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para que então seja possível compreender como teriam sido unidos.

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mor

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silvícolas ou élficas aí pudessem ou devessem figurar com a mesma justiça. Mas esses quatro – lobisomem, bruxa, íncubo, morto – servem-nos como pontos cardeais para compreender a moldura conceitual, narrativa e simbólica em que o vampiro grassará; nesse sentido, são os vértices virtuais mais representativos legados pelos textos medievais, par- ticularmente aqueles que foram relacionados à temática do vampiro por estudos espe- cializados.

Este capítulo abordará aspectos a serem levados em consideração, partindo de cada um desses tipos e dedicando uma discussão um pouco mais detida a respeito do morto. Proponho-me apenas a uma abordagem tópica, tendo em vista, antes de tudo, o desenvol- vimento de nosso assunto. Não seria o caso aqui, mesmo que isto estivesse ao meu alcance, e não está, de considerar os tipos medievais em profundidade: livros inteiros foram e serão escritos sobre tais representações, sem no entanto esgotar os seus sentidos. Basta-nos, para os propósitos da argumentação, um traçado de contornos sumários; todavia necessário para o contexto onde veio se dar a tematização do vampirismo.

“Lobisomem”, upir e vukódlak: ligar o nome à coisa?

A etimologia é, como dizia, uma das sendas pelas quais historiadores do vampiro buscam reconstruir as suas origens. Dois étimos cruciais ao vampirismo comparecem em teste- munhos do início do segundo milênio. Vamos começar nosso trajeto tópico examinando, muito sucintamente, duas dessas ocorrências.

O upiro autógrafo. Entre as mais antigas ocorrências conhecidas do étimo *pir- (quando não a primeira) consta do cólofon de um manuscrito russo tradicionalmente reportado como datando de 1047. Na verdade, os MSS conhecidos são dos sécs. XIV a XVI – e o texto se diz cópia de um manuscrito anterior, com aquela data.31

Dentre os filólogos e historiadores não interessados particularmente na trajetória dos vampiros, não há dúvida de que a locução “Upir’ Lichy” seja simplesmente o nome ou cognome autógrafo do monje (ou príncipe, querem alguns) do MS original, como aliás declarado pelo próprio. Observe-se que nada sugere que o vocábulo upir’ tivesse aqui uma 31 D’Avril 1876:153-154. André Vaillant (1955:7n) anota que existe outra cópia do mesmo docu- mento, ligeiramente mais tardia. Na ausência do MS original, atribuir certeza à existência de um docu- mento ipsis litteris no séc. XI envolve algum grau de conjectura: senão por outro motivo, porque a trasmissão pode ter sido intermediada por outro[s] MS[S] que hoje desconhecemos. É curioso como, mesmo dentre alguns dos mais sérios historiógrafos do vampiro, vigora a tendência a se fazer recuar a datação efetiva de documentos importantes para o assunto.

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particular conotação detratora, um significado lendário, qualquer coisa que pudesse ser chamada vampiresca.32 Em documentos russos dos séculos seguintes, o vocábulo também

aparece nomeando pessoas, ou ainda lugares.33

Nem todos os estudiosos do vampirismo concordam com essa interpretação, porém. Há um grupo de pesquisadores que credita ao nome Upir’ Lichy um significado contí- guo a seres nocivos.34 Por exemplo: recentemente, Soloviova-Horville reafirmou que a

partir do séc. XV teria havido um declínio de uso de upyr’: “o termo russo que designa o vampiro”.35 – Que hoje designa, acrescentaríamos. Não foram encontradas suficientes

evidências corroborantes (de meu conhecimento ao menos) de que na Rússia anterior- mente ao séc. XIV ou XV o termo tenha de fato designado uma criatura assim. A fonte citada por Soloviova-Horville é Linda Ivanits, que por sua vez se reporta a Felix Oinas.36

Este afirma:

The term upyr’, “vampire,” has been unknown among the Great Russians during the past few centuries (Tokarev, 41). How are we to explain the curious fact of the existence of the notion of “vampire” among them, and the lack of a special term for it?37

O problema é que a existência, na Rússia medieval, da “noção de vampiro”, como a

32 O documento é outrossim considerado revelante por testemunhar um momento de passagem do uso da escrita glagolítica – encontrada por São Cirilo e seu irmão Metódio (séc. IX) para evangelizar os eslavos – para a cirílica, que incorporou mais elementos do alfabeto grego. Ver, para além dos artigos citados de D’Avril e de Vaillant, também Franklin 2002:95.

33 Dados como nomes de camponeses: Makarenko Upir (1495); Klim’ Upir’ (1600), – Como topo-’ Upir’ (1600), – Como topo- Upir’ (1600), – Como topo-’ (1600), – Como topo- (1600), – Como topo- nímia: Upiry; Upirów (Mozyński in Perkowski 2006:216).

34 Dentre eles Oinas, Perkowski, Soloviova-Horville. Pergunto-me: i) se esse sentido existia à época; e ii) se o caso sob exame indicasse uma antonomásia pejorativa, o que teria levado o escriba a referir a si mesmo dessa maneira?

35 Solovieva-Horville 2011[2006]:41-42.

36 Ivanits 1989:121-122; Oinas 1985:111; 125 ~1978:437. 37 Oinas 1978:437.

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chama Oinas, não é um dado.38 A simples (e pontual) coincidência do étimo não basta

para afirmá-lo. As referências giram, giram39 e não chegam a ocorrências palpáveis (que

podem até existir, a nós desconhecidas).

E comem a lua ou o sol. Vamos agora atentar para o sentido, na glosa de um impor- tante manuscrito dos tempos do Império Sérvio (que teve seu ápice no séc. XIV), do vocábulo vl’kodlaci (plural de vl’kodlak). Na Idade Moderna, este termo – ligado ao étimo *v’lk’ (“lobo”)40 – designará seja “lobisomens”, seja “vampiros” folclóricos, por

exemplo na Sérvia ou na Bulgária. Voltando ao manuscrito sérvio medieval, trata-se de uma ocorrência de qua lidade muito diferente da acima discutida, pois percebemos, ao lado da ocorrência de um étimo estreitamente ligado aos modernos vampiros balcâni- cos, um possível elo paradigmático: com efeito, a glosa fala de criaturas da ordem do sobrenatural.

Antes de comentar a glosa, é necessário localizar o contexto no qual foi inscrita. O MS é uma cópia41 do Nomocânon ou Zakopravilo atribuído a São Sava (1174-1236),

38 Ainda citando Tokarev, Oinas observa que “the very belief in ‘a living dead,’ who brings harm to

people, existed among all the East Slavs as well as among other peoples” (Oinas, ibid). Como argumento para

formular sua hipótese (a ser mantida no horizonte) – de que a ausência na Rússia de uma denomina- ção específica para o cadáver redivivo se deva à sua assimilação aos heréticos –, Oinas rebate a seguinte colocação de Zelenin: “A noção do vampiro sedento de sangue [blutgierigen] penetrou, [vindo] da Europa Ocidental, apenas até a Ucrânia e a Bielorússia (ucraniano упир, bielorusso вупор); é desconhecida dos grandes-russos. Aqui essa noção rapidamente tornou-se doméstica, pois ela tem muito em comum com o culto local dos mortos impuros [...]” (Zelenin 1927:393; rebatido por Oinas 1978:436). Contrariamente a Zelenin, Oinas reconhece a antiguidade da noção em todo o Leste Europeu. Embora não possamos considerá-la “bem documentada” antes da Era Moderna (e não só na Rússia), como afirma Oinas. Os exemplos a que recorre (ibid.) são sempre aqueles, registros de pessoas chamadas Upir’. Já Solovieva- Horville, embora compartilhe da tomada de posição de Oinas, reconhece que “Les documents écrits qui

évoquent le vampire tel qu’il était imaginé par les Slaves méridionaux demeurent en très petit nombre jusqu’au début du XIXe siècle” (2011:46) – isto é, são poucos os testemunhos anteriores ao período em que o tipo

do vampiro ganhou corpo nos círculos jornalísticos, teóricos e poéticos ocidentais. 39 Oinas, Burkhart, Ivanits, Tokarev, Mozyński, Zelenin...

40 Dersken, Etymological dictionary of the Slavic inherited lexicon.

41 Manuscrito do mosteiro de Ilovica, a mais antiga (1262) das 11 cópias completas em sérvio de que dispomos, uma das 4 que foram transcritas (Petrović 1991:xlvi; Štavljanin-Đorđević 2005:xlii). O estabe- lecimento do texto e sua tradução para o sérvio moderno começou nos anos 1950; a consulta cruzada a fontes gregas obrigou à repetida adiação da conclusão dos trabalhos (a própria estrutura do livro descarta a suposição anterior de que o Zakonopravilo tivesse como fonte um único nomocânone grego). Embora o título seja um substantivo singular, ele indica uma pluraridade: o livro contém mais de cem textos bizantinos de diverso conteúdo (Petrović 2005:xxxii-xxxv).

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líder espiritual sérvio. Um nomokánon é uma compilação bizantina de lei civil (νόμους) e ordenações eclesiásticas (κανόνες). Particularmente, este é um nomocânone de enorme importância na história da Sérvia, que à época dominava grande parte da Península Balcânica. De acordo com Miodrag Petrović, eminente pesquisador e editor da obra, cabia ao Zakonopravilo de São Sava42 garantir uma coesão duradoura: a unidade eclesi-

ástica, dogmática, canônica e litúrgica entre a Igreja Ortodoxa Sérvia e todas as demais igrejas ortodoxas. O livro visava à emancipação do arcebispado da Sérvia, o que oca- sionaria, dentre suas conseqüências políticas, que o rei da Sérvia passasse a ser coroado diretamente pelo arcebispo, eliminando a intercessão de outra autoridade eclesiástica. Para tanto, São Sava teve de submeter ao patriarca de Constantinopla e ao imperador de Bizâncio um conjunto de códigos que comprovasse a capacidade de administrar autono- mamente o cristianismo na Sérvia.43 Estabelecido pois o arcebispado autocéfalo da Sérvia,

foram enviadas cópias do nomocânone para todos os bispos de sua circunscrição.44

Para terminar a moldura contextual, tenha-se em mente o que representava (e veio a representar, na construção cultural-identitária dos séculos seguintes) o poder sérvio medieval na história balcânica. Grosseiramente os sécs. X a XV são marcados por domí- nios sucessivos e sobrepostos da região – búlgaro, sérvio etc. –, antes da conquista oto- mana. No equilíbrio das forças, a Sérvia joga um papel central a partir da ascenção da dinastia Zemanja (segunda metade do séc. XII) até as décadas finais do séc. XIV.45 É pois

42 Também indevidamente conhecido como Krmčija, título que deriva do livro russo por ele ins- pirado, composto aproximadamente um século e meio depois da compilação de São Sava (Petrović 2005:xxxi).

43 Petrović 2005:-xxxii. O livro não se limitava a regular a vida eclesiástica, mas também a vida parti- cular dos fiéis, aí inclusos direito matrimonial e de herança. Entrelaçam-se interesses clericais e de estado; em contraponto, há relativa independência de uma e outra esfera: Sendo Deus origem comum do poder eclesiástico e secular (como afirmado por Justiniano), segue-se o princípio da concordância (symphonía) entre ambos. Em essência, a idéia de que as duas instituições, Igreja e Estado, igualmente respeitam as leis divinas – nenhuma é superior à outra (Petrović 1990:151). A noção de symphonía será refirmada (Petrović, ibid.) pelo código do rei Stefan Dušan (ca. 1308-1355), texto que também traz uma postulada contribuição para a história do vampiro.

44 A circulação do livro foi muito além dos territórios sérvios. De acordo com Sergije Troicki: “From

1219 to the 13th cent., and even later on, this book served as the chief legal source, a corpus juris utriusque in the entire Eastern Slavdom, in all Orthodox and Slavic Churches, and partly in the states with Orthodox Slavonic population – in Serbia, Bulgaria, Russia and, partly, in the Romanian Church”. Ainda hoje é a compilação

nomocanônica de referência da Igreja Ortodoxa Sérvia, como decidiu o Santo Concílio Episcopal de 1939 (apud Petrović 2005:xxxiii).

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numa época crucial para a construção histórica da identidade sérvia que vieram à luz o Nomocânone de São Sava e o Código de Stefan Dušan.46

Vamos pois à glosa em questão.

Os perseguidores de nuvens são chamados pelos camponeses de vl’kodlaci. Pois, quando some a lua ou o sol, diz-se: os vl’kodlaci devoram a lua ou o sol.47

Note-se que a primeira frase é não é redutível a uma predicação simples, tal como “vl’kodlaci são perseguidores de nuvens”. Ela envolve (para em seguida julgá-lo) um ato anterior de nomeação, por parte dos “camponeses”, como estes são por sua vez nomeados. A frase seguinte também contrapõe duas “traduções”, dois modos diferentes de explicar os fenômenos cósmicos: de um lado, o glosador afirma que a lua ou o sol desaparecem; de outro, na concepção dos camponenes, os vl’kódlaci os teriam devorado. Daí que estes sejam predicados como “perseguidores de nuvens”.

Agora, vamos ao que a glosa não diz expressamente. Que criaturas são essas? Além dos nomes, temos a associação com o eclipse lunar e solar (pelos camponeses), com as nuvens. Aparecem no plural: significariam uma espécie?

Não sabemos se a concepção dos camponeses, ali anotada, supõe seres celestes, cósmi- cos; se uma manifestação cósmica de seres que transitam também neste mundo; se o étimo aqui de fato implica (como seria de se esperar?) uma conotação de lobo, e qual. Uma coisa é certa: há aqui uma dimensão mítica envolvida – e reconhecê-lo não implica afirmar que vl’kodlaci fosse entendido apenas assim, à época. Segundo: que essa concepção mítica é 46 Código legislativo do tsar sérvio Stefan Dušan (séc. XIV), repetidamente retomado por historia- dores do vampiro (Hock 1900; Perkowski 2006; Soloviova-Horville 2011...) por conta de um de seus decretos, que condena exumação e cremação de cadáveres. A questão envolve mais dificuldade, porém. O código de Stefan Dušan é uma composição bastante complexa, uma “costura” que é debatida entre especialistas em eslavística medieval, em direito canônico e civil. Para mencionar apenas um problema crucial, o código, tal como chegou a nós, mostra-se lacunar em mais de um aspecto. Se é razoavelmente detalhado em artigos criminais (não de todo, porém), cala quanto a importantes questões da vida civil, tais como o direito matrimonial e de herança, que deveriam estar contemplados num instrumento legislativo dessa envergadura. Lacunar também naquilo que nos interessa diretamente: com efeito, nas versões do código de Dušan a nós conhecidas, em contraposição aos corpos legislativos gregos que lhe têm prece- dência, o supracitado artigo é o único que delibera acerca de recriminadas práticas funerárias (Jireček 1900:162). Parece-me portanto que não estamos autorizados a tirar conclusões tão peremptórias – como a que explica o artigo de legislação como reprimenda à crença em vampiros – enquanto não nos forem conhecidas as demais balizas que cercaram sua inserção naquele sistema legal.

47 Zakonopravilo svetoga Save [Nomokánon de São Sava], fo. 156b (Petrović 1991). Rendição indireta a partir da tradução latina de Vatroslav Jagić (1881:91) confrontada com a inglesa de Perkowski (2006:357).

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