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LEOLINDA DALTRO: “SANTA AUREOLADA” À MULHER DO DIABO”, MEMÓRIAS DE UMA “MISSÃO MAIS QUE ESPINHOSA!”

No documento IV Jornadas do LEGH: anais eletrônicos (páginas 196-200)

Elaine Cristina Florz1

Resumo: As mulheres brasileiras do século XIX foram consideradas frágeis e insuficientes para exercer cargos que não fosse exclusivos à plena dedicação ao lar. É nesse contexto que, Leolinda de Figueiredo Daltro, uma jovem professora, decidiu sair da cidade do Rio de Janeiro rumo a uma missão em direção aos sertões de Goiás. Sua ambição era de catequizar indígenas através da educação laica. Leolinda passou a ser alvo de diversas críticas por deixar seu marido e seus filhos(as) na capital para poder seguir com seu objetivo em auxílio aos indígenas. Daltro pretendia alcançar objetivos até então não alcançados por uma mulher brasileira. A partir do momento em que Leolinda se identifica como oprimida pelas questões de gênero, passa a agir por meio do campo político e do ensino a fim de contornar a situação.

A viagem de Leolinda resultou na obra denominada Da catechese dos índios no Brasil: Notícias e documentos para a História (1896-1911), que comporta uma diversidade de documentos que variam entre afeições e críticas referentes à Leolinda. Através dele é possível identificar aspectos extremamente relevantes para analisar a trajetória de Daltro por intermédio do campo da História das emoções.

Palavras-chave: Leolinda de Figueiredo Daltro. Gênero. História das emoções. Introdução

No decorrer do século XIX, uma jovem professora, casada e com cinco filhos decide sair da cidade do Rio de Janeiro rumo a uma missão em direção aos sertões de Goiás. Sua ideia era de catequisar indígenas através da educação laica. Tal empreitada resultou em uma obra denominada Da catechese dos índios no Brasil: Notícias e documentos para a História (1896-1911), publicada mais de vinte anos após o seu retorno ao Rio de Janeiro. Suas experiências e envolvimento com elites do período fizeram com que sentisse medo, temesse a vida. Qual destino tal viagem deu para a vida da professora? Qual foi o motivo de seu sofrimento?

Este trabalho tem como objetivo analisar a trajetória da professora Leolinda de Figueiredo Daltro através do livro publicado, nele há uma diversidade de documentos que variam entre cartas, abaixo assinados, recortes de jornais, entre outros. Por meio deles é possível identificar a opinião pública sobre Daltro, que exemplificam o pensamento machista e patriarcal entre meados do século XIX e XX.

Considera-se aqui, como parte essencial para a elaboração deste trabalho o prefácio da obra denominado Explicação Necessária. Através dele Leolinda expõe por meio das palavras as suas emoções. Nesse sentido, analisaremos até que ponto os sentimentos de Leolinda a influenciaram a tomar decisões que a tornaram uma mulher a frente do seu tempo.

A trajetória

Leolinda Figueiredo Daltro nasceu em 1858, originária de Najé, cidade de Cachoeirinha, no Recôncavo Baiano. Sua mãe era Maria Alexandrina de Jesus e seu pai Capitão Luiz Antonio de Figueiredo, ambosfaleceram durante sua infância a deixando órfã. Leolinda cresceu aos cuidados da avó e devido ao fato de ser filha de um ex-combatente da Guerra do Paraguai, pode inserir-se no Colégio das Orfãs do SS. Sagrado Coração de Jesus, na capital da Bahia, uma vez foram ofertadas vagas às filhas dos soldados com a finalidade de ampará-las (ROCHA, 2016).

De acordo com Cunha (2014), tal colégio foi a primeira instituição fundada para amparar meninas órfãs. A conduta de colégios como esse, administrados por irmãs Ursulinas, priorizava formar meninas e moças por um processo educacional de disciplinamento, as tornando capazes de viverem autonomamente em seus futuros cumprindo os códigos morais da sociedade do período.

A educação até então era destinada ao masculino, foi somente a partir do século XIX que a educação feminina no Brasil passou a ser refletida, dentro do contexto moderno influênciado pelo contato com países europeus. Conforme Manoel (2008) ao mesmo tempo que almejavam o moderno, temiam a modernidade. Nesse sentido, as famílias de elite estimavam uma educação feminina que contemplasse o mundo privado das mulheres, “não se tratava [...] de uma educação profissionalizante, mas de uma educação voltada para o polimento sociocultural das mulheres” (MANOEL, 2008, p. 25). A educação do período era voltado à famílias abastadas financeiramente, o que não era o caso da família de Leolinda, levando em consideração ao cargo exercido pelo seu pai no exército, que poderia ser razoável, mas nada comparado com as elites da época. É muito provável que devido ao conservadorismo e a condição financeira, mulheres como Leolinda fossem impedidas de estudar. Podemos considerar as crianças acolhidas pelas irmãs Ursulinas como exceção, já que, os acontecimentos de suas vidas as levaram à essa conjuntura.

Leolinda atuava como professora desde de 1873. Provavelmente sua formação se deu no momento em que houve uma tendência à denominada “feminização do magistério”. Segundo Guacira Lopes Louro (1997), as atividades docentes eram predominantemente exercidas por homens, já que o desígnio das mulheres era condicionado aos afazeres domésticos e maternos. A abertura de novos espaços de trabalho em cargos masculinos na área industrial e urbana com melhores condições salariais, causaram deficiência de docentes no ambiente escolar, diante da alta demanda de alunos(as). A maneira de suprir tais demandas seria inserir a mulher no campo de atuação. O consentimento da sociedade perante à essa nova função feminina se justificou pela perspetiva de que todas as mulheres seriam “naturais educadoras”, pelo fato de serem predestinadas a serem mães. A atuação como professoras era visto como “extensão da maternidade”. Apesar de receberem diversas críticas da sociedade, já que determinavam os cérebros femininos como “pouco desenvolvidos”, com o passar do tempo passaram a serem vistas como necessárias, ao passo que possuíam a delicadeza das mães que contribuiriam para a formação de bons cidadãos, indispensáveis para a formação da almejada sociedade moderna. (LOURO, 1997, p. 450).

O primeiro casamento de Daltro formalizou-se quando tinha 15 anos de idade. O relacionamento com Gustavo Pereira de Figueiredo, resultou no nascimento de dois filhos: Alcina e Alfredo. Em pouco tempo de relacionamento, Leolinda ficou viúva. Em 1887, mudou-se para o Rio de Janeiro com Appolonio de Castilho Daltro, com o qual casou-se e teve mais três filhos: Oscar,

Leobino e Aurea. Cunha (2014) relata que Appolonio foi funcionário da Fazenda da Província da Bahia, em Salvador, quando foi transferido para o Rio de Janeiro, consequentemente, levou a família consigo.

A atuação de Daltro como professora primária na Bahia possibilitou a sua transferência para a cidade do Rio. A metodologia e as disciplinas diferenciadas ministradas por ela como arte, ginástica e profissões, foram admiradas e incluídas no ensino carioca (ROCHA, 2016).

A decisão

Sua atuação como professora expandiu ainda mais quando se relacionou com a causa indígena. Leolinda se interessou no assunto ao ler matérias publicadas em jornais que noticiavam sobre a presença de um grupo de indígenas na área urbana do Rio de Janeiro, os quais estavam em busca dos seus reservados direitos humanos e agrários, principalmente para a inserção de um(a) professor(a) nas tribos para a formação de uma escola.

Ao visitar os indígenas, Leolinda se comprometeu à auxilia-los baseada pela política positivista e comovida pelos debates indígenas durante o período republicano. A causa foi abraçada com a intenção de educar e civilizar a população indígena dos sertões de Goiás através da catequese laica.

A proposta da professora não foi bem aceita pelo governo, que hesitou em ceder recursos para a viagem, alegando falta de verba. A colaboração de amigos(as) de Leolinda foram fundamentais para que a viagem se realizasse. Por meio deles(as) e de políticos, obteve apoio financeiro e moral, além de registros de cartas de recomendações que foram utilizadas ao longo do trajeto como facilitador para obter assistência e acolhida para pernoites. Ao juntar dinheiro suficiente para partir, Leolinda seguiu para viagem com os indígenas na companhia de seu filho mais velho Alfredo Napoleão de Figueiredo.

Críticas e ressalvas

A decisão de Leolinda sobre sua partida para Goiás, causou uma diversidade de opiniões, variantes entre total apoio e desagrado vindo de pessoas muito próximas como parentes e amigos(as), como até mesmo de pessoas distantes, entre admiradores ou leitores dos jornais que repudiavam a ideia.

As críticas e ressalvas se voltaram à Leolinda, especificamente por ser mulher. Esperava-se que as mulheres exercessem suas obrigações da vida cotidiana, como mães e esposas, as educadoras das gerações do futuro. Aos homens concernia a função de sustentar a casa por meio do trabalho externo.

O ato de viajar, assim como outras funções exercidas em sociedade, era destinado aos homens, uma vez que, os perigos e incertezas durante os trechos das viagens que demandam enormes distâncias, não competiam às mulheres do século XIX, especificamente, por serem consideradas frágeis e afetivas. É a partir daqui que se iniciam os processos de rompimento entre o que esperavam de Leolinda como mulher, mãe e professora, “dando-nos a todos um exemplo de coragem rara no sexo fragil [...] que se destacou dos moldes communs.” (Gazeta de Noticias, 1896 apud DALTRO, 1920, p. 21).

Nota-se que as controvérsias em relação a ida de Leolinda aos sertões, descritas por homens, não só traziam em sua narrativa os possíveis contratempos e perigos da viagem, como também consideravam e reafirmavam o quão polêmico era “que dentre tantos homens interessados pelo progresso de nossa cara patria, só vós, uma mulher, surgistes para tentar a grande obra da educação dos indios, affrontando corajosamente, todas as contingencias do vosso sexo [...] (CHAVES, 1898, apud DALTRO, 1920, p. 167).

O pensamento do século XIX defendia que as diferenças intelectuais entre os sexos feminino e masculino pela justificativa do meio biológico, o homem era identificado como superior e mulher como inferior. Nas palavras de Scott (2002, p. 26, apud KARAWEJCYK, 2014): “Quando se legitimava a exclusão com base na diferença biológica entre o homem e a mulher, estabelecia-se que a ‘diferença sexual’ não apenas era um fato natural, mas também uma justificativa ontológica para um tratamento diferenciado no campo político e social.”

Ao reforçar esse estereótipo, o trecho a seguir afirma que ao ser mãe, Leolinda teria forças para realizar todos os sacrifícios: “Isto é difficil para um homem, quanto mais para uma mulher! Mas, a mulher é mãe, e ser mãe é a concretisação de todas as virtudes e sacrificios.” (VAZ, 1897, apud DALTRO, 1920, p. 81). Segundo Telles (1997), esse discurso de que a “natureza feminina,” ligada à delicadeza e ao maternal, passaram a ser formuladas a partir do século XVIII, e foram utilizadas como prerrogativas masculinas, para englobar às mulheres apenas a reprodução da espécie e sua nutrição. (TELLES, 1997, p. 403).

Trabalhar como professora parecia ser aceitável para a sociedade carioca, desde que Leolinda continuasse a cuidar dos seus afazeres familiares, principalmente cuidando dos(as) filhos(as), esperam da mulher comportamentos ligados a feminilidade. Daltro resistiu as críticas e estava realmente decidida a partir para Goiás, mesmo que precisasse levar os(as) filhos(as) consigo, para bem ou para o mal, conforme dito na carta da sua amiga, exposta abaixo:

D. Leolinda

Que saudades tenho tido de minha boa amiga! Que pena me causa o seu destino e seu martyrio! Fui hontem ao senador Quintino procurar noticias suas e [...] contou- me que vendo que tudo era baldado, ameaçou de entregar-lhe sua filhinha e que você com a maior calma respondeu-lhe que a levaria consigo para os sertões, para a vida ou para a morte, [...] O Alfredo foi bem culpado nisso, a meu vêr elle é um filho máu, porque se elle não se animasse a acompanhal-a, você não se animaria a ir sosinha no meio desses horrendos animaes. [...] Magdalena de Noronha (1897 apud DALTRO, 1920, p. 93-95).

A amiga culpa o filho Alfredo por tê-la acompanhado na viagem, uma vez que, de acordo com o compreendido pela sociedade patriarcal, o filho mais velho deveria reger a casa enquanto o pai não estivesse presente. Ao contrário, Alfredo apoiou a mãe.

Em relação ao marido de Daltro, Elaine Rocha (2013) aponta que o mesmo sentiu-se deserrespeitado com a viagem e a decisão da professora. Para D’Incao (1997), os homens do século XX eram bastante dependentes da imagem feminina para consolidar determinado status em meio a sociedade. O pensamento condizia com a frase de Perrot: “homem publico é uma honra, mulher publica é uma vergonha. (2007, p. 136).

Casar-se era considerado uma realização pessoal. De acordo com Castelo Branco (1996), ‘‘o modelo a ser seguido era o da ‘Sagrada Família’, no qual Maria assumia o papel de esposa e mãe dedicada e preocupada com o filho’’ (CASTELO BRANCO, 1996, p. 127).

Segundo Louro, havia uma grande incompatibilidade entre trabalho feminino e casamento, da qual poderia gerar a renuncia. Ainda assim, o que determinou a separação do casal, foi Leolinda encontrar seus filhos Oscar e Leobino trabalhando em comércios por ordem de seu marido (CUNHA, 2014), logo após o retorno de uma de suas viagens. O fato a fez transferir seus filhos de colégio para a cidade de São Paulo, acolhidos por Horace Lane.

Em uma das cartas recebidas por seus filhos, é percetível que os mesmos apoiavam a viagem de mãe e almejavam estar com ela. A afirmação abaixo de que Leobino estaria muito chorão, pode estar relacionado com as saudades da mãe:

Minha querida mamãe

Tenho tantas saudaes da senhora![...] Quando é que a senhora volta? Quantos dias de viagem? Escreva-nos assim que chegar na aldeia; como nós desejamos ir tambem, a senhora virá nos buscar em Dezembro? Vem? [...] Mamãe, volte breve. São horas da aula. Eu estou muito adiantado, mas Leobino está muito vadio, e muito chorão. Deite a abenção a seus queridos filhos Oscar e Leobino (1897 apud DALTRO, 1920, p. 101-102)

O retorno ao Rio de Janeiro

Após quatro anos intensos de viagens, Leolinda retornou ao Rio de Janeiro em 1900. Ela visava a nomeação oficial como Catequista Leiga ou como Diretora dos Índios, cargo que nunca foi ocupado por uma mulher. A fim de alcança-lo, Daltro utilizou diversas estratégias, uma das principais foi o uso variado dos jornais, através da imprensa Leolinda tentou convencer tanto a sociedade quanto os políticos de que sua empreitada era de fato necessária. Daltro passou então a remodelar seus interesses e “seu nome ressurgiria [...] nas páginas dos noticiários, em defesa de uma outra causa: o feminismo” (ROCHA, 2002, p. 4 apud KARAWEJCZYK, 2014).

A iniciativa de Daltro se deu por meio da Junta Feminil pró-Hermes, em apoio à candidatura de Hermes, Leolinda e outras mulheres buscavam conquistar direitos e emancipação. A associação foi renomeada como Partido Republicano Feminino (PRF), e tinha como objetivo buscar o apoio das mulheres na sua luta contra o Estado patriarcal e reconhecer as mulheres como cidadãs com direito de voto e de serem votadas.

Em busca de visibilidade, Leolinda ainda seguiu ocupando espaços que mulheres de gerações anteriores jamais poderiam ter ocupado. Através da fundação do jornal A Política em 1910, promoveu o PRF, seus ideais indígenas e apoiou os direitos femininos.

A militancia do grupo PRF passou a ser igualado com o das sufragistas inglesas, á medida em que a denominaram Daltro como Miss Pankhurst brasileira. O movimento de Daltro era ironizado, sendo considerado “ridículo e excessivo.” (KARAWEJCZYK, 2014, p. 81). Ao perceber o poder da mídia na vida cotidiana, Daltro age na mesma linha de raciocínio, fundando outro jornal: A Tribuna, em 1916, a fim de divulgar as ideias do partido.

No documento IV Jornadas do LEGH: anais eletrônicos (páginas 196-200)