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A LEALDADE E OS TEMPOS CORRENTES

No documento Lições de deontologia militar (páginas 94-96)

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2. A LEALDADE E OS TEMPOS CORRENTES

As grandes mudanças económicas que se verificaram no mundo e, especialmente, em Portugal nos últimos cinquenta anos, foram provocando, lenta mas seguramente, grandes alterações ao nível dos princípios morais - o consumo e o desejo de poder consumir ampliaram, às vezes de uma forma artificial, as necessidades de cada um de nós. Esse aumento do desejo de consumir transformou-se numa exigência de aumento de rendimentos e aquilo que, no princípio era um bom «motor» para que cada um crescesse até ao limite da sua competência e capacidade, tornou- se numa concorrência interpessoal que foi passando por cima da maior parte das barreiras morais tradicionais. O Homem foi perdendo, até, a consciência de estar a ultrapassar essas mesmas barreiras.

A corrosão dos princípios morais tradicionais192 foi-se tornando tão banal na sociedade que não

deixou de penetrar, também, na instituição militar. Todavia, se há grupo humano onde tem de

191 Repare-se que uma atitude dessa natureza, também, está, implicitamente, a colocar em causa aqueles que reconheceram competência e capacidade para entregar o comando a quem comanda; no fundo é uma crítica a toda uma cadeia de comando.

existir um forte sentido moral, esse grupo é o militar. Exige-se uma moral193 sólida na vida

castrense, porque as forças armadas, quaisquer que sejam, têm de funcionar coesas de modo a que assim possam cumprir melhor o seu fim último: defender a comunidade nacional.

O desejo de conquistar o melhor lugar, de atingir mais rapidamente o topo da escala hierárquica e o de surgir como o elemento indispensável são sentimentos que, quando penetram no seio das forças armadas corroem o valor fundamental que gera a disciplina: a lealdade.

Ninguém pode ser leal e, ao mesmo tempo, esperar ultrapassar, por qualquer meio aqueles que, por competência, por maior valor, por mais antiguidade, estão à frente. Nas forças armadas a concorrência tem de ser cautelosamente gerida e, a primeira condição para que tal aconteça, passa pelo desenvolvimento de personalidades bem formadas, as quais têm de admitir a existência da diferença não baseada em pseudo direitos, mas sedimentada na maior capacidade e na melhor preparação.

O chefe militar do presente e do futuro, para poder exigir lealdade, deve ser capaz de a praticar com os seus subordinados, isto é, tem de zelar pelo seu bem-estar, pelos seus legítimos interesses, de modo a quebrar as concorrências marginais que não beneficiam o serviço e prejudicam as relações entre as pessoas; por outras palavras: as obrigações devem ser bem

cumpridas, porque são um dever do militar e não porque, fazendo-o, se consegue evidenciar as falhas ou as incompetências dos outros militares.

Só quando existe um forte sentimento de camaradagem é que se torna possível limitar a concorrência, transformando-a em competição; mas, também, só quando existe uma personalidade bem formada é que se consegue distinguir o oportunista do competente.

192 Onde estava incluído o respeito pelos direitos dos outros, o amor à verdade, o repúdio pelos processos desonestos.

193 O que se deve entender por moral? Dou a palavra a um velho mestre que me guiou nos primeiros passos na vida militar: «[..] não há ninguém, nem jamais houve, que não adopte sempre uma posição crítica em face

das suas próprias acções e das alheias. Sobre elas, todos formam inevitavelmente uma opinião - uma acções despertando no seu espírito sentimentos de aprovação, de estima ou mesmo de entusiasmo (as boas); e outras, ao invés, sentimentos de reprovação, de desprezo e mesmo de revolta (as más) [..]. Assim, os nossos actos são sempre apreendidos pela consciência como repartidos em dois grupos: por um lado, os que julgamos bons, por outro os que julgamos maus. [..]. Ora este facto que revela? Revela que os homens sentem que também eles, [..], estão metidos dentro de uma ordem e se encontram sujeitos a determinadas leis. Com uma diferença, no entanto. As coisas exteriores estão sujeitas a leis e realizam-nas fatalmente: não são livres. Nós somo-lo. Isto é, temos o glorioso ou triste privilégio de cumprir ou de não cumprir as normas que nos regem. Mas dessas normas temos perfeita consciência, quer dizer, de um padrão de conduta a que as nossas acções se devem conformar. Se lhe procuramos fugir, há qualquer coisa dentro de nós que nos avisa que estamos a fugir da harmonia para que nascemos, e por isso os nossos actos então nos repugnam e os consideramos maus. É nestes termos que, a par da ordem natural, uma outra nos aparece, a dos actos humanos. É a ordem moral» (TCor. Capelão Cónº. António dos Reis Rodrigues,

Praticar a lealdade é cumprir pela obrigação que se assumiu e não pela vantagem que se pode alcançar; cabe ao chefe militar perceber a diferença e não se deixar envolver na malha enganadora que a concorrência desmedida veio introduzir nas relações entre militares.

Existe a tendência para apreciar o exemplo americano de ser militar, esquecendo que ele reflecte, por um lado, uma grande falta de tradição castrense - que a Europa possui, de facto - e, por outro, o modelo de vida da sociedade dos EUA que, fundamentalmente, assenta nos valores do padrão de vida ditado pelo acto mercantil: ganha mais, quem vende mais e mais barato. Este princípio aplicado às forças armadas faz nascer o espírito de concorrência comercial onde deve existir, fundamentalmente, o gosto da perfeição que vem do desejo de cumprir bem.

Realmente, competência tem o significado de aptidão e não resulta de competir, cujo sentido se situa no acto de concorrer. Assim, a maior perfeição resulta da maior competência e não da

maior competição.

Se é verdade que se pode competir lealmente, não é menos certo que o desejo de competência

implica sempre uma prática de actuação leal.

O chefe militar deve ter clara no seu espírito a diferença entre cada um destes conceitos, de modo a praticar a competência e, como resultado, a lealdade, exigindo dos seus subordinados igual atitude.

No documento Lições de deontologia militar (páginas 94-96)