Neste período, em quase nenhum dos depoimentos foi relatada a entrada de familiares, amigos ou vizinhos para ajudar sistematicamente no gerenciamento do lar, de modo a atenuar ou dividir a participação masculina. Algumas dessas pessoas se colocavam disponíveis para o caso de haver necessidade, mas, pelo que aparece nos relatos, pouquíssimas foram as ocasiões dessas redes serem acionadas, neste estágio. Uma exceção aconteceu com Éder, já que uma parenta de Edilza veio “dar uma ajuda nos últimos dias”. Outra exceção é a presença dos filhos do casal, quando já crescidos. Em relação aos filhos, apenas seis viúvos tinham filhos

adolescentes ou adultos jovens morando em casa, e que podiam ajudar na assistência à mãe; os demais ou eram muito crianças ou não moravam mais em casa, quando o quadro piorou. De qualquer forma, toda a vida doméstica, no tempo da doença, permaneceu circunscrita ao espaço privado da família nuclear.