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É POSSÍVEL UM ENSINO-APRENDIZAGEM EM DANÇA SEM GÊNERO E SEM SEXUALIDADE?

No documento PRÁTICAS SENSÍVEIS DE MOVIMENTO NA DANÇA (páginas 159-176)

PRECISAMOS INICIAR ESTA DISCUSSÃO:

É POSSÍVEL UM ENSINO-APRENDIZAGEM EM DANÇA SEM GÊNERO E SEM SEXUALIDADE?

Leonardo dos Santos Silva (UFBA) Thiago da Silva Santana (UFBA)

Iniciando o papo: o corpo é gênero e sexualidade

Os recentes estudos sobre gênero e sexualidade (BUTLER, 2019; FOUCAULT, 2019) nos apresentam questões e problemáticas em torno do ensino-aprendizagem30 no contexto educativo-artístico em Dança. Este trabalho, a partir das pesquisas de mestrado desenvolvidas por Silva (2019) e Santana (2020), conversam e compreendem a importância da valorização e respeito às diferenças/semelhanças de ações corporais que constituem os corpos e suas identidades de gênero e das suas expressões de sexualidades.

Dentro desta análise, propomos como denominação a utilização das palavras diferença/semelhança, juntas. Essa junção pode contribuir para novas perspectivas para o excesso de afirmação de, apenas, diferença e reconhecer, a partir da mesma, as nossas semelhanças que se entrelaçam em ações

corporais. Por essa razão, propomos a denominação a essas diferenças/semelhanças de corpos como corpos múltiplos (SANTANA, 2020),

por serem tão plurais e únicos na sua totalidade.

A primeira observação se refere à questão central do trabalho, na qual propomos questionar se é possível um ensino-aprendizagem em dança sem gênero e sem sexualidade. A indagação permite-nos pensar sobre os processos cognitivos imbricados nos corpos.

No Brasil contemporâneo existem alguns equívocos quando se trata dos termos gênero e sexualidades. Por serem conceitos que trabalham em paralelo, tal implicação fornece conflitos de entendimento e, por isso, tornam-se

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Ensino-aprendizagem é posto aqui a partir da perspectiva de Paulo Freire. O mesmo foi um educador e filósofo brasileiro que contribuiu e contribui a partir das suas pesquisas para ações educativas com possíveis proposições emancipatórias em processos de autonomia aos estudantes.

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indispensáveis outras e novas abordagens educativas. Gênero e Sexualidade são conceitos que andam juntos, especialmente nas sociedades em que a heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade estão/são instaladas, mas que devem ser entendidos nas suas especificidades e particularidades. Heterossexualidade compulsória é uma norma que estabelece que todas as pessoas só podem ter relacionamentos afetivos-sexuais numa vertente heterossexual, ou seja, uma relação entre pessoas de gêneros diferentes, baseando-se em aspectos restritivos, especialmente com intento da reprodução. Deste modo, a heterossexualidade compulsória “se expressa frequentemente de forma indireta, por exemplo, por meio da disseminação escolar, mas também midiática apenas na proliferação de imagens de casais heterossexuais” (MISKOLCI, 2016, p. 46). A heteronormatividade, em complemento, estabelece que, mesmo que as pessoas saiam da lógica heterossexual, elas devem ter comportamentos e ações próximas ou iguais ao que se espera dos heterossexuais, como virilidade, macheza, violência para os homens, e graciosidade e afetividade para as mulheres. Assim, torna-se

uma ordem social do presente fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero. Em outras palavras [...] nos auxiliam a compreender a hegemonia cultural hétero em diferentes dimensões (MISKOLCI, 2016, p. 46-47).

Tais estratégias de regulação dos corpos são criticadas e ressignificadas nos estudos sobre gênero e sexualidades, principalmente quando expandem as discussões para além de uma construção sociocultural em códigos binários: homem x mulher; corpo x mente; heterossexual x homossexual.

As pesquisas em gênero se estabeleceram, pelo viés das lutas feministas, sobre o foco das diferenças sociais, culturais e históricas entre homens e mulheres. Sem prejuízo dessa problematização, as conquistas epistêmicas ampliaram tais discussões quando das possibilidades de se quebrar as barreiras da dualidade. Para tanto, as questões das

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travestilidades31, transsexualidades32 e transgeneridades33 são inerentes aos estudos sobre, de e com gênero, por configurarem aquilo que chamamos de identidade de gênero, ou seja, a “identificação de algum para com algum gênero, que pode ou não concordar com o gênero que lhe foi atribuído quando de seu nascimento” (JESUS, 2015, p. 95). A importância dessa abrangência nas possibilidades de ser corpo (pessoa) é que as instâncias de construção das identidades são revisitadas, criando caminhos outros para pensarmos o convívio em sociedade. A identidade de gênero não hegemônica torna-se uma localização política, social, cultural e estética, e são essas outras existências não binárias que permitem às sociedades serem criadas e fortalecidas enquanto suas diferenças, e assim como as ações humanas, estão passíveis de transformação e reorganização. Enquanto o conceito de gênero e as identidades de gênero estão em contínuas negociações discursivas sobre ser, pertencer, as expressões de sexualidades estão, principalmente, em disputas de narrativas do desejo e do afeto.

O desejo é diverso e se comporta de maneiras diferentes para cada pessoa, seja para alimentação, consumo, espaço, enfim. Em relação aos desejos de afeto e de ato sexual, não seria contrário. As sexualidades estão no campo do desejo enquanto afetividade e, geralmente, de relação sexual. Nas sociedades que respeitam e regulamentam somente desejos sexuais por pessoas de gêneros diferentes (neste caso, heterossexuais e cis gêneros34), aqueles que não se enquadram nessa expectativa estão localizados na perspectiva do/a anormal. Dentro do que chamamos de heteronormatividade, é estabelecido um binarismo das sexualidades “aceitáveis”. A dicotomia entre heterossexualidade e homossexualidade é predominante nas discussões sobre

31“Pessoa que vivencia papéis de gênero feminino, mas não se reconhece como homem ou mulher, entendendo-se como integrante de um terceiro gênero ou de um não-gênero. Referir- se a ela sempre no feminino, o artigo ‘a’ é a forma respeitosa de tratamento” (JESUS, 2015, p. 98).

32 “Termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi atribuído quando do seu nascimento. (...) Sempre se refira à pessoa como mulher transexual ou homem transexual, de acordo com o gênero com qual ela se identifica” (JESUS, 2015, p. 97).

33 “Conceito ‘guarda-chuva’ que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam, em graus diferentes, com comportamentos e/ou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado antes ou quando de seu nascimento” (JESUS, 2015, p. 95).

34 “Conceito ‘guarda-chuva’ que abrange pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi determinado antes ou quando de seu nascimento” (JESUS, 2015, p. 95).

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sexualidades, especialmente pelo sistema religioso, que é mais forte no Brasil, mas enfraquece e, consequentemente, invisibiliza outras possibilidades de exercer as expressões sexuais. A leitura de um senso comum cria a ideia de que existem “apenas” três probabilidades: o heterossexual, o gay e a lésbica - é importante separar gay e lésbica de uma generalização de ser homossexual, pois ainda há o apagamento das mulheres lésbicas no protagonismo LGBTQIA+35 no Brasil: nomear é ato político. É preciso, portanto, inscrições para as outras existências dos desejos dos corpos, para uma ampliação do nosso vocabulário e repertório de vidas, inclusive quando há discriminação, e assim apagamentos históricos de bissexuais, assexuais e outras expressões de sexualidades36.

As sexualidades são, assim como o gênero, moldadas por convenções sociais que criam a partir do aparato do Estado, como a medicina, o judiciário, a educação, regras e comportamentos esperados para todxs37. Ir de encontro a essas normas é potencializar as discussões e práticas de cidadania e de direitos, mas o trabalho demanda tempo, energia e, por tal, perdem-se vidas no meio do caminho por homolesbobitransfobia (JESUS, 2015)38. Numa linearidade onde sexo biológico, gênero, sexualidade são condições definitivas, normas são acionadas para estabelecer os trajetos que tal corpo deverá seguir, criando aparatos de regulação sociocultural, como as noções de normatização e normalização (FOUCAULT, 1999). A normatização é a criação dessas normas, ou seja, “é o que pode tanto se aplicar a um corpo que se quer disciplinar quanto uma população que se quer regulamentar” (FOUCAULT, 1999, p. 302), como, por exemplo, quando se fixa a ideia de que rosa é para meninas e azul para meninos; dança para meninas e futebol para meninos;

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A sigla LGBTQIA+ se refere às pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Queer, Intersexuais, Assexuais e mais.

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Há inúmeras expressões de sexualidades nas mais diferentes culturas, sem catalogação. Os mais expressivos na sociedade brasileira são a homossexualidade, a heterossexualidade e a bissexualidade. Bissexual é uma pessoa que se atrai afetivossexualmente por pessoas dos gêneros masculinos e femininos. Assexual é aquela pessoa que “não sente atração sexual por pessoas de qualquer gênero, mas pode sentir atração afetiva por pessoas de algum gênero” (JESUS, 2015, p. 97).

37 Ao decorrer da leitura deste texto, as vogais “A” e “O” na atribuição de sujeito de gênero masculino e/ou feminino estarão substituídos por “X” (exemplo: outrxs; todxs).

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Termo utilizado para caracterizar comportamentos com antipatia, desprezo, preconceito por pessoas LGBTQIA+. Pode ser chamado também de LGBTQIA+fobia. No Brasil tal ação, desde 2019, é considerada crime.

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atividade sexual precoce para meninos e para meninas o mais tarde e, se possível, para perda da virgindade no casamento, etc. Nesse sentido, a normalização serve para fomentar, repassar essas regras e ditar formas de moldar esses corpos, no “movimento de trazer o outro para a norma no sentido de torná-lo normal [...] significando deslocá-lo da anormalidade para colocá-lo no campo do normal” (RATTO, 2007, p. 147) tal como: pais estimulam que meninos criem atitude, determinação e força, e que meninas aprendam a ser responsivas, submissas, afetuosas e dependentes; que homens sejam os provedores do lar e as mulheres cuidadoras da casa e da família; que homens tenham o maior número de relações sexuais e que as mulheres tenham o mínimo e, se possível, apenas um parceiro sexual.

Com a necessidade de contrapor e de criar fissuras nas estratégias de regulamentação dos corpos, principalmente em códigos binários e imutáveis, que muitas ações socioculturais e políticas de enfrentamento foram criadas e fortalecidas. Em consonância com outras pautas de premente discussão, como as de raça e de classe social, gênero e sexualidades tomaram novos rumos ao se transformarem em movimento social articulado. Com isso, os caminhos políticos se intensificaram, promovendo debates, localizações em órgãos públicos, que busca(vam) resguardar direitos para pessoas em não conformidade com as normas instituídas. Esse movimento articulado, chamado de LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transsexuais, Transgêneros,

Queer, Intersexo, Assexuais e mais) surge como aporte teórico-prático para as

ações de militância e de ativismo nas esferas mais diversas da vida pública, inclusive em processos de ensino-aprendizagem. Foi a partir dessas lutas que foram conquistados, por exemplo, a retirada da homossexualidade como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o casamento igualitário, a adoção por pessoas de mesmo gênero, nome social, ambulatórios para processos transsexualizador, ou seja, muitos dos avanços atuais foram frutos de lutas intensas, especialmente a partir da Revolta de Stonewall, em 1969.

Dentro dessa construção e entendimento social de corpo, recaem modelos impostos pelas instituições (entendendo como lugares onde os corpos transitam, como, por exemplo, escolas, universidades, hospitais, igrejas, entre

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outros lugares) que disseminam falas/ações que pré-determinam o gênero, a sexualidade e, consequentemente, as ações corporais.

Rudolf Laban (1978) nos chama a atenção que nos corpos/movimentos são perceptíveis as ações corporais – como recorte para este trabalho destacamos as oito ações corporais básicas que são aguçadoras para outras derivações de ações corporais. Propomos para a ampliação do entendimento de ações corporais, para analisar, pensar as ações corporais viadas39 que estão nos corpos. Observa-se que no ensino-aprendizagem em dança coexistem hierarquias para a execução de ações corporais com características heteronormativas. Consequentemente, algumas ações derivadas (LABAN, 1978), aqui propostas as ações corporais viadas (SANTANA, 2020), são ações que, ao serem identificadas em corpos gays, ou seja, cisgêneros e transgêneros, são consideradas para muitxs pessoas como ações amplas, exageradas e irrelevantes no fazer, pensar dança. Assim, muitos corpos gays acabam inibindo estas ações e imitando ações consideradas normativas, com elaborações de movimento que aparenta ser (talvez) menos viado.

Por fim, os estudos cognitivos possibilitam a percepção da atuação dos

neurônios-espelho motores, neurônios que, de acordo com o neurocientista

Ramachandran (2014), proporcionam aos corpos a serem aptos a elaborar, transformar, produzir, reproduzir conhecimentos (ações corporais) a partir de dois princípios fundamentais: linguagem e imitação (RAMACHANDRAN, 2014). É premente repensar nestes processos cognitivos os atravessamentos dos corpos múltiplos nas elaborações das ações corporais. Poderíamos expandir a questão central deste trabalho para repensar e pensar se de fato existem

ações corporais que definem as identificações de gêneros e as sexualidades.

Tem? Quem define? E que ações corporais são essas? Uma das hipóteses deste trabalho é que as ações corporais (corpo), nomeadas como ações

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Expressão pejorativa utilizada no Brasil para desqualificar os corpos gays (cisgêneros e transgêneros). A partir deste momento os termos "viadas" ou "viadagens" (SANTANA, 2020) são usados como sinônimos e intentam contrapor-se ao modo pejorativo, significando o reconhecimento das diferenças/semelhanças de ações corporais que constituem os corpos múltiplos.

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corporais viadas (SANTANA, 2020), não escapam da violência estrutural da sociedade.

Ações corporais viadas: corpos múltiplos – compartilhamentos – diferenças/semelhanças

Já no século XIX, Rudolf Laban40 (1978), com a análise do movimento, contribuiu para os aspectos qualitativos e nos atentou, também, para compreensão do corpo como uma totalidade, em um processo conjunto, entre corpo e mente. “O pesquisador elaborou uma codificação, na qual propôs que, para o movimento acontecer, deve haver uma intenção para uma atitude expressiva (tanto intelectual, quanto física e emocional), um esforço ou intenção para (SANTANA, 2020, p. 37 e 38).

Para Laban (1978), os corpos e seus respectivos movimentos podem ser evidenciados nas ações corporais básicas, ações que cada corpo, a seu modo, faz. Nesta codificação as oito ações básicas podem ser sugeridas como aporte teórico-prático para a investigação individual e coletiva na dança. Se nos atentarmos para as oito ações corporais básicas (1- Torcer: Espaço flexível – Peso firme – Tempo sustentado; 2- Pressionar: Espaço direto – Peso firme – Tempo sustentado; 3- Chicotear: Espaço flexível – Peso firme – Tempo súbito; 4- Socar: Espaço direto – Peso firme – Tempo súbito; 5- Flutuar: Espaço flexível – Peso leve – Tempo sustentado; 6- Deslizar: Espaço direto – Peso leve – Tempo sustentado; 7- Sacudir: Espaço flexível – Peso leve – Tempo súbito; 8- Pontuar: Espaço direto – Peso leve – Tempo súbito (RENGEL, 2014) no ensino-aprendizagem em Dança, somos capazes de encontrar derivações no fazer/pensar a partir dos fatores que compõem o movimento.

Possível afirmar que em todxs os corpos podem ser constatados, mesmo com particularidades existentes, e também ocorrem em instâncias e contextos diferentes. De

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Rudolf Laban foi um dançarino, coreógrafo, teatrólogo, etc., considerado como o maior teórico da dança e como o "pai da dança-teatro".

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acordo com Laban todo e qualquer movimento é composto por fatores, sendo eles: Espaço: direto e/ou flexível; Tempo: rápido e/ou lento; Peso: leve e/ou firme; Fluência: livre e/ou contida (LABAN, 1978 apud RENGEL, 2014). Ressalta-se que nas ações básicas, o fator fluência não é condicionante na execução do movimento, pois qualquer que seja a qualidade da fluência no movimento, o mesmo já ocorre simultaneamente (SANTANA, 2019, p. 701).

As ações básicas são ações que atravessam todos os corpos, seja qual for o gênero ou sexualidade, como, por exemplo, gay, lésbica, trans, hétero e outrxs. Em um contínuo, Laban (1978), ao constatar as ações básicas, ações aguçadoras para o processo de autoconhecimento na Dança, enfatizou que a partir das oito ações básicas surgem as ações derivadas. Na vida, as ações

derivadas (como exemplo: Torcer e/ou Enroscar; Pressionar e/ou Empurrar;

Socar e/ou Bater; Pontuar e/ou Tocar; Sacudir e/ou Estremecer) são evidenciadas principalmente no cotidiano das pessoas e podem ser sugeridas como material nas ações cognitivas do corpo no ensino-aprendizagem em dança, embasados nas combinações das qualidades de esforços do movimento.

Constata-se que, dentro das ações derivadas, são evidenciados modos muito característicos de cada corpo. Além disso, dentro dessas camadas que compõem as diferenças/semelhanças de elaborações de ações corporais, pontuamos que os corpos também se diferenciam de localização, cultura, epistemologias, gêneros, sexualidades, etc.

Em virtude desse pensamento, muitos corpos LGBTQIA+ acabam por ser excluídos e violentados, ao ultrapassarem a linha abissal (SANTOS, 2018). Segundo o sociólogo Santos (2018)41, essas exclusões fazem parte do epistemicídio ocasionadas pelas ciências modernas eurocêntricas na imposição colonial de regulação social.

Compreender as exclusões abissais e não abissais na sociedade é relevante, pois elas acontecem nas danças, nas

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Boaventura de Sousa Santos é Doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale dos Estados Unidos.

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ações corporais que fazemos nas danças. O contexto de exclusão social, segundo o autor, é dividido em dois lados opostos. Em um lado não abissal seria o mundo da sociabilidade metropolitana, que exclui ou acredita não excluir por ter de algum modo a presença de uma minoria inserida no contexto. Por exemplo, ter um professor homossexual na escola, porém esse professor só é aceito e respeitado por estar possivelmente seguindo as regras ou limites que regem essa sociabilidade, ou seja, faz parte deste contexto, porém não tem voz ativa, ou melhor, não pode “ser muito gay”. Já o outro lado da linha, o lado abissal, se refere, por exemplo, quando o professor é negado ou violentado por ser homossexual. Neste momento ele sai do mundo metropolitano e cruza a linha abissal da sociabilidade colonial (SANTANA, 2020, p. 47).

Mas, por que esses corpos não normativos incomodam tanto outros corpos? Como explica Santana (2020), frisar o entendimento de corpo a partir da compreensão das diferenças/semelhanças de ações corporais é pertinente para perceber os atravessamentos que se dão nas relações com outrxs em um processo de compartilhamento mútuo. Nesta perspectiva, a ampliação da compreensão das ações corporais labanianas para pensar, repensar as derivações e consequentemente dentro destas derivações sugerem-se as ações corporais viadas, ações essas que são identificadas nos corpos múltiplos e, em muitos dos contextos, são engessadas, “[...] esse não se refere apenas ao movimento, mas compreendendo o corpo como um todo, em elaboração de falas, gestos, ações corporais, pensamentos” (SANTANA, 2020, p. 60).

As ações corporais viadas são elaborações corporais que conotam a homossexualidade e se referem à qualidade de um corpo que sente atração física, estética e emocional por outrx pessoa do mesmo gênero, como, por exemplo: homossexual cisgênero ou transgêneros, ou seja, corpos gays. Deste modo, essas ações corporais viadas são definidas como exageradas (para muitxs), amplas, com a fluência do movimento mais libertadas e que burlam a ideia de corpo cisgênero e heterossexual, sendo consideradas ações do erro. São ações corporais que, ao serem identificadas como viadagens ou viadas pelos opressores, perpassam por uma tentativa para o engessamento, isto é, invisibilização da sexualidade e respectivamente das suas ações corporais

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A compulsoriedade de ações corporais heteronormativas é pautada a partir de uma única lógica de gênero cis (homem x mulher) e sexualidade (heterossexual), modelos de ações corporais que pressupõem serem necessárias na constituição do corpo viado. Isso significa que pode talvez ser viado, mas com elaborações de ações corporais normativas. Subverter esta compreensão compulsória para o respeito das ações viadas, sem atribuição pejorativa ou como algo indesejado, errado se faz pertinente nos espaços de ensino-aprendizagem em Dança.

Em alguns espaços de ensino-aprendizagem em dança, essas ações

corporais viadas são invisibilizadas e inibidas. Se pararmos para pensar, todxs

nós temos, provavelmente, falas/ações estruturais extremamente LGBTQIA+fóbicas42. Consequentemente, muitas pessoas fazem reverberações, como, por exemplo: dance que nem homem (?); seja feminina

(?); homem não chora (?); mulher gosta de homem (?); homem tem pênis (?); mulher tem vagina (?). Devido a estas questões, muitos corpos se sujeitam a

essas violências para sobreviver, viver. As pessoas LGBTQIA+ no processo de identificação de gênero e de expressões de sexualidades acabam desenvolvendo ações corporais alinhadas com a normatividade, como alternativas para não sofrerem discriminação. Portanto, se posso dançar, cantar, atuar, ensinar, aprender de modo que se aproxime às características de uma pessoa cisgênero e heterossexual (entendida como padrão) para conseguir burlar os opressores, então são acionados os neurônios-espelho motores que imitam e/ou inibem (RAMACHANDRAN, 2014) as ações corporais

viadas.

No caso de neurônios-espelho motores, uma resposta é que pode haver circuitos inibitórios frontais que suprimem a imitação automática quando ela é inapropriada. Num delicioso paradoxo, essa necessidade de inibir ações indesejadas ou impulsivas talvez seja uma razão importante para a evolução do livre-arbítrio. Nosso lobo parietal inferior esquerdo evoca constantemente imagens vívidas de múltiplas opções para

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Termo utilizado para caracterizar comportamentos com antipatia, desprezo, preconceito. No

No documento PRÁTICAS SENSÍVEIS DE MOVIMENTO NA DANÇA (páginas 159-176)