1 O VALOR MORAL SUBSTANTIVO DA LIBERDADE NA TEORIA DA
1.4 AS LIBERDADES E A CONDIÇÃO DE AGENTE
A condição de agente imprime uma característica peculiar na identidade e no agir do
ser humano como membro de uma sociedade e responsável pelos seus destinos. o que o
qualifica como impulsionador do processo de organização e de desenvolvimento do ambiente
onde se encontra. O ordenamento seguro de uma sociedade tem como referencial e critério de
avaliação a ação livre das pessoas e a sua capacidade de estabelecer e fortalecer as relações
que contribuem para a realização pessoal, a integração na dinâmica sociocultural, assim como
lhe dá condições para influenciar ativamente na sua estruturação e no seu desenvolvimento.
Os variados espaços que constituem a dinâmica da organização de uma sociedade
possibilitam, ao mesmo tempo, o exercício da condição de agente e o aprofundamento dessa
característica de forma a constantemente aprimorar a atuação social da pessoa. Ocorre uma
relação de mão dupla, que primeiro identifica a pessoa como sujeito com as condições de
influenciar a organização segura da sociedade e, ao mesmo tempo, aprimora o seu agir num
contínuo exercício pedagógico, confrontando as concepções que a sustentam com os avanços
e os limites oriundos do contexto onde está inserida. A ação das pessoas na estruturação de
uma sociedade ocorre na perspectiva das variadas dimensões, relações e expectativas que
compõem a existência humana, das quais se originam as tensões e as possibilidades de ação
individual e coletiva. A condição de agente é uma dimensão essencial e decisiva para a
realização pessoal, o fortalecimento das potencialidades humanas e o desenvolvimento da
sociedade (SEN, 1993).
A condição de agente, expressão que caracteriza a pessoa nesse contexto e nessa
reflexão, está relacionada com diversos instrumentos e particularidades oriundos da sua
formação e dos interesses individuais, assim como das condições estruturais e políticas que
uma sociedade precisa oferecer para o bem-estar e o desenvolvimento do conjunto de
aspirações dos seus membros. Uma estrutura de relações sociais ordenada de maneira
equilibrada, considerando o limite de seus recursos humanos, políticos, ambientais e
materiais, alcança uma ampla variedade de espaços onde se desenvolvem os relacionamentos
entre as pessoas e a organização institucional de uma sociedade, contribuindo diretamente
para a efetivação das metas que as pessoas, livremente, consideram importantes.
Considerando o valor moral substantivo da liberdade, a condição de agente não está
restrita às condições de bem-estar ou às determinações de interesses institucionais ou
corporativos, mas busca a realização dos objetivos que são relevantes e decisivos para a
existência de uma pessoa. Nesse sentido, o valor das pessoas não está limitado à satisfação de
metas previamente definidas ou dependente dos modelos determinados por pré-compreensões
de ordem cultural, religiosa, econômica ou outras que condicionam as opções de escolha, os
padrões de comportamento e os critérios de realização, com base em concepções
antecipadamente determinadas, que suponham uma postura de adaptação e de conformação
restrita aos espaços anteriormente definidos (SEN, 1976).
Caracterizar a pessoa como agente possibilita uma abordagem que compreende os
múltiplos horizontes que envolvem a realização humana à luz dos objetivos que ela se propõe
alcançar por diferentes razões, que podem coincidir ou não em determinado momento da sua
existência, da mesma forma que em outros contextos ou situações, até mesmo similares,
podem ser divergentes ou contraditórios. As considerações sobre a ação livre das pessoas
precisam contemplar, além do natural desejo de bem-estar, o conjunto de objetivos almejados
e as possibilidades de sua efetivação, conforme destaca Sen (2001, p. 103):
A condição de agente de uma pessoa refere-se à realização de objetivos e valores que ela tem razão para buscar, estejam eles conectados ou não ao seu próprio bem estar. Uma pessoa como agente não necessita ser guiada somente por seu próprio bem estar, e a realização da condição de agente, refere-se ao seu êxito na busca da totalidade de seus objetivos e finalidades ponderados (considered).
A condição de agente é um conceito amplo que influencia os variados aspectos da
vida de uma pessoa e as relações que decorrem do contexto onde ela está inserida. Por isso,
em situações peculiares, a busca do bem-estar e a própria compreensão da condição de agente
adquirem diferentes prioridades. O ato de escolher é sempre relevante para a pessoa,
independentemente de quais forem as motivações e os resultados que alcançará, e isso não
invalida nem desmerece as demais escolhas realizadas em situações similares ou por outros
em conjunturas diferentes. Nesse sentido, a afirmação do valor moral substantivo da liberdade
como fundamento de uma organização social justa caracteriza o ato de escolha individual
como decisivo e referência para a compreensão da ideia geral de liberdade.
A busca do bem-estar de uma pessoa ou de um grupo integra parte das necessidades
básicas de sobrevivência e de participação na vida social. Especialmente em situações de
graves desigualdades sociais ou de discriminação de ordem cultural ou religiosa, que
prejudicam, normalmente, os mais pobres e as mulheres, a condição de bem-estar é um
componente essencial para o exercício da condição de agente. A possibilidade de acesso ao
mercado de trabalho, especialmente para as mulheres, a oportunidade de interação por meio
das relações comerciais e dos sistemas de educação e saúde bem organizados apresentam-se
como referências decisivas para o equilíbrio de uma sociedade. As desigualdades excessivas
nas condições de bem-estar geram graves problemas de injustiça entre as pessoas e dificultam
a implantação de políticas públicas eficazes; adulteram o exercício do poder; comprometem o
conceito de Estado e reduzem a pessoa a um papel passivo e com condições mínimas ou nulas
de realização. Essa disparidade impede que parte significativa das pessoas tenha a liberdade
de buscar diferentes formas de realização do seu bem-estar (SEN, 1990).
A busca de uma organização social justa precisa considerar que a satisfação das
condições de bem-estar é um critério fundamental com condições de influenciar nas demais
relações humanas, sociais e ambientais. Especificamente, nas situações ou sociedades que
discriminam e subjugam as mulheres, culturas e raças minoritárias ou grupos tradicionalmente
diminuídos pelo sistema de castas ou pré-conceitos historicamente arraigados, a condição de
bem-estar é um critério determinante para a construção do equilíbrio entre os diferentes
espaços e pessoas, contemplando, dessa forma, os variados fatores que caracterizam um
determinado ambiente social.
Especial atenção deve ser dada às condições de bem-estar da mulher pela relevante e
peculiar influência que exerce na família e nas demais instituições, assim como nos espaços
intermediários da sociedade. Podem-se destacar, entre outros, a educação e a formação dos
valores sociais, políticos e culturais, o cuidado da saúde e com as condições de vida e de
relacionamento das pessoas na família e na comunidade. O mesmo destaque ocorre por
ocasião do exercício de tarefas políticas, ao mesmo tempo decisivo e simbólico, e quando
ocupa posições destacadas na condução da organização do conjunto da sociedade,
desempenhando cargos de responsabilidade pública (SEN, 2001).
A busca da igualdade entre homens e mulheres não é um tema secundário que pode
ser protelado considerando necessidades sociais mais urgentes. Existem privações e
sofrimentos sem qualquer justificativa de ordem moral ou outra, em diferentes graus e
contextos, que não legitimam o abrandamento ou a desconsideração dessa problemática por
qualquer abordagem. A negligência em relação a problemáticas de tal relevância, na busca de
uma convivência justa entre as pessoas, compromete negativamente o equilíbrio e a
estabilidade política da estrutura social, conforme destaca Sen (2000, p. 222):
Também há indícios muito difusos de necessidades femininas negligenciadas em todo o mundo. Existem razões excelentes para trazer à luz essas privações e manter firmemente a eliminação dessas iniquidades na ordem do dia.
Mas também ocorre que o papel limitado da condição de agente ativa das mulheres afeta gravemente a vida de todas as pessoas – homens e mulheres, crianças e adultos. Ainda que haja razões de sobra para não abrandar a preocupação com o bem-estar e o mal-estar das mulheres e para que se continue a atentar para as privações e sofrimentos femininos, existe também uma necessidade urgente e básica, particularmente nesse momento, de adotar uma abordagem voltada para a condição de agente na pauta feminina.
Talvez o argumento mais imediato para que haja um enfoque sobre a condição de agente das mulheres possa ser precisamente o papel que essa condição pode ter na remoção das iniquidades que restringem o bem-estar feminino.