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Liames remotos?Liames remotos?

Cap. 5

Limites de uma aproximação folclórica

“E assim aponta o coro para uma lei secreta” [Goethe, As metamorfoses das plantas, verso 6 – Chor: grupo, coesão, acordo], gostaríamos de dizer à coletânea de fatos frazeriana. Essa lei, essa idéia, posso pois representá-la por meio de uma hipótese evolutiva ou também, analogamente ao esquema de uma planta, pelo esquema de uma cerimônia religiosa, ainda que também mediante o agrupamento por si só do material factual, em uma representação “compreensiva” [ou “conspícua” ou “sinóptica”: übersichtliches Darstellung].

O conceito de uma representação compreensiva é para nós de uma relevância funda- mental. Ele designa a nossa forma de representação, a maneira como enxergamos as coi- sas. (Uma espécie de “visão de mundo” [Weltanschauung], sendo esta aparentemente típica do nosso tempo. Spengler.)

Esta representação compreensiva interliga o entendimento que consiste justo em “enxergar as conexões”. Daí a importância de encontrar elos [Zwischengliedern].

Nesse caso, porém, um elo hipotético não deve fazer nada além de direcionar a atenção para a similitude das coisas de fato, para a sua conexão. Como se, para ilustrar uma relação interna do círculo para com a elipse, se levasse uma elipse aos poucos até um círculo; mas não para sustentar que uma determinada elipse tivesse se originado de fato, historicamente, de um círculo (hipótese evolutiva), ao contrário, só para aguçar nosso olhar para uma conexão formal.

Mas, mesmo na hipótese evolutiva, não consigo enxergar nada além de uma roupagem de uma conexão formal.

Wittgenstein, “Observações sobre o Ramo de ouro de Frazer” (Wittgenstein 1993:132)

Plano do capítulo 5

O vampiro na extrapolação de contextos : perguntas de base p. 147 – “... ou Vukodlak, como eles dizem” p. 149 – “A fantasia serve-se de toda sorte de prontas semelhanças” p. 155 – Vampiros em etnografia p. 169 – Via analítica (considerar motivos em contextos muito mais amplos) p. 173 – Folclore e ideologia p. 176

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Como vimos na parte introdutória desta dissertação, o vampiro foi extrapolado de seus contextos de origem para significar toda uma classe de fenômenos. Aí se insinua um pressuposto de universalidade, formulado às vezes explicitamente, outras nem tanto, num número expressivo de estudos, como nos de Montague Summers (1880-1948):

A Assíria conheceu o vampiro muito tempo atrás, e ele vagou pelas florestas primevas do México antes que Cortés chegasse. Ele é igualmente temido pelos chineses, pelos indianos; ao passo que a história árabe repetidamente nos conta de ghouls que assom- bram sepulcros de maus presságios e ermas encruzilhadas para atacar e devorar o infeliz viajante. A tradição é encontrada no mundo todo e de indatável antiguidade. Viajantes e escritores vários, por muitos países, ocuparam-se desses problemas obscuros e estupe- facientes por vezes de passagem, com menor freqüência com erudição e sensibilidade [scholarship and perception] [...]”1

Seria de esperar que uma conceituação niveladora dessa sorte não fosse abonada por estudos mais recentes. Em diversos casos, de fato não o é. No entanto, especificamente quanto à articulação entre criação literária e um hipotético imaginário ancestral, a pes- quisa contemporânea nem sempre apresenta ganhos significativos ou, no mínimo, não é incomum que assuma tacitamente uma correlação entre eles, sem que esta seja submetida a exame. Mais grave, contudo, é a tendência, ainda hoje relativamente difusa em estudos sobre o vampiro, a confundir e homogeneizar contextos culturais muito diferentes entre si. Não há dúvida de que os últimos trinta ou quarenta anos foram marcados por notáveis contribuições nesse campo e que minha generalização acima desmerece as qualidades e os matizes particulares de uma série de estudos. Para mencionar um, Perkowski (2006), por exemplo, não se cansa de separar os domínios do “vampiro folclórico” e do “vampiro lite- rário”. Em que pese a ressalva, ainda assim ele apresenta tais domínios como estágios de um processo, como se obedecessem a uma ordem teleológica ou causal.

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Os materiais relacionados à fada Melusina foram objeto de interpretação seme- lhante. Nas palavras de um especialista:

“A narrativa ‘melusiniana’ não pode ser confinada dentro de nenhum limite cultural, temporal ou geográfico. As criaturas que vêm do outro mundo e seduzem os representantes da humanidade sob determinadas condições ignoram as divisões continentais”.2

Ora, a definição esboçada (“criaturas que vêm do outro mundo e seduzem os repre- sentantes da humanidade sob determinadas condições”) não valeria também para tantas narrativas do vampiro? Com efeito, no léxico de motivos literários de Elisabeth Frenzel, a entrada „Die dämonische Verführin“ (“A perseguidora demoníaca”) relaciona materiais atribuíveis a ambas temáticas, a melusiniana e a vampiresca.3 Como, então, decidir a preva-

lência, para determinado texto, de uma sobre a outra? Ou os dois tipos seriam, em última análise, um só e o mesmo? Por aí vê-se como a premissa de pertença ancestral e mundial- mente disseminada pode facilmente levar a uma redução ao absurdo.

Em que termos cultura popular e folclore costumam ser postulados em relação ao vam- piro? Quais as premissas aí envolvidas? A tentativa de compreendê-lo levará a problema- tizar quatro aspectos: 1. qualidade do material: em que medida o discurso coletado deixa ver uma manifestação “ingênua” ou primária; como nesse mesmo discurso está posto o intermediador, o redator. 2. temporalidade e juízo histórico: quando e em que condições o material foi obtido e acrescido à discussão; ele autoriza uma projeção diacrônica, a validade retroativida de um testemunho? É por estenderem-se no tempo as concepções simbólicas e culturais de uma sociedade ou comunidade que é postulada a sua permanência, vide a cons- trução de uma origem. 3. Essa construção está associada a outra, a questão da identidade nacional, lingüístico-cultural, “racial” (ou étnica, como mais recentemente passou-se a dizer). A maior parte do material “popular” comumente relacionado à temática do vampiro data de um período crucial para o desenvolvimento do que se entende por “nação”, assim também para suas inflexões ideológicas, especialmente o séc. XIX (um aspecto adicional 2 Vincensini 1996:84. O pesquisador cita T. P. Cross, Pierre Gallais (que reconhece ocorrências similares na África, no Extremo Oriente, no Havaí etc.) e Georges Dumézil. Este último anota: “sir J. G.

Frazer a proposé l’hypothèse que ces contes sont des restes de mythologie totémique” (Le problème des Centaures.

Paris: Geuthner, 1929, p. 143 apud loc. cit.). Ao recensear essa bibliografia, Vincensini procura se afastar de tal postura, que no seu dizer “incomoda pela utopia positivista que a funda” (1996:85-86) – nem por isso deixa de incluir em seu corpus narrativas indianas, greco-romanas, europeias (sobretudo medievais), uma celta, uma africana, uma chinesa, uma ameríndia (ibid., pp. 88-90).

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da problematização temporal). 4. Particularidades e relevância de deslocamentos semânti- cos na percepção do objeto (de diversas figuras faz-se “o vampiro”: as conseqüências desse “nominalismo”, por assim dizer, culturalmente carregado e polarizado).

Tais aspectos são o horizonte da discussão a seguir, cuja exposição, no entanto, não segue essa ordem.

Em que termos pode-se dizer que o vampiro literário segue-se ao folclore ou a crenças populares? Se não daí, de onde ele se origina, e como? Metadiscursivamente, quer dizer, nos estudos sobre vampiros, esta correlação é ela mesma um tópos.4

Em síntese, o argumento genealógico proposto por uma série de estudos sobre o vam- piro poderia ser subsumido na forma de um quadro geral que coliga:

“crença popular” depois “desenvolvimento artístico” “ancestral”, mas “mutável”

“abrangente” ...

A partir desse quadro, nem sempre é possível explicar o papel e o modo de interação das diferentes tradições, orais e letradas, que concorrem parta a conformação do tipo do vampiro. Isolemos cada atributo para compreendê-lo melhor. Vou me deter primeiro sobre certo aspecto “popular”.

“... ou Vukodlak, como eles dizem.”

Os mais antigos testemunhos que conhecemos de representações reunidas sob o tipo do vampiro são praticamente unânimes nisto: descrevem-nas como integrantes de um imaginário coletivo, popular. Antes de investigar o objeto desse imaginário (os “vampiros 4 Soloviova-Horville (2011:10): “En effet, avant d’analyser le personnage littéraire du vampire, nous devons

comprendre comment cette vision du mort se nourrissant de sang humain arriva sur la scène occidentale, quelles furent ses origines, et comment elle en vint à revêtir de nouvelles formes. Force est de constater que les croyances slaves aux vampires restent méconnues et que leur réception en Occident n’a pas vraiment intrigué les chercheurs. Les ouvrages généraux où il est question de vampirisme consacrent très peu de place à l’étude du vampire du folklore slave”.

Montague Summers (1928:273): “to regard such traditions merely as literature would be not only to look at

them from a wrong perspective but to misrepresent their quality and essentially to pervert their purpose”; (ibid., p.

299): “It will be remarked that in his treatment of the vampire tradition Dumas [...] the dramatist and the writer

of romances is actually inexact and but rarely to be met with, and only then in folk-lore not of the first value”.

Stefan Hock (1900:vii): “Tratou-se, ademais, de apurar a postura científica da Aufklärung no séc. XVIII, que reprovava a crença popular, de outro lado a afável assimilação do material [Stoff] pelo Romantismo no séc. XIX”.

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folclóricos” e seus assemelhados), comecemos por indagar quem seria o seu sujeito, isto é, em que medida nos são dadas a conhecer as pessoas e as comunidades invocadas para se descrever uma “crença”.

Para colocar os termos da questão, lanço mão de uma ocorrência relativamente tardia, no que tange à difusão da temática vampiresca.

O mais audaz Haiduque fugiria à toda, frente à aparição de algum espectro, fantasma ou outra diaba quetal, aos quais nunca deixam de ver as escaldadas fantasias dos homens crédu- los e predispostos. Eles não se envergonham desse terror; e replicam mais ou menos com o dito de Píndaro: “o medo que provém dos espíritos afungenta até os filhos dos Deuses”. As Mulheres Morlacas são, como é bem natural, cem vezes mais temerosas e visionárias do que os homens, e algumas delas, à força de ouvirem assim ser-lhes dito, crêem verdadeiramente serem bruxas.5

Da notável obra do abade Fortis (1741-1803), escolhi esse parágrafo6 por ele explicitar

o ponto de vista do observador, que não se pretende neutro, mas vê e julga de acordo com seus elevados padrões de instrução, moral e reta fé. Esse juízo é exposto, dentre outros aspectos, numa retórica da contraposição: coragem/terror, virtude/vergonha, realidade/ fantasia, humano/daimônico, masculino/feminino. Mas a contraposição fundadora desse discurso é anterior, é a que existe entre o homem “culto” e o “simples”. Quem, na justifi- cativa do temor sobrenatural, reconhece o dito de Píndaro não é o sujeito da concepção (aqui: da crendice), mas o abade vêneto. Fortis não simplesmente condena esse povo, tampouco apenas compadece-se dele. Ao se interessar por sua cultura material e simbólica, sua vida e costumes, língua, geografia e história, converte-os num objeto digo de atenção.7

Na passagem acima, o que define “os morlacos” é credulidade, predisposição, sugestão. 5 Alberto Fortis, Viagem à Dalmácia, Dos costumes dos Morlacos, § 8: Superstições (Fortis 1774:64). 6 E não o imediatamente anterior a ele, centrado na crença em seres vampirescos... Encontram-se ambos trascritos e traduzidos em apêndice (ver seção V. c).

7 Dos costumes do Morlacos: “Voi avrete più volte, nel tempo del soggiorno vostro fra noi, udito parlare

de’ Morlacchi come d’una razza d’uomini feroce, irragionevole, priva d’umanità, capace d’ogni misfatto; e forse v’avrà sembrato, ch’io sia stato assai più temerario di quello si deggia permettere ad un Naturalista, scegliendo il paese da essi abitato per oggetto delle mie peregrinazioni. Gli abitanti delle Città litorali della Dalmazia rac- contano un gran numero de’ fatti crudeli di questi Popoli, che dall’avidità del rubare condotti si portarono sovente agli eccessi più atroci d’uccisioni, d’incendj, di violenze: ma que’ fatti [...] o sono d’antica data, o [...] i caratteri, che portano, deggiono piuttosto fargli ascrivere alla corruzione di pochi individui, che all’universale cattiva indole della Nazione. [...] Io mi credo di dovere alla Nazione, da cui sono stato così ben accolto, e umanamente trattato, un’amplissima Apologia, scrivendo ciò, che personalmente delle sue inclinazioni, e costumi ò [sic: ho] veduto [...]”

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Entre “naturalista” (como se define o próprio Fortis, na abertura ao livro) e povo retra- tado, arma-se um jogo de concepções divergentes. No entanto, a despeito da mediação do redator, o texto ainda assim consegue nos comunicar um frame of mind particular, o das mulheres cuja fantasia as levou além da crendice em aparições, a ponto de acreditarem serem bruxas elas mesmas.8

Voltando para o plano geral, os dados de que dispomos acerca do vampiro e seus con- gêneres – textos, na maioria dos casos – quase sempre trazem a marca de um observador externo. Mais do que isso, em muitos casos essa voz é tudo o que resta, como o atestam os tantos arrolamentos e sumários de práticas e crenças folclóricas do séc. XIX ou do início do seguinte.

Até hoje, é quase generalizada a crença em Blutsauger [“sugador de sangue”] em meio ao povo camponês da Prússia. Trata-se de pessoas que, após terem sido enterradas, ressurgem de noite e sugam o sangue de seus entes sobrestantes, de modo que venham a segui-los na morte.9

Apesar de os compendiadores anotarem, quanto a essa informação: “transmitido oral- mente” [nach mündlicher Ueberlieferung], da oralidade ela mesma resta apenas um conte- údo sintetizado. Para além da sumária terminologia [Blutsauger], não há qualquer registro de suas particularidades expressivas (p. ex. estilísticas, narrativas, dialetais).

Como comparar literatura e folclore? Trata-se, sem sombra de dúvida, de materiais de natureza e expressão diferentes, mesmo se com seus pontos de contato.10 (Encaminhamento

que tende a responder de uma determinada maneira à pergunta que formulamos inicial- mente neste estudo: O vampiro, enquanto objeto de uma temática, inclui algo que está fora da literatura?) Numa aproximação possível, diríamos: comparemos, num e noutro domínio, as narrativas e imagens poéticas enquanto tais. Isso seria o desejável. Infelizmente, malgrado a relativa abundância de comentários folclóricos, dispomos de um número bastante limitado de narrativas orais diretas – se não apenas levantadas, decerto pouco

8 Um ponto que interessa a Carlo Ginzburg, autor de mais de um livro sobre o assunto.

9 “Fast ganz allgemein ist noch bis auf den heutigen Tag unter dem Landvolke Preußens der Glaube

an Blutsauger. Es sind dies Leute, die, nachdem sie begraben worden, nächtlich wieder auferstehn und ihren zurückgebliebenen Angehörigen das Blut aussaugen, so daß diese hinsterben müssen.” Tettau & Temme

1837:275.

10 Cf. Jakobson & Bogatyrev, “Die Folklore als eine besondere Form des Schaffens”, de 1929 (in Bogatyrev 2011:89-99 | trad. francesa in Jakobson 1973:59-72).

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divulgadas ou nunca traduzidas –, de testemunhos de primeira mão acerca de vampiros enquanto integrantes de uma simbologia popular: discursos, digamos, mais independen- tes dos mecanismos de composição letrados. Se a comparação de uma narrativa oral para com um texto já compreende um hiato de registros, é preciso admitir que esta seria uma situação ideal. No mais das vezes, temos de lidar com saltos ainda mais largos.

Temos de nos haver com informações indiretas e interessadas (o texto de um redator que comenta as práticas e resume o discurso de um Outro). O que, em termos práti- cos, resulta numa radical restrição qualitativa dos materiais disponíveis. Recorro a uma observação muito razoável de Carlo Ginzburg quanto às implicações do tipo de material que se tem sob exame: “A propósito da feitiçaria (trata-se de um dado óbvio, mas não é demais repeti-lo) dispomos apenas de testemunhos hostis, que provêm de demonólogos, inquisidores e juízes ou foram por eles filtrados”.11 Se, de acordo, até então na historio-

grafa do sabá das bruxas todo o esforço de pesquisa concentrava-se num lado da moeda, isto é, na história contada pelos inquisidores; para o vampiro, num quadro geral com louváveis exceções, por vezes parece que os lados (sabe lá quantos) ainda não foram sufi- cientemente distinguidos e em seguida articulados. Nisto, quanto ao nosso objeto, o que põe em xeque a compreensão geral de uma simbólica não é apenas a prevalência de um prévio posicionamento no discurso (valendo-nos ainda do paralelo ginzburguiano: do inquisidor ao inquirido); é, mais ainda, a confusão entre esses e outros universos distintos (embora comunicantes em suas expressões), entre representações doutas ou detentoras do poder de um lado e míticas ou populares de outro.

Resta-nos então tentar reconhecer, em documentos legados por litterati, traços e subs- tratos de um universo oral? De algumas décadas para cá, historiadores se debruçaram sobre esse tipo de problema e realizaram pesquisas metodologicamente bastante úteis nesse sen- tido. Para o período medieval e tardo-medieval, há alguns gêneros textuais privilegiados por uma vertente historiográfica da “cultura popular”: livros penitenciais, exempla, sermões, vidas de santos, catequismos e assim por diante. Uma boa exposição dos porquês destes gêneros dá-nos o historiador russo Aron Gurevich: Ainda que autores medievais pudessem ser vertidos em teologia e raciocínio abstrato (o que nem sempre é garantido), para tais autores, trata-se aqui antes de mais nada de comunicar-se num plano onde tudo tem de

11 Ginzburg 1991:21; devo a esse livro a indicação do texto aqui epigrafado de Wittgenstein, que me ajudou a formular um grupo de problemas.

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ser exposto de maneira apreensível, mesmo concretamente, para destinatários incultos.12

Os mais elevados seres espirituais são transformados em coisas materiais demonstráveis, são personificados e corporificados; um padre ou um monje educados podiam perceber perso- nificações de pecados e virtudes como metáforas ou alegorias, mas sua audiência provavel- mente acrescentava carne e osso à metáfora e acreditava em sua existência real.13

Uma leitura não de todo dissemelhante de textos medievais, porém buscando retra- çar como nos seja possível a religião germânica antiga, já fora desenvolvida por Wilhelm Boudriot (1964), que para tanto também reconhece a relevância, dentre uma documentação mais extensa, dos sermões de Cesário de Arles (bispo da “Gália romana”, 469-542), retomados entre outros por Martinho de Braga (†580); e a das diretrizes para erradicar práticas e crenças “pagãs”, mais tarde heréticas, tais como o Canon episcopi e suas repercussões (sécs. X-XI).

Outra afinidade é encontrada em trabalhos – embora não preocupados propriamente em formular uma “questão popular” – que se perguntavam pelas mentalidades envolvidas na perseguição a bruxas e hereges e que reuniram, na penúltima passagem de século, uma documentação inequiparável, como de Joseph Hansen, Ignaz von Döllinger, Hermann Schmitz (na interface entre demonologia, inquisição e manuais para confessores) e Jean Marx (processos de inquisição no Dauphiné).14

12 O livro de Gurevich, Medieval popular culture, é sobre diferentes formas de fazê-lo. No capítulo ini- cial, “Popular culture and medieval Latin literature”, esclarece em linhas gerais os modos dessa relação para com os gêneros da hagiografia: “The lives display an impressive array of variations on a single set of themes. They

contain much of popular fantasy, with its familiar motifs and images” (1988:20) – dos penitenciais: “Although the penintentials were written by clergy, some even by eminent ecclesiastical authors well versed in abstract logical operations, their content and form connect them to popular consciousness” (28) – da legislação: “The nature of the penitentials invites comparison with the records of law in the early Middle Ages. Both the guides for confessors and barbarian law-codes contain lists of offences and indicate punishments for them” (27); etc. O argumento é o de

que o endereçamento às camadas não instruídas da sociedade determinou o discurso, dotando-o de uma voz popular não encontrável nos grandes monumentos da média latinidade; donde pesquisá-lo. Sem dúvida, é algo desssa natureza que encontramos expresso no incipit do Corretor et medicus de Burcardo de Worms: “[...] et docet unumquemque sacerdotem, etiam, simplicem, quomodo unicuique succurrere valeat, ordinato vel sine

ordine, pauperi, diviti, puero, juveni, seni, decrepito, sano, infirmo, in omni aetate et in utroque sexu” [“... e ensina

a todo e qualquer sacerdote, até ao simples, o modo de ser eficaz em socorrer a quem quer que seja, ao ordenado ou ao que não recebeu as ordens, ao pobre, ao rico, à criança, ao jovem, ao velho, ao decrépito, ao saudável, ao enfermo, em qualquer idade e de ambos os sexos”] (in Schmitz II:407).

13 Gurevich 1988:11.

14 Que não se depreenda, do sumário delineamento bibliográfico acima, uma cronologia da pesquisa por “elementos populares” na historiografia medieval. Alexander Kaufmann publicara já em 1850 uma monografia que se perguntava pela “história cultural” [Kulturgeschichte] legada pela obra de Cesário de

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