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2. L EGALIDADE T RIBUTÁRIA : O PAPEL DA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO SUJEITO

2.2. Evolução do conteúdo da legalidade tributária

2.2.1 Legalidade e princípio democrático

Em primeiro lugar, a legalidade promove a democracia. A exigência de lei para a instituição da obrigação tributária contém a ideia democrática de que os cidadãos deliberarão sobre os tributos por meio de seus representantes. Na estruturação dos poderes estatais, a função de elaborar normas gerais e abstratas, definindo políticas públicas que considerem o cenário nacional, é conferida ao Poder Legislativo. Os órgãos que o compõem são formados por pessoas eleitas pelo povo, que atuam como representantes de seus interesses, e as leis são o resultado de um processo deliberativo travado entre eles.

Esse quadro democrático é uma exigência do Estado de Direito, já que se afirma que os direitos fundamentais só obtêm plena realização e proteção em um regime

                                                                                                                         

81 BARTHOLINI, Salvatore. Il principio di legalità dei tributi in materia di imposte. Padova: CEDAM,

1957. p. 49-52.

democrático.83 De um lado, a legalidade limita o exercício do poder; de outro lado, ela o legitima.

A exigência de lei para a criação de obrigações e para a restrição de direitos é uma das formas pela qual os particulares conseguem limitar o poder do Estado. Nesse contexto, é importante que as questões que interfiram na propriedade e na liberdade do indivíduo sejam discutidas e decididas em sede política, na qual os interesses privados têm mais força, porque defendidos por seus representantes.

O elemento democrático foi introduzido não apenas para travar o poder, mas também para legitimá-lo.84 É necessário que algum dos poderes estatais faça escolhas dentre as inúmeras alternativas decorrentes da multiplicidade de valores existentes na sociedade e das diferentes formas de realizá-los. O Poder Legislativo é a esfera adequada para o exercício dessa função, porque os mecanismos públicos de discussão e de votação permitem obter a participação de todos na escolha de uma solução para os conflitos de interesses e de finalidades aptas à sua promoção. Por meio do debate promovido no Poder Legislativo, pode-se respeitar e levar em consideração essa pluralidade de valores e de alternativas para a sua concretização.85

Nesse sentido, JEREMY WALDRON ressalta a importância do processo legislativo tendo em vista seu caráter deliberativo, distinto dos demais processos estatais por promover o debate de um assunto sob os mais variados pontos de vista. Assim, o processo legislativo é mercado por pluralidade, discordância e uma estrutura de atuação coletiva que promove a diversidade.86

Daí se afirmar que, em um Estado Democrático de Direito, o indivíduo não tem somente liberdade frente ao Estado, para que este não interfira indevidamente na esfera

                                                                                                                         

83 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra:

Coimbra Editora, 2004. p. 36-37.

84 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2010. p. 97-100. 85 ÁVILA, Humberto. “‘Neoconstitucionalismo’: entre a ‘Ciência do Direito’ e o ‘Direito da Ciência’”. In: Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 17, jan./mar.,

2009. p. 16-17. Disponível em: http://www.direitodoestado.com.br/rede.asp. Acesso em: 06/07/2013.

privada, mas também tem liberdade no Estado, ou seja, de participar no exercício do poder (de forma a legitimá-lo).87

Note-se que a dignidade da pessoa humana atua no mesmo sentido, limitando a intervenção estatal na liberdade individual por meio de duas determinações. A primeira diz respeito ao limite da restrição. A pessoa só poderá ser objeto de imposições estatais que afetem o seu direito de autodeterminação quando isso for indispensável à promoção de outros direitos igualmente fundamentais. Nesse sentido, a dignidade da pessoa humana e o direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade conferem aos cidadãos do Estado de Direito, conforme lição de JORGE REIS NOVAIS, uma pretensão jurídico- constitucionalmente protegida de não terem a sua liberdade individual negativamente afetada, a não ser quando tal seja estrita e impreterivelmente exigido pela promoção, por parte dos poderes públicos, de outros valores igualmente dignos de proteção jurídica.88 A segunda diz respeito à forma da restrição. Assim, quando a pessoa tiver a sua esfera de liberdade afetada justificadamente, a dignidade humana exige, pelo menos, que em tais circunstâncias seja dada ao indivíduo a possibilidade de participar em condições de liberdade e igualdade na formação da vontade democrática.89

A exigência de autoimposição como conteúdo da legalidade não pode funcionar para transformar a vontade do indivíduo em uma forma de soberania extralegislativa. Isso porque a manifestação de vontade do particular, isoladamente considerada, pode ficar sujeita ao arbítrio administrativo,90 bem como pode contrariar os valores escolhidos pela sociedade como um todo. Por isso, a Administração Pública não deve buscar a satisfação dos interesses fiscais diretamente por meio de acordo com os representados.

Discorda-se, portanto, daqueles que sustentam que a afetação dos direitos do cidadão será menos desvantajosa ao particular se este puder negociar com a Administração, ao invés de sofrer a limitação por meio de lei.91 Muito pelo contrário, a

                                                                                                                         

87 STERN, Klaus. Derecho del Estado de la Republica Federal Alemana. Tradução parcial do Tomo I por

Javier Pérez Royo e Pedro Cruz Villalón. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1987. p. 238.

88 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. p. 57. 89 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. p. 57-58. 90 BARTHOLINI, Salvatore. Il principio di legalità dei tributi in materia di imposte. p. 95.

91 CASALTA NABAIS, José. Contratos fiscais (reflexões acerca da sua admissibilidade). Coimbra: Coimbra

legalidade, sob a perspectiva do princípio democrático, legitima as restrições a direitos fundamentais e previne a sua limitação excessiva. Nesse sentido, KLAUS TIPKE fala em faceta material-estatal da justiça democraticamente legitimada.92

A legalidade garante o princípio democrático, limitando e legitimando o exercício do poder estatal.