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2.5 NOTAS ADICIONAIS DA EXPERIÊNCIA EM CAMPO

No trabalho de coleta de dados, alguns fenômenos emergiram, os quais quero colocar agora. Inicialmente, percebi que nenhum entrevistado jamais fez qualquer questionamento sobre as pesquisas, sejam os viúvos desta ou as viúvas da anterior. Autores diversos têm relatado que a curiosidade do informante sobre o pesquisador e a pesquisa estaria tão presente quanto a do pesquisador sobre o seu objeto. No caso desta minha pesquisa, não percebi isto, afora algumas perguntas pontuais sobre o encontrar viúvos ou em ser médica, como descrito atrás. Simplesmente, os informantes liam os documentos que eu apresentava e assinavam onde indicava, ou apenas assinavam sem os ler, sem fazer perguntas ou comentários. No máximo, algum deles dizia assim: “_Eu confio!”

Fico pensando porque isto acontece. Não parece falta de interesse pela pesquisa em si, pois todos anuem a ela logo que eu estabeleço contato telefônico. As eventuais dificuldades e/ou desencontros na marcação das entrevistas parecem ser decorrentes, de fato, de compatibilidade com as agendas de informantes que trabalhavam - mesmo assim, apenas em quatro casos em um total de 12 -, visto que entre os que não trabalhavam não houve quaisquer problemas. Além disso, no campo mesmo, percebi, de forma muito clara, o cuidado dos informantes pelo momento da entrevista. Quer fosse em casa, no trabalho ou em associações de classe, houve quase invariavelmente uma preocupação em que ficássemos em local mais privativo, sem interrupções por telefonemas ou circulação de pessoas; em oferecer água e cafezinho; e mesmo em saber se a “conversa” estava dando as informações que eu queria colher ou o que eu estava achando da “palestra”:

?- [E aí::.?

– [TÁ GOSTANDO DA PALESTRA? ?- Eu tô gostando, tô achando ótima! - Hum!!!::: (Adolfo, E14: 22)

Grande parte dos meus informantes se colocou à disposição para outros encontros, caso eu achasse necessário complementar qualquer informação dada ou acrescentar novos detalhes.

Convém acrescentar, ainda, que apenas um dos viúvos contatados para a amostra, terminou não fazendo parte dela. Na abordagem feita por e-mail, ele se mostrou preocupado com as perguntas que eu iria fazer-lhe, pois disse que já estava casado novamente, e a situação poderia ficar delicada; eu lhe garanti a confidencialidade dos dados e o anonimato que imprimiria aos entrevistados, mas ele não respondeu à mensagem e resolvi não insistir. Até porque eu possuía uma lista de espera que me permitia ultrapassar o número de participantes que eu sabia ser válido e possível de trabalhar, como amostragem do método e instrumento escolhido para a investigação. Mas registro isto aqui, porque penso que a recusa também faz parte da coleta de dados e pode embutir questões sociais - infelizmente, agora não é o momento de investigar as razões disso, mas pode ficar como sugestão para uma outra pesquisa.

Retomando para o não questionamento dos entrevistados, penso em algumas possibilidades de explicação para esse fato. Poderia decorrer da necessidade de contar sua história, de relembrar aquela parte da sua existência? Ou seria devido à contingência de ser escolhido para um estudo acadêmico, uma tese de doutoramento? Considerando a imensa credibilidade granjeada pela ciência, o falar em nome dela por si só pode não requerer outros explicativos para aquiescência dos convidados a informantes? Ou pode ser também que a própria pesquisadora tenha conseguido angariar a confiança e credibilidade do candidato, antes ou durante a ligação telefônica? Ou ainda, pode ser que o informante conheça bastante o contactante e confie nele o suficiente para ter asseguradas a confiança e credibilidade no projeto? Enfim, talvez essas questões devessem constituir um outro objeto de pesquisa.

E, na verdade, pelo menos uma delas já foi contemplada em investigação social. Referindo novamente o trabalho de Elizabeth Bott (1976), esta autora constatou que a adesão à sua pesquisa era mais bem sucedida se a apresentação tivesse sido feita por pessoa amiga da família candidata (p. 38), isto é, se havia um certo “grau de intimidade entre a pessoa que estabelecia o contato e a família contatada”. Este relacionamento amigável favorecia a concordância dessa família em receber Bott para a primeira entrevista explicativa sobre a pesquisa.

No caso do meu trabalho, quase todas as pessoas que foram intermediárias eram bastante chegadas ou parentas dos viúvos entrevistados. Assim, parece-me que a confiança do informante na pessoa contactante é realmente uma condição não desprezível na captação da

amostra. Até porque, penso eu, é preciso um certo grau de proximidade e conhecimento do outro para que alguém sugira, e o outro aceite, relatar algo tão marcante e íntimo como a experiência da viuvez, que, queiramos ou não, mexe com todos os âmbitos da vida da pessoa atingida, seja privada ou pública.

Outra observação. A narrativa dos homens foi sempre muito rica de detalhes e pormenores do percurso da vida, do contexto e do entorno onde os eventos ocorreram, nos seus aspectos pragmáticos, principalmente no que concerne à doença e à morte da esposa, e à reorganização da vida subseqüente. Quase tudo gira em torno do espaço público, enquanto no espaço privado o seu papel é mais de supervisor. Isto tudo será melhor apreciado nos capítulos seguintes. Apenas antecipo esses comentários porque isso já me chamava a atenção na transcrição das entrevistas.

E mais. Quando o material daqui é comparado com o das viúvas que pesquisei anteriormente, vejo que elas falam mais sobre as sensações pessoais. Choque, horror pesadelo, desespero, preocupação com o impacto sobre os filhos: estas são descrições para as reações imediatas ao óbito. Considerar apenas a forma brutal da ocorrência da morte - assassinatos e acidentes - como responsável pela diferença de reação dos homens pesquisados não me parece suficiente. Os casos semelhantes que ocorreram entre estes últimos não foram expressos à maneira das mulheres. A maior parte das providências é tomada pelo agora viúvo, diferentemente das viúvas. O mesmo acontece quando se verificam os depoimentos sobre as inseguranças em lidar com o espaço público, a sensação de “não ser nada!” Jamais ouvi isto de qualquer desses viúvos.

Mais outra observação. Questões de gênero pontuam todas as falas masculinas, de forma explícita ou embutida. Mas nada que seja inesperado ou surpreendente. Como herança da tradição machista e paternalista da cultura ocidental, a sociedade brasileira ainda mantém fortes traços de uma orientação educacional e formativa centrada na figura masculina enquanto provedor e chefe da família, com muitos ônus e bônus para homens e mulheres. O avanço que o movimento feminista fez acontecer, até agora, na posição da mulher, nas esferas do público e do privado, não conseguiu abolir, ainda, as diferenças estruturais de gênero que sempre caracterizaram a nossa sociedade. E elas aparecem nos depoimentos, mais ou menos

matizadas por tendências ao igualitarismo. No entanto, essa discussão não é o foco do meu trabalho. Muitos pesquisadores e muitas pesquisadoras vêm trabalhando intensamente a questão, com muito maior competência e saber do que eu própria. Até porque não foi objetivo desta pesquisa aprofundar esses sempre importantes problemas de gênero. Pois, repito, minha opção foi outra: discutir a perspectiva dos homens na vivência da viuvez. De qualquer forma, cada uma destas observações adicionais, que aqui pontuo, podem configurar-se como novas linhas de pesquisa acadêmicas.