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O H ERÓI NA H ISTÓRIA C ONTEMPORÂNEA

No documento Lições de deontologia militar (páginas 73-75)

3 «S I VIS PACEM PARA BELLUM »

5. O S MILITARES E A GUERRA

1.3. O H ERÓI NA H ISTÓRIA C ONTEMPORÂNEA

153 Aliás, o fundador da Companhia de Jesus, Santo Inácio de Loyola, antes de se tornar clérigo havia sido militar de carreira.

154 Deve levar-se em consideração o facto da religião nem sempre ter tido a mesma importância no quotidiano das pessoas. Com efeito, na Idade Média, a religião era o tema central da vida dos homens, nada se fazia, ou havia com significado, fora das actividades consagradas pela Igreja; na Idade Moderna, consequência da Reforma, já o grau quotidiano de adesão profunda à religião sofreu alterações, passando, muitas vezes, a prática religiosa a mero ritual; por fim, na Idade Contemporânea, já se contestava a Igreja e todas as religiões, passando a prática religiosa a ser uma actividade que, colectivamente, se desenvolvia aos domingos e dias santificados, mas que não tinha peso significativo nos procedimentos quotidianos - a religião, entre o século XIX e o século XX,

desvalorizou-se enquanto elemento cultural, isto é, enquanto veículo de transmissão de formas de estar e viver a vida.

Como acima deixámos dito, foi na época contemporânea que o herói perdeu por completo a sua ligação ao santo e se «autonomizou» em relação à Igreja Católica. O grande impulso para que tal acontecesse veio da epopeia colonial levada a cabo pela Europa.

Na verdade, já aquando da expansão marítima portuguesa e espanhola se começaram a gerar as primeiras manifestações que levaram ao aparecimento das grandes figuras históricas que, em terras distantes, combatiam contra gentios perigosos e implacáveis155. Esses heróis foram os

antecessores de todos os outros, ingleses, franceses e holandeses que se espalharam, nos séculos XVI, XVII e XVIII, por todo o mundo e pilharam populações, muitas das vezes, quase indefesas mas que passaram a saber opor resistência ao roubo.

Com efeito, os europeus estranhos à Península Ibérica, nos séculos que referimos ocuparam grandes parcelas de territórios por todo o mundo e começaram a exercer grandes pilhagens acobertadas de acções militares contra os gentios. Foi assim que foram exterminados os primitivos habitantes da Austrália e da América do Norte e foi assim que começaram a surgir os primeiros «grandes» heróis dos tempos modernos.

Curiosamente, a Revolução Industrial veio trazer, no final do século XVIII e durante todo o século XIX, uma nova imagem do herói não ligado a acções violentas; foi o caso de uma imensa gama de cientistas que, nos mais variados domínios, se interessaram pelo bem-estar e pela vida da humanidade; foram casos de físicos, de químicos, de botânicos, de médicos, todos eles tendo em comum uma vida de sacrifício, por vezes de miséria, em prol de descobertas que iriam prolongar a vida humana ou reduzir o sofrimento na doença.

Foram estes homens silenciosos, mas plenos de abnegação e de interesse pela humanidade, que vieram recolocar na posição correcta a noção de herói que a Igreja tinha construído durante centenas de anos.

Nos séculos XIX e XX o herói, ainda que por feitos militares, deixou de ser o chefe sanguinário para passar a estar mais próximo da noção moldada pela Igreja Católica. Esta mudança deve-se à nova importância que a vida humana ganha no terminar do milénio. Está claro que, por vezes, não é esta imagem de correcção que transparece de alguns heróis militares, nomeadamente, dos que surgiram durante a 2ª Guerra Mundial no campo alemão. No entanto, cada vez mais, a designação de herói militar é mais regateada e mais cautelosamente atribuída, para garantir que

155 Esta ideia de gentios perigosos e implacáveis foi, naturalmente, posta a circular na época e só algumas vezes correspondia à verdade. Todavia, quanto mais perigoso é o adversário mais importante terá sido o feito levado a cabo contra ele - assim nasceu a perigosidade de gente que desconhecia a arma de fogo e vivia, muitas das vezes, em completa barbárie.

não vai ser dada a um assassino fardado ou a um louco disfarçado de soldado. O herói, cada vez mais, mesmo até o herói militar, é alguém que respeita a dignidade e o valor da vida humana156.

Devem acrescentar-se mais alguns elementos à concepção de herói no século XX e que se relacionam com as próprias concepções de vida da sociedade.

Como dissemos anteriormente, o herói é um elemento cultural que serve para as comunidades se identificarem, se sentirem coesas ao longo da história, reconhecerem que têm um passado e permitir-lhes que possam lutar por um futuro. Ora, esta visão do herói tem, como já vimos, uma muito grande relação com o herói da Igreja - ou seja, o santo - e é, por conseguinte, o resultado de uma espiritualização da vida, isto é, de se atribuir aos valores morais uma maior importância do que aos valores materiais.

Nos últimos cinquenta anos tem-se verificado que os valores que mais pesam na sociedade do nosso tempo são os valores materiais - cada um é mais reconhecido e estimado e considerado quanto maior é a sua fortuna ou a manifestação exterior dessa mesma fortuna - tendo-se quase perdido o culto dos princípios morais comuns de respeito, verdade, correcção de procedimentos e sentido da dignidade própria - vence-se, para chegar à fortuna, à riqueza material, à custa de qualquer traficância. Este quadro não é favorável ao desenvolvimento do verdadeiro herói, ao desenvolvimento dos sentimentos profundos que o herói tem de cultivar; este quadro favorece que se construam heróis para consumo da opinião popular. Parece, por conseguinte, que é, cada vez mais, necessário estabelecer o confronto entre os valores que determinaram a espiritualidade dos heróis da Igreja e os valores que norteiam a vida moderna de forma a que, na vida militar, prevaleçam os primeiros, através do culto da verdade, da honra e do sentido da dignidade.

No documento Lições de deontologia militar (páginas 73-75)