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Capítulo 2 – Um novo contrato social?

2.2. Teorias contratualistas

2.2.2. Perspectiva de John Locke

John Locke foi um médico e filósofo inglês que viveu entre 1632 e 1704. Escreveu diversas obras, de entre as quais devemos salientar Dois Tratados sobre o

Governo Civil, escrita por volta de 1680 e publicada anonimamente em 1690 97. O segundo tratado desta obra é visto por muitos como um dos textos mais importantes no âmbito da matéria do Liberalismo, tendo influenciado, nomeadamente, a Revolução Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.

No estado de natureza de Locke, caracterizado pela paz, benevolência, assistência mútua e igualdade entre homens, estes encontram-se “in […] a state of perfect freedom to order their actions, and dispose of their possessions and persons, as they think fit, within the bounds of the law of nature, without asking leave, or depending upon the will of any other man” 98 99. É, assim, um estado de

94 Cf. Thomas Hobbes, op. cit., parte I, cap. XIV, p. 92.

95 Refira-se que n~o h| lugar a direito de resistência: “to resist the Sword of the Common-wealth […], no man hath Liberty” – cf. Thomas Hobbes, op. cit., parte II, cap. XXI, p. 152.

96 Cf. Isabel Banond, op. cit., p. 137. Cf. no mesmo sentido, também a propósito de Hobbes e mencionando igualmente Aristóteles, João Lopes Alves, Ética & Contrato Social, Colecç~o “Fórum de Ideias”, n.º 26, Lisboa, Edições Colibri, 2005, p. 113 quando refere que “no fundo, o homem n~o é o animal político ou social de Aristóteles, mas um animal impolítico ou insociável que só por efeito do medo se tornou social”.

97 As suas ideias eram, à época, consideradas subversivas.

98 Cf. John Locke, Second Treatise of Government, editado por C. B. Macpherson, Indianapolis, Hackett Publishing Company, 1980, cap. II, § 4, p. 8.

46 “liberdade perfeita”, embora limitada pela existência de normas reconhecidas racionalmente e eficazes perante os indivíduos – o direito natural; nomeadamente ninguém tem o direito de se destruir a si mesmo nem de prejudicar os outros ou os seus bens 100. As violações do direito natural são sancionadas no estado de natureza, mas apenas, como referem Marcel Prélot e Georges Lescuyer, “de uma maneira anárquica, por iniciativa das vítimas ou dos seus parentes e amigos. O estado de natureza só conhece a justiça privada” 101.

Apesar desta igualdade, este estado de paz é precário, porque a propriedade privada poder| originar violações do direito natural, como explica Locke: “[…] though in the state of nature he [o homem] hath such a right [o direito de propriedade], yet the enjoyment of it is very uncertain, and constantly exposed to the invasion of others: for all being kings as much as he, every man his equal, and the greater part no strict observers of equity and justice, the enjoyment of the property he has in this state is very unsafe, very unsecure. This makes him willing to quit a condition, which, however free, is full of fears and continual dangers.” 102. De facto, uma vez que no estado de natureza todos os homens são considerados iguais, então todos têm o mesmo direito às mesmas coisas, colocando em risco a propriedade privada de cada um; esta está permanentemente sujeita à vontade dos outros, podendo ser invadida, o que origina conflitos. Esta insegurança leva o indivíduo a abdicar da sua liberdade e a aceitar o poder do Estado: “Men being […], by nature, all free, equal, and independent, no one can be put out of this estate, and subjected to the political power of another, without his own consent. The only way whereby any one divests himself of his natural liberty, and puts on the bonds of civil society, is by agreeing with other men to join and unite into a community for their comfortable, safe, and peaceable living one amongst another, in a secure

99 Assim, Locke inclui no conceito de liberdade a auto-regulação das condutas e a plena disponibilidade do corpo e dos bens próprios.

100 Por isso é que tal como refere Corentin de Salle “para Locke, ao contr|rio de Hobbes, o estado de natureza é já um estado social (embora ainda não seja civil e político). Todos os homens estão obrigados, nas suas acções, a fazer ou a não fazer determinadas coisas aos outros ainda que não exista qualquer acordo entre eles.” – cf. Corentin de Salle, A Tradição da Liberdade – Grandes Obras

do Pensamento Liberal, Bruxelas, European Liberal Forum asbl, 2010, trad. de Luís Humberto

Teixeira, p. 28.

101 Cf. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, vol. 2, Colecção “Fundamentos”, n.º 12, Lisboa, Editorial Presença, 2001, trad. de Regina Louro e António Viana, p. 38.

47 enjoyment of their properties, and a greater security against any, that are not of it” 103. Esta transformação implica também o estabelecimento de um conjunto de regras comuns a todos os elementos dessa sociedade, a escolha de um juiz reconhecido e imparcial que resolva os diferendos de acordo com as leis escolhidas e a instituição de um poder que execute as sentenças proferidas 104 105. Com o pacto, o indivíduo cede à colectividade o seu poder de executar a lei natural, de tal forma que renuncia ao direito de reprimir quaisquer infracções a esta, reconhecendo que tal tarefa ficará a cargo de um poder independente e superior. Como Locke menciona, “in the state of nature […] a man has two powers. The first is to do whatsoever he thinks fit for the preservation of himself, and others within the permission of the law of nature […]. The other power a man has in the state of nature, is the power to punish the crimes committed against that law. Both these he gives up, when he joins in a private, if I may so call it, or particular politic society, and incorporates into any common-wealth, separate from the rest of mankind” 106.

Assim, “the great and chief end […] of men’s uniting into common-wealths, and putting themselves under government, is the preservation of their property” 107, sendo que esta propriedade não deve ser entendida como relativa apenas aos bens físicos que cada um tem, mas incluindo “lives, liberties and estates” 108: vida, liberdade, integridade física, protecção contra a dor e propriedade dos bens

103 Cf. John Locke, op. cit., cap. VIII, § 95, p. 52.

104 Cf. John Locke, op. cit., cap. IX, §§ 124, 125 e 126, p. 66: “[…] an established, settled, known law, received and allowed by common consent to be the standard of right and wrong, and the common measure to decide all controversies between them [os homens]”, “[…] a known and indifferent judge, with authority to determine all differences according to the established law”, … “[…] power to back and support the sentence when right, and to give it due execution”.

105 Locke diz que devemos abdicar de alguma da nossa liberdade em troca de segurança, mas não de tanta liberdade que acabemos sem segurança nem liberdade, sendo que cabe ao indivíduo decidir de quanto da sua liberdade quer abdicar. Nomeadamente, Locke acredita que devemos manter o direito de decidir por nós próprios se há efectivamente na actuação do governo uma preocupação pela nossa segurança – cf. John Locke, op. cit., cap. IX, § 131, p. 68 quando refere que “the power of the society, or legislative constituted by them, can never be supposed to extend farther, than the common good” e John Locke, op. cit., cap. XIII, § 149, pp. 77 e 78 na parte “there remains still in the people a supreme power to remove or alter the legislative, when they find the legislative act contrary to the trust reposed in them: for all power given with trust for the attaining and end, being limited by that end, whenever that end is manifestly neglected, or opposed, the trust must necessarily be forfeited, and the power devolve into the hands of those that gave it, who may place it anew where they shall think best for their safety and security”. Há, assim, um direito de resistência.

106 Cf. John Locke, op. cit., cap. IX, § 128, p. 67. 107 Cf. John Locke, op. cit., cap. IX, § 124, p. 66. 108 Cf. John Locke, op. cit., cap. IX, § 123, p. 66.

48 exteriores. Para Locke, a celebração do pacto social deve-se, desta forma, à necessidade de assegurar a conservação do direito de propriedade, uma vez que embora a propriedade privada já existisse no estado de natureza, era um direito fundamental inseguro sem o estabelecimento de uma sociedade civil.

Relativamente ao tipo de pacto, “o pacto de Locke não pode ser de união, na medida em que a sociedade de que deriva – estado de natureza – não se regula por leis positivas que lhe confiram disposição jurídica. Por outro lado, não pode ser pacto de submissão, pelo qual os sujeitos renunciam aos seus direitos para os entregar { guarda do soberano” 109. O que está em causa é, sim, a entrega de alguns direitos que à luz do direito natural pertenceriam ao indivíduo. Naturalmente, esta cessão de direitos só poderá ser considerada válida se tiver havido o consentimento do indivíduo, que deverá ter sido prestado livremente, sem coação 110.