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1 jogo os rearranjos de modelos e motivos poéticos e narratológicos, e os modos de pro dução do texto

Não se trata de estabelecer uma divisão intrasitável entre erudito e popular. O esforço vai mais na direção de, ao buscar compreender essa dicotomia, ao mesmo tempo relativizá-la, por submetê-la a uma crítica. O próprio sentido que se dá a “popular” adquire uma novís- sima especificidade num período crucial para os desenvolvimentos literários e humanísticos do vampiro – como atestam os casos agudos da cena teatral e do mercado editorial em Paris e Londres no séc. XIX. Contemporaneamente a isso, o “velho” popular ia também ele sendo descoberto e inventado nas pesquisas de Volkskunde, de folk lore. Se o “popular” é uma construção, não menos do que o vampiro o é, o presente trabalho dá mangas a essa hipótese, no intuito de averiguar se um poderia lançar alguma luz sobre o outro.

Dissemos que o vampiro é mais do que personagem, é um modo de conceber per- sonagens. A pesquisa sugere que, além disso, em um núcleo espesso de obras, o vampiro está fortemente ligado a determinados esquemas narrativos – e essa é mais uma conseqüência de compreendê-lo como um tipo literário.

Aqui entra a primeira abordagem proposta: o estudo das convenções que se materia- lizam no corpus (focados na parte II desta dissertação). A narratologia e o olhar histórico fornecem boas ferramentas. O viés que os amarra é o comparatismo.

Vamos então retroceder a diversas tradições para procurar, nos textos, lógicas capa- zes de explicar a tópica e a estrutura de um ou mais modelos narrativos ideais, que restam

38 Já nas primeiras décadas do século passado observava Viktor Chklovski:

“On peut aussi faire bien des objections à la théorie ethnographique sur la question de l’origine des thèmes.

Les répresentants de cette doctrine expliquent les ressemblances entre thèmes narratifs par une identité des for- mes de vie et des croyances religieuses. Cette doctrine a concentré toute son attention sur les thèmes, n’évoquant qu’incidemment la question de l’importance que pouvait avoir l’influence des schémas de contes et se désinteréssant totalement des lois de l’affabulation. [...]

En tant que règle générale j’ajouterai ceci : l’œuvre d’art est perçue sur le fond et au moyen de ses relations avec les autres œuvres d’art. La forme de l’œuvre d’art se définit par ses rapports avec les autres formes ayant existé avant elle. Les éléments de l’œuvre littéraire sont obbligatoirement forces, c’est-à-dire accuses, « vocifères ». Ce n’est pas seulement la parodie mais, d’une façon générale, toute œuvre d’art qui se crée en parallèle et en opposition à un modèle. (“Rapports entre procédés d’affabulation et procédees généraux du style” [Chklovski 1973:33; 37],

tradução de Guy Verret).

Convém esclarecer que, no passo citado acima, “tema” não é entendido como “temática”, mas com referência à definição de A. N. Vesselovski (e que é objeto de crítica por Chklovski): “Par thème j’entends

l’unité narrative la plus simple [...]” (apud Chklovski 1973:30). Talvez, portanto, algo mais próximo do que

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ainda a ser sintetizados. Esse caminho põe primeiramente em evidência a cristalização no clichê e no seu correlato, o estereótipo – também, se quisermos, no dizer de Gérard Genette (1982), o “palimpsesto” (uma literatura não apenas “em segundo grau”, mas aqui em ter- ceiro, em quarto e aí por diante). No entanto, para que se compreenda o vigor da temática, não basta se ater apenas a esse núcleo, digamos, replicante de obras.

Assim procedendo num universo mais amplo (parte III, particularmente cap. 6), podemos encontrar motivos afins aos do vampiro, ou até os mesmos motivos que futu- ramente irão caracterizá-lo (tais como sedução, ataque no sono, vítima exangue), muito embora organizados de uma maneira... “não-vampiresca”, isto é: muitas vezes, dissociados entre si, não ordenados em torno de uma personagem, como no caso do vampiro.39

Devemos então atentar para as funções narrativas, centradas em relações de vitimização e contra-ataque; o alinhamento de um modelo fabular (mais uma construção histórico- literária: num exemplo fácil, constatamos que o herói vingador, o caçador de vampiros, só se firma num segundo momento dos desenvolvimentos narrativos e dramáticos). Sob essa perspectiva, os escritores têm à disposição um enorme acervo de peças-chave e modos de armá-las – mas certos arranjos são mais utilizados do que outros. E mais: cada motivo nar- ratológico, cada imagem poética se presta a diferentes empregos; o que perfaria no tempo uma sub-história desses motivos literários. Tentar trazer à tona alguns desses processos e valorar seu papel é o horizonte de minha pesquisa.

Um número considerável de elementos e modelos que entraram em jogo não são, é claro, de exclusividade do vampiro, mas comuns a boa parcela da literatura ocidental. Lemos de amantes que prendem seus amados por um misto de sedução e poderes mági- cos desde a Circe homérica. A revelação surpreendente da verdadeira natureza de uma personagem já foi assunto para Aristóteles em sua Poética. Assim também tiveram a mais diversificada expressão alguns dos motivos e imagens que ajudaram a situar literariamente o vampiro, como da lua; do amor proibido; do oponente ambíguo: elementos encon- trados, de maneira isolada ou combinada, virtualmente em toda parte. Nenhum desses é exclusivamente peculiar ao vampiro, embora sejam recorrentes nele. É na medida que a obra se conforme mais ou menos a certas associações de motivos e imagens, a certos modelos narrativos, que a figura do vampiro se destaca ou não nela. Assim se explica que, numa massa enorme de escritos, possamos reconhecer o vampiresco seja mais difu- samente (quando o texto em questão lança mão de apenas alguns daqueles elementos,

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ou os dispõe de maneira menos tradicional), seja, quando se atém de perto aos modelos

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