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LEITURA CORPORIFICADA: UMA EXPERIÊNCIA TRANSFORMADORA

No documento PRÁTICAS SENSÍVEIS DE MOVIMENTO NA DANÇA (páginas 193-200)

Matias Santiago Oliveira Luz Júnior (UFBA)

Feche os olhos. Respire profundamente. Procure em sua memória aquele momento o qual você considera ser o primeiro da sua vida em que dançou. Continue respirando profundamente enquanto busca os detalhes desta lembrança. Procure lembrar onde você está. Como é este lugar? Percebe o entorno deste lugar? Qual região, estado, país? Você está dançando com alguém? Em grupo? Sozinho? Continue respirando profundamente e procure guardar esta lembrança e seus detalhes. Abra os olhos. Continue esta leitura, e enquanto lê, procure estar atento ao que ocorre no seu corpo, sensações, outras lembranças que surgem, emoções e desejos.

Este artigo pretende discutir as estratégias desenvolvidas por mim como docente no curso de graduação em dança, bem como doutorando do Programa de pós-graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que objetivaram a repercussão de questões conceituais do campo da dança para o corpo. Como elaborar procedimentos que promovam no corpo a reflexão sobre aspectos da dança como área de conhecimento? A partir desta discussão, pretendo relatar experiências que colaboraram para a construção de entendimentos sobre práticas educativas em dança onde o binômio teoria/prática não seja mais um pressuposto dado como desafio pedagógico, e talvez de maneira utópica, deixe de ser um confronto para quem ensina dança.

Devo esclarecer que meu interesse por tal discussão se deu por uma provocação feita no componente curricular Laboratório em Dança, do doutorado, ministrado pela Profa. Dra. Adriana Bittencourt, na qual eu e meus colegas fomos estimulados a elaborar um laboratório prático que discutisse nossos sujeitos da pesquisa. A ideia era já pensar como poderíamos abordar as questões emergidas do corpo, no próprio corpo, propondo experiências que as discutissem, tratando-as exatamente de onde surgem, e de onde partem para o mundo.

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Minha proposição de laboratório pautou-se sobre o primeiro momento em que cada sujeito identifica o ato de dançar, como descrito no início deste artigo, e a análise sobre aspectos constitutivos desse instante. Essa ação pretendeu realizar uma provocação reflexiva que revelasse a possibilidade de quebra das sutis membranas construídas historicamente entre corpo, emoção e pensamento. Considero tal laboratório como uma estratégia cartográfica64 que busca pistas sobre o problema apresentado no componente, e que já se relacionava com meus interesses ligados à docência com dança.

Tendo apresentado minha proposta de laboratório prático e recolhido as considerações de colegas e da professora, passei a articular os resultados encontrados com minha experiência como professor substituto do curso de graduação em Dança, atividade que vinha desenvolvendo há pelo menos um ano e meio. Nesse espaço acadêmico já vinha realizando procedimentos que, coincidentemente, buscavam promover vivências no corpo a partir de aspectos conceituais, denominados por mim como leituras corporificadas65, os quais pretendo descrever no decorrer deste artigo.

Intitulado de leitura corporificada, este procedimento nasce da tentativa de resolução de uma questão predominante entre os alunos que ingressam na universidade, e mais especificadamente na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na relação existente entre teoria e prática. Para Larrosa (2016), a experiência seria o fenômeno pelo qual o sujeito, aquele que por ela é atravessado, estabelece novas relações consigo e com o mundo, ressignificando sua existência a partir do que vive com paixão, ou seja, do que sente enquanto vive a experiência. Num ímpeto emancipatório, o autor acredita que “para explorar as possibilidades de um pensamento da educação elaborado a partir da experiência, é preciso fazer, me parece, duas coisas: reivindicar a experiência e fazer soar de outro modo a palavra experiência” (LARROSA,2016, p.38).

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Trago aqui a perspectiva pautada nos estudos de Deleuze & Guattari (1995), bem como sua atualização encontrada na pesquisa de Virgínia Kastrup (2007).

65 As leituras são adjetivadas com o termo “corporificada” pela aproximação com o conceito de embodyment que considera a junção corpo/mente na concepção de EVAN, THOMPSON e VARELA (1993).

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Quero situar a reivindicação da experiência e relatar como se deu o trato com a mesma nas aulas ministradas por mim como professor substituto da Escola de Dança da UFBA, para que, de algum modo, possa aprofundar na investigação. Considerar a atenção, a paixão e o desejo quando algo nos atravessa, seria então a premissa para toda e qualquer experiência proposta, seja onde for e para qualquer fim. Portanto, para uma maior explanação e aprofundamento da questão, faz-se necessário uma apresentação da estrutura curricular da Escola de Dança para que possamos compreender melhor os pressupostos que justificam e constituem tal procedimento, sua aplicação e seus possíveis resultados.

Em sua proposta político-pedagógica para os cursos de graduação, a Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia apresenta os componentes básicos/específicos numa estrutura dividida em três módulos: Estudos do corpo, Estudos dos processos criativos e Estudos crítico-analíticos66. Cada módulo é dividido em quatro componentes obrigatórios no decorrer do curso, relacionados diretamente com o pressuposto da dança que considera corpo e mente como dimensões de um sistema contínuo, na experiência e na expressão humanas e na compreensão de currículo como itinerário pedagógico processual na perspectiva cidadã, artística, educativa e profissional.

Tal visão sistêmica do processo educativo para a formação no campo da dança apresentado pela Escola de Dança da UFBA dialoga, na perspectiva da elaboração de procedimentos educativos, com a noção discutida pelo linguista George Lakoff e o filósofo Mark Johnson (2002) quando trazem à discussão um pensamento encarnado, ou corporificado. Esses autores, a partir do conceito de metáfora cognitiva, procuram explicar a cognição humana na compreensão do mundo, das coisas e da relação entre as coisas do mundo. As metáforas reforçam a ideia da percepção sensório-motora nos processos da cognição e de como as noções perceptivas colaboram para a geração de subjetividades.

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Em sua estrutura o currículo ainda apresenta componentes práticos divididos em laboratórios, componentes pedagógicos e do estágio supervisionado ligados à prática docente (Licenciatura) e finalmente os componentes teóricos práticos Método de Treinamento Individual, Estudos Monográficos sobre Tópicos em Dança, Prática Solística e Prática em Grupo (Bacharelado).

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Giordanni Souza (2017), estudioso da cognição, esclarece a construção do conceito de metáfora destes autores:

Metáforas aqui são abordadas pelos entendimentos apresentados por Lakoff e Johnson (1999), em seu livro “Philosophy in the Flesh: the embodied mind and its challenge

to the Western thought”, no qual eles nos trazem que as

metáforas nos permitem a formação de imagens mentais a partir do domínio sensório-motor para serem usadas pelo domínio da experiência subjetiva. Um exemplo nesse contexto é dizer ao aluno que mova sua pelve para o lado esquerdo e se conecte com o seu peso e seu deslocamento no espaço, onde “conecte-se com seu peso” é o domínio subjetivo da experiência e “desloque a bacia para a esquerda” pertence ao domínio sensório-motor. Isso possibilita ao movente a experienciar o movimento não mais pelo viés de busca por realizar uma cópia de uma forma dada, mas a partir de seus próprios referenciais perceptivos, criando suas próprias metáforas corporais, a partir do “como” e do “o que” do movimento. Não existe aqui um certo ou errado, mas uma investigação da própria experiência de mover possibilitando a construção do conhecimento sobre si. (SOUZA, 2017, p. 87) Na perspectiva de possibilitar aos alunos de graduação a criação de suas próprias metáforas corporais e que as mesmas gerassem subjetividades a partir da leitura e discussão de textos oferecidos durante o semestre, foi elaborado por mim a leitura corporificada, um procedimento dividido em três etapas: 1- A experiência da leitura, 2 – A reflexão sobre a experiência da leitura, 3 – A leitura corporificada.

Inicialmente, considerando a leitura como uma ação do corpo, propomos num período de uma semana a leitura de um determinado texto, solicitando aos alunos que sejam feitos apontamentos referentes às dúvidas, questões e entendimentos. Já em sala de aula, numa roda de discussão, passamos a uma reflexão sobre a leitura realizada onde os alunos tiveram a oportunidade de trazer as suas percepções a partir da ação da leitura não somente dos argumentos apresentados no texto, mais também das percepções ocorridas no corpo durante a experiência da leitura.

É importante que, para a realização do procedimento, já haja no consenso do grupo um entendimento expandido sobre o conceito de

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experiência e o saber da experiência. Não somente para a leitura, mas para toda e qualquer atividade proposta, deve-se estabelecer junto ao grupo a consciência de que ao experienciarmos algo, estamos simultaneamente dando sentido à vida, construindo assim singularidades e subjetividades. Portanto, faz-se necessário um momento de atenção para com a experiência, na perspectiva de possíveis atravessamentos que possam ocorrer no corpo.

A terceira e última etapa do procedimento é a própria leitura corporificada, onde solicito aos alunos, após a reflexão feita sobre os aspectos que emergiram da leitura, que passassem a um processo de repercussão destes aspectos no corpo, respeitando a maneira como cada sujeito responde a este estímulo, e identificando como esteticamente cada pessoa elabora e organiza seu movimento, sua dança. O convite resume-se a levar-nos a dançar aquilo que nos atravessou enquanto líamos, enquanto refletíamos.

Agora pare de ler por alguns minutos, ou se preferir, interrompa aqui a leitura e só retome amanhã. Procure neste ínterim de “descanso” refletir sobre o que foi até então esta sua experiência lendo este artigo. Quais sensações, ideias, emoções, indagações, afirmações afetaram de alguma maneira você. Como seu corpo responde quando você (re)ativa os saberes desta experiência? Procure mover, promova liberdade suficiente para que você dance e enquanto dança, procure perceber as relações possíveis que seus movimentos possuem para com tudo que leu.

A leitura corporificada possibilita uma aproximação entre aspectos conceituais e o corpo. É uma tentativa de estreitar a relação do conceito, da palavra e o corpo, entendendo que não somente a leitura, mas toda e qualquer ação corpórea pode ser uma experiência, e sendo experiência, gera saber. A pesquisadora Lenira Rengel, em sua tese de doutorado, nos esclarece sobre a relação existente entre palavra e corpo:

A membrana entre corpo e palavra tem sido tecida por uma maneira de proceder do corpo que é metafórica, e não nos damos conta disso. Sabe-se hoje, a partir de estudos minuciosos, feitos desde o início dos anos 80 (vide bibliografia) que não há comunicação que prescinda das metáforas,

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linguísticas ou gestuais. São representações construídas (como o são os protótipos, as categorias, os conceitos) com o próprio design (do corpo) e não há como deixar de utilizá-las (como veremos à larga). Por isso, coatuam constantemente em qualquer cultura, mesmo que de modos diversos. (RENGEL, 2007, p. 75)

Entendo a leitura corporificada como um procedimento onde as metáforas surgidas em cada etapa propiciam uma maior aproximação com as questões de que trata o texto apresentado. Na prática, sentido, movimento e subjetividade funcionam como elementos de uma operação geradora de criticidade e conhecimento, além de ser uma poderosa estratégia de estímulo à leitura, haja vista que é comum nas turmas iniciais de graduação uma certa dificuldade na interpretação e reflexão sobre textos, fruto da precariedade existente nos ambientes formais de educação.

Nos dois anos em que atuei como professor substituto, utilizei a leitura corporificada junto a diversas turmas da graduação em dança. Dentre os componentes que compõem o curso, destaco o optativo Corpo e Movimento, Estudos do Corpo I e Prática da Dança. Neste período pude perceber, através dos relatos de muitos alunos, a potência existente na experiência corpórea como procedimento para a discussão de aspectos conceituais existentes num texto.

A possibilidade de “corporificação” de questões que emergiam no curso ampliavam as percepções e os entendimentos sobre diversos aspectos, não só inerentes ao campo da dança, mas de outros campos, haja vista que das turmas as quais lecionei, muitas eram compostas de forma interdisciplinar, com alunos dos Bacharelados interdisciplinares67 e dos cursos de Enfermagem, História, Teatro, dentre outros. Era comum receber relatos, sobretudo dos alunos de outros cursos, informando o quão organicamente surgia a compreensão sobre diversos conteúdos apresentados no semestre, bem como foi transformador a percepção do corpo imbricado no processo de aprendizagem proposto pelas leituras corporificadas. Em alguns casos, foi

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Cursos de duração plena oferecidos pela Universidade Federal da Bahia pautados na formação geral e específica nas áreas de Artes, Ciência e tecnologia, Humanidades e Saúde.

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possível levantar criticamente a desconsideração do corpo, ou uma equivocada noção de sua participação neste processo, em outras áreas de conhecimento.

Relato aqui uma das experiências de aplicação da leitura corporificada na turma de graduação em Dança noturno do componente Estudos do Corpo I, que lecionei no semestre 2019.1. Nesta ocasião, o entendimento sobre a influência da educação somática no campo da dança foi considerado como conteúdo do semestre, a partir da leitura e discussão do texto da Profa. Dra. Eloísa Domenici68 “O encontro entre dança e educação somática como uma interface de questionamento epistemológico sobre as teorias do corpo” (2010).

No texto, a autora procura didaticamente identificar pontos de intersecção entre arte e ciência, dança, educação somática e as ciências cognitivas, considerando tal contexto como gerador de novos direcionamentos de investigação e produção artística em dança, para além da visão mecanicista do treinamento corporal tradicional, bastante reconhecida pela maioria da turma em suas experiências anteriores à academia, nas escolas e grupos de dança nos quais faziam ou fizeram parte. O texto foi disponibilizado à turma para que todos pudessem lê-lo, com uma questão lançada por mim: O que há de influência da educação somática na sua dança?

Realizada a leitura, na semana subsequente, foi aberta uma discussão na qual os alunos relacionavam os argumentos levantados no texto com uma questão. Em suas falas já era possível perceber rastros dos inúmeros procedimentos metafóricos que o ato de ler já havia acionado em seus corpos. Muitos deles já traziam aspectos da influência da educação somática identificados em suas danças, como as lógicas de isolamento de partes do corpo (praticantes do jazz e da dança afro), o estado de liberdade de expressão e a improvisação como pressupostos para a criação (praticantes de danças contemporâneas) exemplificando-os com movimentos do próprio corpo.

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Professora do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, artista da dança e pesquisadora de estudos do corpo e estudos da mestiçagem nas artes cênicas.

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Concluindo o trabalho de reflexão sobre o texto, foi realizada a terceira etapa do procedimento onde, a partir da repercussão das reflexões, os grupos, divididos em dois subgrupos, partiram para uma proposição criativa dançante, dando liberdade para a expressão dos corpos numa composição livre de dança. Estes dois grupos apresentaram composições criadas entre eles, na perspectiva de ampliação da reflexão realizada agora nos corpos que se moviam tendo suas composições de movimento cruzadas no espaço. Após a apresentação destas composições, muitos relataram a singularidade da experiência de “dançar as reflexões geradas da leitura” numa aproximação das ações ler, refletir e dançar como constitutivas do processo de geração de conhecimentos sobre determinado tema ou conteúdo.

Figura 1- Composição 1 sobre leitura de texto.

Fonte: Arquivo do autor (2019).

Figura 2 – Desenvolvimento da Composição 1 sobre leitura de texto.

No documento PRÁTICAS SENSÍVEIS DE MOVIMENTO NA DANÇA (páginas 193-200)