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Leitura e escrita: habilidades ou práticas sociais? O que diz a teoria dos letramentos

CAPÍTULO 2 – O TRABALHO COM O EIXO DA ESCRITA: UM PANORAMA DO

2.1. Leitura e escrita: habilidades ou práticas sociais? O que diz a teoria dos letramentos

Para pensar um ensino-aprendizagem de escrita que valorize as práticas sociais dos alunos, é interessante recorrer ao conceito de letramentos que, como já elucidado, é

importante nesta pesquisa. Como aponta Kleiman (1995), tal conceito começou a ser usado entre os acadêmicos na busca por diferenciar estudos sobre o impacto social da escrita de estudos sobre a alfabetização, prática escolar esta que evidencia apenas as competências individuais de uso da escrita. No entanto, por volta da década de 1980, quando o termo surgiu no Brasil, foi ainda muito usado no mesmo sentido de alfabetização, o que de acordo com Rojo (2009) pode ser atribuído aos muitos sentidos da palavra literacy em inglês – letramento, alfabetização, alfabetismo -, da qual se originou. Segundo a autora, os termos alfabetismo e letramento foram utilizados nos textos, muitas vezes, de forma indiferente ou sinônima, sendo que alguns autores, como Soares (2003), chegaram a afirmar à época que a nova palavra [letramento] parecia desnecessária, já que a palavra vernácula alfabetismo tinha o mesmo sentido da palavra literacy em inglês.

Rojo (2009), porém, insiste na importância em distinguir tais termos, considerando que alfabetismo possui foco em capacidades e competências cognitivas e linguísticas individuais, valorizando a leitura e escrita escolares enquanto habilidades, numa perspectiva psicológica. A autora pontua que, em algumas teorias de leitura, por exemplo, tais capacidades são colocadas como estratégias, já que mais recentemente se passou a enfocar a leitura não mais apenas como capacidade de decodificação, mas como capacidade de compreensão, que envolveria: ativação de conhecimentos de mundo, antecipação de conteúdos, checagem de hipóteses, localização de informações, produção de inferências locais e globais, entre outras. Quanto à escrita, Rojo (2009) destaca a grande influência das visões de composição e de redação, que, como apresentamos, dominaram a escola em grande parte de sua existência, segundo as quais bastava um ensino com bons modelos e correção gramatical e ortográfica. Por isso, ela defende também outras competências de escrita, como a necessidade de adequação do texto à situação de produção, a textualização, com progressão temática e coerência, entre outras. No entanto, a autora considera que, mesmo no nível das capacidades, apenas as mais básicas são ensinadas e avaliadas pela escola.

O letramento, a sua vez, para Rojo (2009), tentaria dar conta dos diversos usos e práticas sociais de linguagem que se relacionam a leitura e escrita, sejam eles valorizados ou não, numa perspectiva sociológica, antropológica e sociocultural. Nesse sentido, Kleiman (1995, p. 18-19) define o termo como “(...) um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos”. Dessa forma, as práticas escolares passam a ser apenas um tipo de prática e que desenvolvem alguns tipos de habilidades, mas não outros.

Como Rojo (2009) aponta, as diferenças entre leitura e escrita como habilidades e como práticas sociais ficam mais claras com a inauguração dos novos estudos do letramento por Street (1984), a partir dos quais o autor apresenta dois enfoques do letramento, o autônomo e o ideológico.

O modelo autônomo de letramento apresenta a escrita como um produto completo em si mesmo, que independe de seu contexto de produção para ser interpretado. Logo, está associado às habilidades individuais dos sujeitos, ao alfabetismo, levando a entender que o “(...) o contato escolar com a leitura e a escrita, pela própria natureza da escrita, faria com que o indivíduo aprendesse gradualmente habilidades que o levariam a estágios universais de desenvolvimento (...), o que denominamos níveis de alfabetismo” (ROJO, 2009, p. 99). Assim, como ressalta Kleiman (1995), criam-se alguns mitos, tais como que a aquisição da escrita está relacionada ao desenvolvimento cognitivo, que poderá levar a maior ascensão e mobilidade social; o que, a sua vez, gera uma atribuição maior de poder a povos que possuem escrita e a uma dicotomização entre oralidade e escrita, na qual a última seria mais complexa.

O modelo ideológico de letramento, a sua vez, admite que as práticas de leitura e escrita são determinadas social e culturalmente, assumindo diferentes significados para um grupo a depender dos contextos e instituições em que foram adquiridas (KLEIMAN, 1995). Ao assumir a diversidade de práticas sociais de uso da leitura e da escrita em diversos contextos, os novos estudos do letramento reconhecem a variedade e multiplicidade de letramentos, não mais sendo possível falar em letramento, mas sim em múltiplos letramentos, no plural, “(...) que variam no tempo e no espaço, mas que são também contestados nas relações de poder” (STREET, 2003, p. 77).

Assumir o modelo ideológico de letramento, como aponta Kleiman (1995), não significa negar a concepção autônoma do letramento, mas sim entender que as práticas sociais de uso da leitura e da escrita vão além das habilidades, sendo determinadas por aspectos sócio históricos e variáveis de um contexto a outro. Logo, não é defendido que o trabalho com a estrutura dos gêneros seja apagado da escola, mas que não se limite a isso, incorporando a este outros aspectos. Nesse sentido, entende-se como um dos objetivos centrais da escola “(...) possibilitar que seus alunos possam participar das várias práticas sociais que se utilizam da leitura e da escrita (letramentos) na vida da cidade, de maneira ética, crítica e democrática” (ROJO, 2009, p. 107). Street (2014) chama a atenção, porém, para o fato de que a pedagogia e os currículos estão dominados pelo modelo autônomo, e faz um apelo para que haja uma reconfiguração do letramento como prática social crítica, o que exige que se leve em conta

perspectivas históricas e transculturais na prática de sala de aula, sendo necessário que os aprendizes desenvolvam hábitos de leitura e escrita encaixados em contextos de uso real.

Em um mundo globalizado, que muda constantemente, novos e múltiplos letramentos são cada vez mais exigidos, o que significa, de acordo com Rojo (2009), a necessidade de ampliação da noção de letramentos para outras semioses que não somente a escrita, voltando-se para o campo da imagem, da música, do vídeo etc. A autora conclui, então, que

(...) trabalhar com leitura e escrita na escola hoje é muito mais que trabalhar com a alfabetização ou os alfabetismos: é trabalhar com os letramentos múltiplos, com as leituras múltiplas – a leitura na vida e a leitura na escola – (...). É enfocar, portanto, os usos e práticas de linguagens (múltiplas semioses), para produzir, compreender e responder a efeitos de sentido, em diferentes contextos e mídias. (ROJO, 2009, p. 118-119).

Para isso, a autora sugere um trabalho que leve em conta os letramentos multissemióticos, ou seja, a leitura e produção de textos em diversas semioses, a partir de um trabalho interdisciplinar, além dos multiletramentos, isso é, que a escola considere tanto as culturas locais, quanto a global e valorizada, na busca pela formação de um aluno ético e democrático, isento de preconceitos. Ela ainda aponta um trabalho com os letramentos críticos, no qual a abordagem dos textos não seja apenas formal e conteudista, mas discursiva, considerando o espaço histórico e ideológico de produção textual. Por fim, tendo em vista a multiplicidade de práticas e objetos a serem contemplados, Rojo (2009) chama a atenção para a importância de realizar escolhas que, embora nunca sejam neutras, devem ser regidas pelos princípios de necessidade, o que significa relevar o que é importante para alunos de um determinado contexto, pertencentes a determinadas comunidades de práticas e não a outras.

Tendo apresentado essa breve revisão bibliográfica sobre o trabalho com a escrita no contexto brasileiro das últimas décadas, o que incluiu a apresentação das principais abordagens teóricas que influenciaram o campo, passamos ao capítulo de descrição metodológica da pesquisa, o qual tem por finalidade melhor esclarecer os objetivos do estudo e métodos de coleta e análise dos dados gerados.