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Capítulo 2 – Um novo contrato social?

2.3. Liberdade

A liberdade é um princípio jurídico estruturante de um Estado. Como refere Paulo Otero, “a liberdade constitui a própria raz~o de ser do Direito”, uma vez que “o sentido e a raz~o de ser das normas jurídicas encontram-se na circunstância de o Homem ser livre” 117. O Direito só poderá cumprir o seu papel enquanto modelador de comportamentos se as pessoas tiverem a liberdade de seguir ou não determinada regra de conduta, sendo certo que se se afastarem do modelo de comportamento que está estabelecido, sofrerão consequências. Por sua vez, Jorge de Figueiredo Dias afirma que “a liberdade encontra-se ali onde se considera o acto singular determinado pelo eu ou pela personalidade do Homem que actua, onde ele se considera emanação ou expressão daquele eu ou personalidade” 118. De facto, “a concepç~o de nós mesmos como agentes livres éfundamental para toda a nossa autoconcepç~o” 119, ou seja, a autoconcepção do sujeito implica a consciência da liberdade, isto porque “a liberdade é uma tendência, um instinto fundamental do homem. Todos os homens aspiram, naturalmente, à liberdade e a um pleno desenvolvimento das suas fôrças e faculdades. Porisso mesmo é que todo o homem normalmente constituído começa por repelir sempre, instintivamente, a lei heterónoma que a vontade de um outro, seja êle quem fôr, pode querer impor-lhe. O sentimento indestrutível de que êsse outro homem no fundo é igual a êle, é um sentimento natural” 120. Assim, a liberdade e o Direito “n~o s~o incompatíveis nem oponíveis; s~o complementares”, uma vez que para que a liberdade seja concretizada “precisa do direito para se afirmar na sua plenitude”, mas depois esta “sobrepõe-se ao próprio direito na medida em que o condiciona e o “obriga” a pautar-se pelas determinações que lhe envia” 121.

117 Cf. Paulo Otero, Lições de Introdução ao Estudo do Direito, vol. 1, tomo 1, Lisboa, Pedro Ferreira, 1998, pp. 220-221.

118 Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa, Direito Penal, 2.ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 1983, p. 135.

119 Cf. John Searle, Mente, Cérebro e Ciência, Colecç~o “Biblioteca de Filosofia Contempor}nea”, n.º 1, Edições 70, 2000, trad. de Artur Morão, p. 105.

120 Cf. Luís Cabral de Moncada, Do Valor e Sentido da Democracia – Ensaio de Filosofia Política, Coimbra, Coimbra Editora, 1930, p. 26.

121 Cf. Isabel Banond, Um dos “Arquivos” mais Antigos e Complexos da Humanidade: Algumas Palavras

acerca da Ideia de Liberdade, Separata de Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia,

51 Ora, esta possibilidade de escolha de comportamentos demonstra-nos que “a liberdade envolve, por conseguinte, uma dimens~o de valor substancial e constitutivo da própria pessoa humana: o direito à independência e à autonomia da vontade” 122, enquanto direito fundamental, que poderá ter várias manifestações. Por exemplo, na CRP podemos encontrar liberdades pessoais, liberdades económicas, liberdades de participação política e liberdades laborais, entre outras. Deve, no entanto, ser feita uma distinção: como refere Isabel Banond, “uma coisa é a liberdade, como conceito absoluto, outra bem diversa as liberdades que se devem proteger através do Estado. O respeito legal e a protecção que se outorgue a essas liberdades garantir~o, a final, o pleno desfrute da liberdade” 123. Neste estudo o foco recairá sobre a liberdade enquanto conceito absoluto.

Acrescente-se que como vimos “a ideia de liberdade, enquanto fim ou raz~o de ser do Direito, encontra igualmente expressão nas concepções contratualistas da Idade Moderna sobre a passagem do homem do estado natureza ao estado social” 124, uma vez que nestas o indivíduo abdica de pelo menos uma parte da sua liberdade e celebra um pacto, juntamente com os outros indivíduos, submetendo- se ao poder político e assegurando a sua sobrevivência.

A questão da liberdade tem também uma forte ligação com o tipo de Estado existente. Por um lado, poderá haver um Estado do género totalitário, no qual o indivíduo tem um papel muito fraco (encontrando-se submetido ao próprio Estado); por outro, nos Estados mais individualistas a actividade estatal é desenvolvida tendo por base a própria pessoa, sendo isto evidenciado pela “relev}ncia que a Ordem Jurídica confere aos direitos fundamentais, à formação e expressão da vontade dos sujeitos no âmbito dos negócios jurídicos ou ao entendimento da participação política do cidadão no contexto de um modelo político pluralista” 125. Ora, hoje em dia, face às medidas que têm sido aprovadas em nome do combate ao terrorismo e da necessidade de assegurar a segurança, discute-se se temos vindo a assistir a uma espécie de “totalitarizaç~o” do Estado,

122 Cf. Paulo Otero, op. cit., p. 223. 123 Cf. Isabel Banond, op. cit., p. 137. 124 Cf. Paulo Otero, op. cit., p. 225. 125 Cf. Paulo Otero, op. cit., p. 233.

52 isto é, a uma desvalorização do indivíduo, dos seus direitos fundamentais e, designadamente, da sua liberdade.

Por outro lado, a liberdade poderá ser vista numa vertente individual ou pública. A primeira diz respeito a “possibilidade dos movimentos, a segurança, o direito a “ter algo de seu”, a autodeterminaç~o kantiana e a intimidade da vida familiar” 126. Poderá ser física ou moral, conforme se reporte, respectivamente, à ausência de obediências físicas ou de coacção psicológica. Quanto à liberdade pública, esta pode ser exercida por todos, mas se um indivíduo a exerce, então não pode lesionar esta mesma liberdade de outro indivíduo.

No contexto da questão da liberdade não podemos deixar de mencionar Isaiah Berlin, que afirma que existem duas concepções de liberdade: a liberdade negativa e a liberdade positiva. A propósito da primeira, Isaiah Berlin refere que “I am normally said to be free to the degree to which no man or body of men interferes with my activity. Political liberty in this sense is simply the area within which a man can act unobstructed by others. If I am prevented by others from doing what I could otherwise do, I am to that degree unfree; and if this area is contracted by other men beyond a certain minimum, I can be described as being coerced, or, it may be, enslaved” 127. Está, assim, em causa a ausência de obstáculos ou constrangimentos criados por outro indvíduo – daí a conotação negativa e o facto de Kai Möller mencionar a propósito desta vertente de liberdade que “its focus is not on the liberty-holder but on the potential violator: he has to stand back, and let the liberty-holder enjoy his liberty, and the less he interferes, the greater is the liberty-holder’s liberty” 128. Neste sentido, Isaiah Berlin salienta que a coacção que está aqui em causa e que poderá restringir a liberdade não diz respeito a todas as formas de incapacidade: “coercion implies the deliberate interference of other human beings within the area in which I could otherwise act. You lack political liberty or freedom only if you are prevented from attaining a goal

126 Cf. Isabel Banond, op. cit., p. 133.

127 Cf. Isaiah Berlin, Two Concepts of Liberty, in Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford University Press, 1969, p. 122.

128 Cf. Kai Möller, The Global Model of Constitutional Rights, Colecç~o “Oxford Constitutional Theory”, Oxford, Oxford University Press, 2012, p. 29.

53 by human beings. Mere incapacity to attain a goal is not lack of political freedom” 129.

Por outro lado, a segunda concepção de liberdade incide sobre a presença de auto-determinação ou controlo na possibilidade de acção do agente – o que explica a conotação positiva. Aqui o foco recai já não sobre o potencial violador da liberdade, mas sim sobre o próprio agente, e é por isso que Isaiah Berlin indica que nesta vertente está em causa “the wish on the part of the individual to be his own master. I wish my life and decisions to depend on myself, not on external forces of whatever kind. I wish to be the instrument of my own, not of other men’s acts of will. I wish to be a subject, not an object; to be moved by reasons, by conscious purposes, which are my own, not by causes which affect me, as it were, from the outside. I wish to be somebody, not nobody; a doer – deciding, not being decided for, self-directed and not acted upon by external naturea or other men as if I were a thing, or an animal, or a slave incapable of playing a human role, that is, of conceiving goals and policies of my own and realizing them” 130.

Assim, enquanto que na vertente negativa o que se pretende é que o indivíduo não seja impedido, por parte de outros indivíduos, de fazer uma determinada escolha, na vertente positiva está em causa é a capacidade do indivíduo de controlar a sua própria vida.

No âmbito dos autores que abordam as teorias contratualistas e cujo pensamento já analisámos, podemos referir Thomas Hobbes, segundo o qual, como vimos, a liberdade traduz-se numa ausência de impedimentos externos 131, uma vez que “a free man, is he, that in those things, which by his strength and wit he is able to do, is not hindred to doe what he has a will to” 132. Por sua vez, John Locke afirmou que “so far as anyone can, by the direction or choice of his mind, preferring the existence of any action to the non existence of that action, and vice versa, make it to exist or not exist, so far he is free. For if I can, by a thought

129 Cf. Isaiah Berlin, op. cit., p. 122. 130 Cf. Isaiah Berlin, op. cit., p. 131. 131 Cf. n. 88.

132 Cf. Thomas Hobbes, op. cit., parte II, cap. XXI, p. 146. Já antes nesta obra este autor tinha afirmado que “Liberty, or Freedome, signifieth (properly) the absence of Opposition; (by Opposition, I mean externall Impediments of motion;)” – cf. Thomas Hobbes, op. cit., parte II, cap. XXI, p. 145.

54 directing the motion of my finger, make it move when it was at rest, or vice versa, it is evident that in respect of that I am free; and if I can, […] preferring one to the other, produce either words or silence, I am at liberty to speak or hold my peace; and as far as this power reaches, of acting or not acting, by the determination of his own thought preferring either, so far is a man free” 133. Assim, para Locke, “logo que o agente não tem o poder de fazer uma daquelas duas coisas, agir ou deixar de agir, em consequência da manifestação actual da sua vontade, não existe Liberdade” 134.