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TERRORISMO DE GÊNERO: A ARTE COMO MÁQUINA DE GUERRA Ana Paula Jardim Martins Afonso

No documento IV Jornadas do LEGH: anais eletrônicos (páginas 56-81)

Resumo: Desde 2013 o Brasil assiste, com olhos atentos de todos os ângulos, às investidas consecutivas à frágil democracia instituída em meados de 1985. O efeito político-social dessa configuração é a emergência de forças sociais, que insatisfeitas com a representação política e a atuação do Estado brasileiro nos governos Lula e Dilma, arquitetaram um golpe político-jurídico em 2016 contra a presidenta. Portanto, “um golpe misógino à democracia”. Desde então, estamos em guerra. Este texto objetiva analisar a atuação política de Linn da Quebrada, em resposta à configuração de forças ultraconservadoras que tomam de assalto nosso “horizonte de expectativa” democrático, a fim de implementar sua agenda de reformas e uma política social de desigualdades e hierarquias. Pensar essa atuação política significa compreender a relação entre arte, música e performance. Para tanto, chamo a compor esta análise a categoria de Gilles Deleuze “a arte como máquina de guerra” a fim de pensar Linn da Quebrada enquanto sujeito histórico-artístico que problematiza a heteronormatividade compulsória e as identidades fixas por meio de sua arte- manifesto. A arte é movimento, portanto, história. A arte cria, transforma. A arte afeta corpos, arrepia, paralisa. Aterroriza. Com efeito, Linn nos incita a pensar a categoria “terrorismo de gênero” como tática para criar espaços de resistência ao controle dos corpos nas relações cotidianas; desmontar o amontoado de coisas que silenciam os sujeitos precarizados e violentados pelo Estado. Sujeitos que, por extrapolarem a lógica identitária hegemônica, expõem com maior evidência os mecanismos que tentam capturar as vidas desviadas.

Palavras-chave: Terrorismo de gênero. Arte como máquina de guerra. Ultraconservadorismo. Introdução

As jornadas de julho de 2013 inauguram uma temporalidade outra, muito recente, na história política do Brasil contemporâneo. Gostaria de apontar que a efervescência de protestos, manifestações e rupturas provocou efeitos sócio-políticos com dimensões imensuráveis. O epicentro se deu na grande São Paulo e se desdobrou, irradiando uma onda de irrupções por todo o país. “Não é por R$0,20 centavos” foi a palavra de ordem que entoou o ritmo das manifestações que se opunham ao aumento no preço das tarifas de transporte público.

Por isso, junho de 2013 teve as ruas ocupadas de manifestantes, num transe coletivo de desejos por vezes radicalmente opostos. Em 2014, ano eleitoral, esses grupos fazem suas primeiras aparições caricatas e teatrais, entoando o canto do antipetismo, saindo em defesa da nação brasileira contra a corrupção. Além disso, o grande perigo vermelho, que por hora adormecido no imaginário coletivo, pairando apenas como um sussurro esquizo na cabeça de alguns, ressuscita intempestivo como quem ameaça de morte um país fielmente capitalista, conservador e heterocentrado. O movimento dos “verde-amarelos” clamava pelo impedimento da presidenta Dilma Rousseff, alegando a culpabilidade por crime de responsabilidade fiscal nas chamadas “pedaladas fiscais”.

A narrativa do impeachment deu lugar ao xeque-mate concreto do golpe de Estado em 2016. A jogada político-jurídica chamada de “Operação Lava-Jato” arrastou consigo a legitimidade do

1 Doutorandx em História Global pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadorx do Laboratório de Estudos de Gênero e História (LEGH). Bolsista CAPES. E-mail: paula_jardim@hotmail.com

Partido dos Trabalhadores, que ocupou a presidência por tempo considerável, tragando o ex- presidente Luís Inácio Lula da Silva para as garras do sistema carcerário. Estava impedido de concorrer às eleições da presidência em 2018. O resto da narrativa é conhecida por boa parte dos ouvidos e olhos que acompanham atentamente o curso do país em meio ao caos. A ascensão “democrática” de um presidente que representa a faceta mais cruel e ultraconservadora/ opressora e autoritária do poder institucional é um sintoma do incômodo e do desvio dos planos de manter a estrutura social brasileira elitista, racista, sexista/machista.

Vivemos tempos assustadores. O Brasil foi recoberto por uma nuvem maciça de ódio generalizado aos movimentos sociais, feministas, LGBTQI+, sindicatos e claramente, o Partido dos Trabalhadores, banalização da violência e ameaça constante a um tipo muito frágil de democracia que conquistamos entre os anos de 1990 e 2014. A operação ideológica articulada pelas figuras que acreditam cegamente que o senhor Bolsonaro é a salvação do Brasil têm se amparado no medo e no ressentimento social a esses grupos de minoria política que, no período do governo Lula/ Dilma supostamente tornaram-se privilegiados e recebem, portanto, a culpa por agravarem mais a cisão e os problemas sociais já existentes no país. De modo distorcido, atribuem a esses segmentos a culpa pelo desgoverno e, por meio da desrazão, enxergam o crescimento exponencial do caos social causado pelas minorias “privilegiadas”.

Essa guinada ultraconservadora também evidencia a perseguição conforme nos sugere Michel Foucault com a dinâmica das relações de poder que “onde há poder, há também resistência” (FOUCAULT, 1988). Assim, conforme Leandro Colling (2018) é possível mapear a emergência de artistas ativistas das dissidências sexuais e de gênero no Brasil. Por conseguinte, este texto objetiva analisar a atuação política de Linn da Quebrada, em resposta à configuração de forças ultraconservadoras que tomam de assalto nosso “horizonte de expectativa” democrático, a fim de implementar sua agenda de reformas e uma política social de desigualdades e hierarquias. Pensar essa atuação política significa compreender a relação entre arte, música e performance. Para tanto, chamo a compor esta análise a categoria de Gilles Deleuze “a arte como máquina de guerra” a fim de pensar Linn da Quebrada enquanto sujeito histórico-artístico que problematiza a heteronormatividade compulsória e as identidades fixas por meio de sua arte-manifesto. A arte é movimento, portanto, história. A arte cria, transforma. A arte afeta corpos, arrepia, paralisa. Aterroriza. Com efeito, Linn nos incita a pensar a categoria “terrorismo de gênero” como tática para criar espaços de resistência ao controle dos corpos nas relações cotidianas; desmontar o amontoado de coisas que silenciam os sujeitos precarizados e violentados pelo Estado. Sujeitos que, por extrapolarem a lógica identitária hegemônica, expõem com maior evidência os mecanismos que tentam capturar as vidas desviadas. Eu, terrorista de gênero

Para constituir o plano imanente de análise, apresentemos a disposição do jogo das relações que tenta nos aprisionar. Por isso, é fundamental a compreensão da ideia de biopoder desenvolvida por Michel Foucault, para que seja possível analisarmos os mecanismos existentes na construção dos saberes sobre a vida, acerca de quais investimentos e atravessamentos são feitos sobre ela. O termo biopolítica diz respeito ao modo como as relações de poder tendem a se transformar, entre o final do século XVIII e início do século XIX, a fim de alcançar a dimensão de governabilidade não apenas

dos indivíduos, por meio de um determinado número de procedimentos disciplinares, mas também o corpo social ou a população2 que vive em determinada sociedade.

Nesse sentido, a biopolítica – por meio de poderes locais – tem como objeto de incidência a gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da mortalidade, da natalidade, sobretudo da sexualidade – ou seja, a gestão da própria vida – na medida em que se tornam também objetos de preocupações políticas. Então, o biopoder atua no sentido de se valer de aspectos morais, valores rígidos que incidem sobre o corpo social a fim de cristalizá-los, pois é justamente nessa dinâmica que ele se torna funcional.

É, precisamente nesse ponto, que à vida é negado o movimento, tornando-a assim, passível de ser apropriada. As formas de controle gestadas pela estrutura ultraconservadora da sociedade brasileira, por conseguinte, se apresente evidentemente em táticas de repressão às mais diversas manifestações de experimentação do corpo, das sexualidades e dissidências de gênero. Conforme Guacira Louro, “[...] os sujeitos vêm sendo indicados, classificados, ordenados, hierarquizados e definidos pela aparência de seus corpos; a partir de padrões e referências, das normas, valores e ideais da cultura” (LOURO, 2015, p. 77). Por isso, as forças que essa governabilidade autoritária empreende se valem das dicotomias: natural/antinatural, bom/mau, puro/impuro, normal/patológico, para apagar tudo aquilo que é diferente, novo, vivo e histórico.

A fim de questionar o modo como se pensa o exercício da escrita e da construção da narrativa histórica contemporânea, bem como refletir e problematizar a ação política da artivista Linn da Quebrada é fundamental compreender a tática do “terrorismo de gênero”. Diante disto, consideraremos: estamos em guerra porque as relações de poder sugerem lutas e enfrentamentos. Por isso, pensaremos aqui o terrorismo de gênero como a “arte de construir, com corpos localizados, as atividades codificadas e atitudes formadas, aparato onde o produto de diferentes forças se encontra potenciado por sua combinação calculada” (FOUCAULT, 1988, p. 169).

Esta estratégia, por sua vez, se dá por meio das táticas empregadas no enfrentamento das relações de assujeitamento e subjetivação, a fim de alcançar os objetivos proposto pelo jogo. Portanto, a ideia de terrorismo que aqui se delineia é pensada como tática para criar espaços de resistência ao controle dos corpos nas relações cotidianas; desmontar o amontoado de coisas que silenciam os sujeitos precarizados e violentados pelo Estado. Sujeitos que, por extrapolarem a lógica identitária hegemônica, expõem com maior evidência os mecanismos que tentam capturar as vidas desviadas.

Em entrevista cedida à página “Rimas e batidas3“ Linn é questionada à respeito do termo “terrorista de gênero”.

Núria R. Pinto: Classificas-te como sendo uma “Terrorista de Género”. O que é que isso significa para ti e de que forma se reflecte no teu trabalho?”,

Linn nos deixa evidências para localizar sua ação política artivista-terrorista, que em resposta diz à entrevistadora:

2 Conforme definição no dicionário de conceitos essenciais de Michel Foucault, 'a população é um conjunto de seres vivos e coexistentes que apresentam traços biológicos e patológicos particulares e cuja própria vida é suscetível de ser controlada a fim de assegurar uma melhor gestão da força de trabalho. Ver 'Foucault conceitos essenciais' de Judith Revel. 3 Para acesso na íntegra cf. Disponível em: https://www.rimasebatidas.pt/linn-da-quebrada-terrorista-genero-significa- ter-minha-musica-arma-apontada-minha-propria-cabeca/. Acesso: 23/01/2019.

Linn da Quebrada: Terrorista de género, para mim, significa me colocar em risco, significa ter a minha música como uma arma apontada para a minha própria cabeça. Ter a coragem, às vezes, de matar e destruir coisas em mim para dar espaço para que outras coisas possam florescer. Porque para mim, realmente, toda criação envolve destruição e o meu corpo é a minha obra, é a minha obra em construção — constante! –, o meu corpo é meu campo de batalha e o meu corpo é meu objeto de pesquisa e investigação. É onde sou a médica e a monstra. Cobaia de minhas próprias experiências. Ser terrorista de género é me colocar em risco para que eu também possa ser outras que nem eu imaginava ser.

Na contemporaneidade, a dinâmica do biopoder ao incidir sobre as vidas, toma de assalto também os corpos individuais e populacionais. Conforme Manuel Menezes:

[...] a sociedade disciplinar – característica da ‘primeira fase de acumulação capitalista no seu conjunto’ – foi dando lugar (na transição entre o ocaso da modernidade e o surgimento do pós-moderno) a um novo modus operandi do poder típico das sociedades de controlo, quer dizer, a um modelo societário onde os ‘mecanismos do domínio exercido se tornam cada vez mais ‘democráticos’, cada vez mais imanentes ao campo social, difundindo-se no cérebro e no corpo dos cidadãos (MENEZES, 2007, p. 112).

“O terrorismo é uma arma que o revolucionário não pode abandonar” (MARIGHELLA, 1969, p. 46). Importante dizer, a princípio, que o estado de terror pairava, sobretudo nas ações formais do Estado. Nesse sentido, seria uma prerrogativa dos Estados Modernos a ideia de instalar um terrorismo que fosse atrelado a suas ações. Mesmo que usualmente vejamos a representação dos terrorismos associada à ação de grupos não estatais, assumimos a posição primeira aqui de considerar o terrorismo como uma política de estado que, ao menor sinal de ameaça a sua hegemonia, se vale de ações violentas para reprimir essas oposições. Todavia, evidenciar esses usos das estratégias políticas nos servirá para operar um deslocamento teórico, a fim de pensar uma luta contra hegemônica de um Estado repressor.

Essa constituição de materialidades e subjetividades herdada da modernidade colonialista foi capaz de construir em nós, modos de nos reconhecermos como humanos baseadas em oposições dicotômicas, a saber: branco-não branco/ civilizado-selvagem/ homem-superior/ não-homem- inferior. Portanto, superioridade e inferioridade tornam-se critérios que se baseiam no referente homem-heterossexual-branco-eurocentrado. Dizer que um sujeito carrega estes elementos é, por conseguinte, considera-lo como parâmetro universal de referência de humanidade. A construção histórica deste referente universal, destacando o primeiro processo de invasão e colonização das Américas e seus principais desdobramentos, imbuiu esses sujeitos de “humanizar” corpos e subjetividades desgovernadas, como o próprio nome já os caracteriza “selvagens”.

Assim, devemos considerar um sistema de composição com as minorias para aumentar as tensões a fim de romper com a lógica colonial/moderna que nos aprisiona. Além disso, é urgente revisitar análises feministas acerca dos estudos de gênero, a fim de atentar que, antes de tudo, as relações de gênero são resquícios de relações colonialistas, que se mantém em uma lógica reguladora entre a colonialidade e o poder. A este respeito, Luciana Ballestrin diz:

É um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano, em 1989 [...] O conceito possui uma dupla pretensão. Por um lado, denuncia “a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (Grosfoguel, 2008, p. 126). Por outro, possui uma capacidade explicativa que atualiza e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados, assimilados ou superados pela modernidade (BALESTRIN, 2013, p. 100). “A Europa é indefensável” (CESAIRE, 2010, p. 15). A “função” do homem colonizador contemporâneo é nos apresentar e impor um modelo de “humanidade”. E quanto mais nos aproximamos deste modelo, mais nos tornamos “civilizados”, por isso, humanos. Com isso, os processos colonizadores foram marcados, sobretudo, por relações de dominação, hierarquia e desigualdade entre os sujeitos. Essa dita “civilização” europeia/ocidental constitui um modo de vida burguês que, deixou como legado para nós os problemas do colonialismo. E conforme também nos diz Cesaire (2010), essa racionalidade que fora construída tem como refúgio o ódio às diferenças e a hipocrisia da democrática igualdade.

Então, se recuarmos a um fragmento do passado não tão distante, no que tange aos acontecimentos políticos, econômicos, sociais e culturais no Brasil é possível localizar verossimilhanças entre o passado colonial e o tempo presente, no trajeto das relações de poder. Linn da Quebrada nos apresenta estratégias políticas por meio do campo da cultura, entendendo que os preconceitos nascem, sobretudo desse campo e, sensibilizar outros corpos para chamar sua atenção, é uma ação mais efetiva. Além disso, quando Linn comenta que “produz sua música como arma”, opera por meio do artivismo-terrorista, na medida em que entende que as identidades são fluidas e podem ser criadas, recriadas e subvertidas permanentemente.

De que modo o terrorismo, dentro de um jogo de consenso e dissenso, opera de modo a flexibilizar a racionalidade da violência cometida pelo Estado, ao mesmo tempo em que possibilita pensarmos tanto as guerrilhas urbanas do contexto de 1968 no Brasil, quanto as Linn da Quebrada, como artivista-terrorista, são capazes, conforme Gramsci, “de criar uma nova forma ético-política”? (GRAMSCI, 1999, p. 314-315). Precisamente nessa nova forma ético-política, portanto contra- hegemônica, Linn da Quebrada artivista-terrorista, portanto potente, resiste à lógica de dominação de corpos, gênero e sexualidade. Então, conforme Menezes elucida,

Michel Foucault mostra-se insuficiente, porque, ao valorizar essencialmente a totalização dos efeitos do biopoder, não dá conta das fragilidades inerentes a esse processo, fragilidades essas que permitem a abertura de novas possibilidades de insurreição (MENEZES, 2007, p. 114).

É na mais crua precariedade das favelas das grandes metrópoles, no escuro das ruelas estreitas dos morros é que se faz emergir um exército que, à margem de tudo e no anonimato de todos, resiste! Assim, a tática do terrorismo de gênero de Linn criam espaços nas relações cotidianas, desnudam as camadas que soterram milhares de vozes silenciadas historicamente; e que regulam o modo de vida que constituem para si. Esses modos de vida extrapolam as fronteiras e expõem com maior clareza os mecanismos que os capturam. É nesse sentido, que Preciado sentencia: “sabemos que seu aparelho de produção de verdade já não funciona mais” (PRECIADO, 2013, s. p).

Desorganizar a estrutura formal do que se compreende como homem/mulher/arte na sociedade é apontar uma arma potente na cabeça desses grupos que tentam conformar essas subjetividades em caixas que já não cabem mais. Linn da Quebrada rejeita profundamente a ideia de que para obter respeito ou criar uma imagem “respeitável” as pessoas devem abdicar das singularidades/ diferenças que as fazem potentes. Cria, por conseguinte, novas subjetividades que demandam problematizar sexualidade, gênero, etnia/ raça e classe. Nesse sentido, Bouteldja nos elucida acerca do cuidado conceitual que é necessário ao trabalharmos com variáveis que implicam opressões cruzadas e com uma análise interseccional. “O uso que me parece legítimo é aquele que consiste, para as vítimas de opressões múltiplas, em pensar e analisar sua condição” (BOUTELDJA, 2016, p. 6).

Artivismo como máquina de guerra

Então, esqueçamos a biologia. Os sentidos são dados no que é histórico. Portanto, os corpos de que fala Linn da Quebrada são território de constantes disputas, na maior parte das vezes de aprisionamentos, domínio e relações de hierarquia. Reflitamos, pois, que essa essência e a natureza, assim como a identidade, são situações ilusórias, nos traz nítido como funcionam os mecanismos que nos aprisiona nesses formatos anato-ortopédicos de vidas; dentro de um espaço delimitado, construído a partir de normas socialmente prescritas, estabelecem os domínios sobre estes territórios que resistem, que escapam às garras da biopolítica.

Por isso, é urgente que contemos de outras formas infinitas sobre essas histórias que se constroem nos becos, nas quebradas infinitas das favelas dos grandes centros. Para que esses corpos deixem de ser constituídos a partir de discursos que justificam sua exploração e opressão é que escrevemos essas histórias. Para, por fim, produzir um tipo de discurso que contribua para romper e desconstruir o modo como as epistemologias articulam seus modelos explicativos de realidade, que nos apresentam leituras chave inclinadas às relações e estudos de gênero e sexualidade, bem como os processos de racialização dos sujeitos e opressões, que por vezes se cruzam, por vezes se sobrepõem. Para que, não haja sobreposições que apaguem sentidos outros destas histórias.

Por isso, é fundamental desapegarmo-nos do ideal de perseguir as origens fundacionais da vida humana, que são tão caras ao nosso campo discursivo. A partir disso, todavia, compor e apreciar o trânsito, investigar as fronteiras destes corpos outros – que a produção de saberes historiográficos tradicionais “esqueceu” de mencionar como elemento imprescindível nas lutas, conquistas. Esse Outro, diferente, desviante e desviado, foi transformado em ameaça. Portanto, justifica-se seu silêncio, sua obliteração na narrativa.

O medo dessa sociabilidade com a diferença sempre foi o voto de minerva na escolha destes produtores do saber na história. O outro que recolocamos no protagonismo dos acontecimentos políticos trata-se justamente dessas possibilidades múltiplas que podemos assumir. Sendo assim, de que modo os discursos que vemos circular conseguem produzir, materialmente, corpos, sexualidades, identidades e gêneros que se apresentam como o apêndice da escrita da história? Coloco aqui a historiografia tradicional como o próprio discurso de ódio que se constitui, e que se faz hegemônico, ao conseguir produzir materialmente o outro como diferença, mas uma diferença que ameaça, que mata e é passível do aniquilamento.

A partir dos discursos apresentados inicialmente é possível mapear a ideia de recrutamento dos valores morais, para a constituição de uma identidade singular, uma vez que ela é desvelada enquanto uma estratégia do poder, ao tentar nos convencer de que somos isto ou aquilo. Por isso, a investida do poder sobre essas vidas desviantes serve, justamente para enganá-las de que não há

No documento IV Jornadas do LEGH: anais eletrônicos (páginas 56-81)