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31 O conceito de letramento10 tem origem acadêmica e foi, aos poucos, infiltrando-se no discurso escolar indicando o processo de desenvolvimento da língua que se estende por toda a vida. O objeto de reflexão do letramento é o ensino/aprendizagem de aspectos sociais da língua escrita contrastando com uma concepção tradicional em que a leitura e a produção textual são consideradas habilidades individuais; um evento de letramento é uma atividade social coletiva e colaborativa, porque envolve vários participantes (KLEIMAN, 2007).

Por suas associações a diferentes objetos, sugere-se que existam diferentes letramentos na sociedade: o letramento jurídico, o letramento tecnológico e, entre outros, o letramento escolar, entendido como as práticas de caráter didático que interferem no processo de aprendizagem, apontando para diferenças entre práticas de leitura e escrita desenvolvidas dentro e fora da escola (CASTANHEIRA, 2014). Pensar no trabalho pedagógico na perspectiva do letramento exige do professor repensar sua prática, um vez que os grupos e suas experiências são heterogêneos, as atividades sociais acontecem em contextos muito variados e, assim, considerar a interação social como ponto de partida da prática pedagógica, pressupõe lidar com o inesperado, com o imprevisível, bem diferente do currículo tradicional, linear e progressivo. Neste sentido, podemos afirmar que faz-se necessário abrir mão de uma progressão rígida em relação aos conteúdos curriculares (KLEIMAN,2007).

Antes mesmo das discussões em torno do termo letramento e de suas implicações na transformação das práticas escolares, Geraldi (2006/1ªed.1984) propôs em O texto na Sala de

Aula que o estudo da língua materna escrita partisse da heterogeneidade do texto do próprio

aluno, bem como a seleção de recursos linguísticos a serem ensinados fosse feita a partir das demandas desses textos. Em outras palavras, Kleiman (2007) destaca que definir o letramento do aluno como objetivo da ação pedagógica implica em partir da prática social para o conteúdo e nunca o contrário.

Também sem falar em letramento ou mesmo em função social da escrita, Vigotski (1984, p. 79) já defendia a ideia de que “o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita, e não apenas a escrita de letras.” Para o pesquisador russo, o que se ensina à criança frequentemente na prática escolar é desenhar letras e construir palavras de forma mecânica relegando a linguagem escrita viva a segundo plano e desconsiderando que a leitura e a escrita

10 Diversos autores dedicaram-se aos estudos do letramento no Brasil, com diferentes ênfases em suas pesquisas:

Magda Soares, Ângela Kleiman, Leda V. Tfouni, Roxane Rojo, entre outros. Dados o foco e os limites desta pesquisa, esta discussão não será aprofundada aqui.

32 devem ser relevantes ao aprendiz, devem ter significado despertando na criança uma necessidade intrínseca de incorporar essas práticas ao seu cotidiano.

A concepção de língua escrita que adotamos na intervenção realizada durante a pesquisa se fundamenta em tais estudos, que privilegiam situações de uso real da linguagem pautadas pela abordagem do letramento, inserido tanto no ambiente acadêmico quanto no escolar.

Entendendo a escrita para a vida social como elemento chave do conceito de letramento, concordamos com Kleiman (2007, 2010) que concebe letramento como um conjunto de práticas nas quais a escrita tem papel relevante. Sendo assim, compreende-se a prática social como ponto de partida e de chegada que estrutura e orienta o planejamento das atividades didáticas, sem abandonar os eixos conteudísticos relevantes ao desenvolvimento da escrita. Toda situação comunicativa envolve o uso da língua escrita oportunizando o foco na sistematização de algum conteúdo, uma vez que ressignifica os saberes escolares, mas não os exclui. O que se altera é o movimento na abordagem que, tendo o letramento como elemento estruturante do ensino, parte da prática social para o conteúdo.

Em outras palavras, o que se deve esperar de um trabalho pautado pela perspectiva do letramento é que ele torne o processo de escrita mais significativo para o aluno e não mais fácil, pois, como ressalta Vigotski (1984), o ensino da linguagem escrita é abstrato para a criança, depende de treinamento artificial e requer grande esforço tanto por parte do aluno, quanto do professor. No intuito de tornar as práticas de letramento menos artificiais no tratamento recebido no ambiente escolar, a lógica tradicional de organização de conteúdos seriados se modifica e, por não permitir a adoção de modelos pré-definidos, altera o papel do professor na perspectiva do ensino da língua materna voltado para a prática social, pois faz-se necessária “uma pergunta de ordem sócio-histórica e cultural: quais os textos significativos para o aluno e sua comunidade?” (KLEIMAN, 2007, p.06). Para Geraldi (2014, p.215), nessa concepção de ensino, o papel do professor passa de “ensinante” ao de mediador do processo de aprendizagem do aluno.

Dessa forma, ao incluir-se o uso do dicionário entre as práticas de letramento escolar é necessário propiciar condições para que o aluno alcance a proficiência desejada tornando a prática significativa a ele, o que demanda muito mais que habilidade em localizar palavras por ordem alfabética. Exige o entendimento do dicionário como gênero textual e o conhecimento das informações de cunho linguístico presentes nos verbetes. Assim, nessa pesquisa, as

33 atividades propostas pelo Guia Dicionários em Sala de Aula (RANGEL, 2012) foram, de forma concomitante, consideradas como instrumento de avaliação diagnóstica, que auxilia o planejamento da intervenção educativa, e como instrumento de coleta de dados, por possibilitar a análise da maneira como os alunos lidam com a metalinguagem e com os aspectos gramaticais exigidos numa consulta aparentemente simples e corriqueira ao dicionário.

Vale lembrar que não há dicionário neutro, todos carregam uma dose de ideologia, haja vista, por exemplo, que alguns classificam determinada confissão como religião e outros como seita. Logo, a escolha de um dicionário com finalidade didática não pode ser aleatória, nem pautada por outros interesses que não os pedagógicos, principalmente para não limitar o trabalho em sala de aula, já que o mesmo verbete em um dicionário para crianças e um completo trará significativas diferenças, como exemplificaremos adiante na Tabela 1. Assim suscitam questionamentos se os atuais acervos do PNLD/Dicionários/2012 são compatíveis com as demandas do público que visam atender. Que palavras registram e como as definem? Que palavras excluem? Não terá sido o projeto gráfico supervalorizado em detrimento do número de verbetes?

Uma abordagem adequada em sala de aula, que ensine a consultar os dicionários e possibilite o aumento do grau de letramento do aluno, exige das obras lexicográficas disponíveis a qualidade pedagógica que permita o tratamento significativo de questões linguísticas relacionadas à gramática e ao léxico. Tomando-se o texto do aluno como matéria- prima das análises linguísticas, avançaremos nas questões relativas ao letramento escolar considerando a concepção, proposta por Geraldi (2006), em que a linguagem é vista como forma de interação humana.