• Nenhum resultado encontrado

2. L EGALIDADE T RIBUTÁRIA : O PAPEL DA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE DO SUJEITO

2.1. Origens históricas da legalidade tributária

 

As origens da legalidade – aplicada especificamente à esfera tributária – costumam ser associadas à Magna Charta, de 1215.66 Mesmo antes desse momento, contudo, já havia uma ligação entre taxation e representation.67

VICTOR UCKMAR e LUÍS EDUARDO SCHOUERI apresentam diversos exemplos em que a contribuição para as despesas públicas dependia do consentimento daqueles que estavam sujeitos ao gravame. Em 1179, por exemplo, o Concílio de Latrão proibiu que os

                                                                                                                         

66 ROTHMANN, Gerd. “O princípio da legalidade tributária”. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, n. 8. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972. p. 65-82 (especialmente p. 68-69). 67 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Contribuição à investigação das origens do princípio da legalidade em

matéria tributária”. In: VELLOSO, Carlos; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antônio do (Coord.). Princípios

constitucionais fundamentais – estudos em homenagem ao Prof. Ives Gandra da Silva Martins. São Paulo:

bispos tributassem o clero sem o seu consenso.68 Em 1188, o primeiro imposto sobre o patrimônio mobiliário foi cobrado na Inglaterra. Tal tributo foi aprovado pelo Conselho Nacional do Rei e o seu procedimento de cobrança foi anuído pelo jury of neighbours.69

Assim, mesmo antes da Magna Charta, já era possível perceber uma regra consuetudinariamente acolhida de que os tributos não poderiam ser cobrados sem que tivessem sido aprovados pelo povo ou por seus representantes.70 Quando João Sem Terra tentou abandonar essa prática, os barões – principalmente por causa da gravidade e da injustiça das imposições – rebelaram-se e exigiram determinadas concessões para tutelar os seus direitos.71 Essa resistência culminou com a Magna Charta em 1215.72 Foi então positivada a previsão de que nenhum tributo ou auxílio poderia ser imposto no Reino sem o consentimento de seu Conselho Comum, a não ser em casos excepcionais – para resgatar a pessoa do Rei, para tornar seu filho mais velho cavaleiro e para casar a sua filha mais velha uma vez. É interessante notar que, mesmo excepcionais, as exigências feitas nesses casos deveriam ser razoáveis.73

Daí se afirmar que, em matéria tributária, “a legalidade é anterior mesmo ao Estado de Direito”.74 Aliás, o princípio da legalidade tributária “não deixou de ser reconhecido, mesmo em certas formas políticas de organização da sociedade, que não se inspiraram nos

                                                                                                                         

68 No original: “A poco a poco si ebbe la trasformazione del consenso da individuale a colletivo: così si ha

notizia che nel 1179 il Consiglio laterano proibí ai vescovi di tassare il loro clero ‘without their consent’ manifestato dagli arcidiaconi” (UCKMAR, Victor. Principi comuni di Diritto Costituzionale Tributario. 2. ed. Padova: CEDAM, 1999. p. 10).

69 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Tributação e liberdade”. In: PIRES, Adilson Rodrigues; TORRES, Heleno

Taveira (org.). Princípios de direito financeiro e tributário – Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 431-471 (especialmente p. 444).

70 XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. São Paulo: Editora Revista

dos Tribunais, 1978. p. 6-7.

71 UCKMAR, Victor. Principi comuni di Diritto Costituzionale Tributario. p. 13.

72 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Contribuição à investigação das origens do princípio da legalidade em

matéria tributária”, p. 715. O autor observa, em outra obra, que é comum a referência à Magna Carta de 1215, embora aquele documento não tenha recebido tal denominação. Segundo ele, a expressão “Magna Carta” surgiu apenas em documento assinado pelo Rei Henrique, em 1225 (SCHOUERI, Luís Eduardo.

Direito tributário. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 282). Sacha Calmon Navarro Coêlho alerta ao fato de

que a Magna Carta não passou de um pacto de elites e foi escrita em latim para que a população não pudesse invocá-la em sua defesa (COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Comentários à Constituição de 1988: sistema

tributário. 6. ed. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 280).

73 Artigo 12: “No ‘scutage’ or ‘aid’ may be levied in our kingdom without its general consent, unless it is for

the ransom of our person, to make our eldest son a knight, and (once) to marry our eldest daughter. For these purposes only a reasonable 'aid' may be levied”. Disponível em: http://www.bl.uk/treasures/magnacarta/translation/mc_trans.html. Acesso em: 22.04.2012.

74 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Contribuição à investigação das origens do princípio da legalidade em

cânones do Estado de Direito”.75 Conforme aponta LUÍS EDUARDO SCHOUERI, até em regimes ditatoriais, preservou-se “o princípio de que a cobrança de um tributo é condicionada à concordância prévia dos contribuintes, diretamente ou por meio de seus representantes”.76

Cinco séculos mais tarde, em 1789, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrou o direito de os cidadãos verificarem, por si ou por seus representantes, a necessidade da contribuição pública, bem como de a consentirem livremente, observando seu emprego e fixando as formas de repartição, coleta, cobrança e duração.77

Em 1819, a Suprema Corte dos Estados Unidos declarou a inconstitucionalidade de um tributo estadual sobre um banco federal, ao argumento de que quando os representantes de um estado tributam operações do governo federal, eles criam uma obrigação para pessoas que não são os seus representados. A decisão partiu da premissa de que a única defesa contra uma tributação errônea e opressiva encontra-se na própria estrutura governamental em que os representantes impõem tributos aos seus representados.78

O conteúdo original da legalidade tributária é, portanto, o de exigência de autoimposição.79 Os particulares reconheciam a necessidade de financiarem o Estado, mas queriam impedir que o Poder Público interferisse diretamente sobre a sua propriedade, preferindo, eles mesmos, disporem de seus bens. Essa exigência de autoimposição implicava escolher representantes, que deliberariam quais os tributos seriam pagos pelos particulares, e em que medida.80 Tudo isso decorre da noção de propriedade como condição da liberdade humana, que garante autonomia para a satisfação dos próprios interesses, assegurando dignidade à pessoa. Como a intrusão do Poder Público na

                                                                                                                         

75 XAVIER, Alberto. Os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação. p. 5-6.

76 SCHOUERI, Luís Eduardo. “Contribuição à investigação das origens do princípio da legalidade em

matéria tributária”, p. 718.

77 Fonte: Biblioteca virtual de Direitos Humanos da USP. Disponível em: www.direitoshumanos.usp.br.

Acesso em 10 de julho de 2012.

78 McCulloch v. State of Maryland, 17 U.S. 316, 427-37, 4 L. Ed. 579 (1819).

79 Sacha Calmon Navarro Coêlho destaca que o princípio da legalidade da tributação incorporou, com o

passar do tempo, outras conotações: COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário

brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 178.

80 COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. p. 176; BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7. ed. Atualizações de DERZI, Misabel Abreu Machado.

propriedade acarreta uma restrição da liberdade, o particular exige poder consentir com os tributos, ao invés de estes lhe serem unilateralmente impostos.81