2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A LIBERDADE
2.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A JUSTIÇA
As políticas de desenvolvimento cuja preocupação central está na satisfação das
necessidades das pessoas e na qualidade de vida
17, especificamente representadas pelas
condições de sobrevivência que possibilitam a realização das expectativas de cada pessoa,
contribuem decisivamente para o equilíbrio social e ambiental. A construção de um modelo
de desenvolvimento sustentável tem sua justificativa não apenas na alteração e na
fundamentação de novos conceitos, mas também na necessidade de as instituições e as
estruturas sociais, econômicas e ambientais contribuírem para a superação das desigualdades
responsáveis pela ameaça ao equilíbrio das relações que ocorrem no interior e entre as
diversas sociedades.
A sustentabilidade é uma condição indispensável para a estruturação e a viabilidade
operacional e moral de um modelo de desenvolvimento inserido num contexto injusto, por
causa das contradições existentes na produção e na distribuição dos bens, nas excessivas
desigualdades entre as pessoas, nas relações entre as sociedades e no uso dos recursos
ambientais, entre outros espaços.
Injusto é um modelo de desenvolvimento unilateral que prima pela satisfação de
objetivos individualistas ou corporativos, que tem sua organização concentrada
preferencialmente no progresso econômico-financeiro, assim como submete as pessoas e
outros recursos aos mesmos fins. Especialmente, perde sua legitimidade quando, no decorrer
do processo de sua estruturação e funcionamento, gera graves desigualdades, fomenta ou
legitima estruturas de opressão política e cultural, exclui parte significativa das pessoas do
acesso aos bens e serviços e coloca em risco a existência das futuras gerações (SEN/
SUDNIR, 1993).
17 A importância de uma compreensão clara do conceito e do alcance da “qualidade de vida”, especificamente para as sociedades que convivem com graves exclusões, é decisiva e não pode ser limitada a interesses restritos. Sen (1988, p. 13) afirma essa convicção: “A expectativa de vida é, evidentemente, uma medida muito limitada do que tem sido chamado „a qualidade de vida.‟” Existem outras dimensões que são decisivas, seja para a satisfação das necessidades humanas, seja para o equilíbrio das relações sociais, e não podem ser desconsideradas por ocasião da avaliação e da construção de relações sociais justas e sustentáveis, entre as quais se podem destacar as condições de saúde e educação, particularmente a superação do analfabetismo endêmico, a legitimidade e a força das estruturas democráticas, os índices de mortalidade e nutrição infanto- juvenil e as condições para o controle da natalidade, entre outras. A afirmação da “qualidade de vida”, nesse contexto, não se limita à quantificação do tempo de existência ou de bens necessários para uma pessoa, mas amplia o seu alcance, a partir das necessidades, para o conjunto das condições que integram e caracterizam a vida com qualidade.
O valor moral substantivo da liberdade é uma referência segura e determinante para a
estruturação justa do modelo de desenvolvimento sustentável porque tem suas preocupações
voltadas, prioritariamente, para a “condição de agente” da pessoa em relação à qual devem ser
promovidos os diferentes tipos de liberdades, especialmente as substantivas. Essa condição
entende a pessoa como agente político e público que “age e ocasiona mudanças e cujas
realizações podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos,
independentemente de as avaliarmos ou não também segundo algum critério externo”. (SEN,
2000, p. 33). A pessoa é um membro ativo e atua integrada com o conjunto da estrutura
político-institucional da sociedade, influenciando na estruturação da organização econômica
e, como agente público, está diretamente envolvida e preocupada com o processo de
desenvolvimento socioeconômico e com as consequências que dele podem advir.
A fim de estruturar as relações sociais de forma justa, as pessoas interagem de forma
corresponsável com as demais e com os recursos ambientais disponíveis, de forma a garantir
as condições de vida para a sobrevivência atual sem prejudicar as futuras gerações. Da mesma
forma, preocupam-se com a situação dos mais pobres e daqueles com deficiências, ou que
possuem necessidades especiais, e com as vítimas de tragédias sociais e ambientais, das quais
se podem destacar aqueles atingidos pela fome e pelo analfabetismo, por períodos
prolongados de seca ou enchentes, povos que enfrentam conflitos internos violentos,
dominação externa, ou sociedades vitimadas pela opressão de seus dirigentes (SEN, 2006).
A estruturação do modelo de desenvolvimento sustentável, caracterizado pela
preocupação com a construção da justiça, tem uma atenção especial para com as contradições
que denunciam situações incompatíveis e injustificadas. O atual modelo de desenvolvimento,
que priorizou o crescimento econômico baseado na produção e no consumo de bens, gerou
uma situação incompatível com os objetivos, a dinâmica e as condições de sustentabilidade.
Primeiro, houve um aumento, sem precedentes, da capacidade de apropriação e produção de
bens, o que acarretou uma importante mudança das condições de vida para uma parcela
significativa das sociedades pela possibilidade de aquisição de produtos com melhor
qualidade, acesso às tecnologias e informações com maior rapidez e um sistema de produção
mais eficiente, entre outros aspectos.
Entretanto, como consequência dessa opção ocorreram a instrumentalização das
pessoas, a segmentação e a exclusão de parte daqueles que podem ser beneficiados pelo
sistema de produção e pela distribuição dos bens, assim como a utilização indiscriminada dos
recursos ambientais, o que acarretou o desequilíbrio do ecossistema e das condições de
existência para as futuras gerações
18. Essa contradição é moralmente injusta e socialmente
insustentável, porque desvirtua a identidade humana, as condições de convivência e
organização social; aprofunda as desigualdades e desconsidera os valores essenciais do ser
humano e de suas relações.
A preocupação com a estruturação justa das relações humanas e sociais integra a
identidade humana e as diferentes formas de organização social. Disso emerge uma pergunta
fundamental: Quais são as condições para caracterizar um modelo de desenvolvimento
sustentável justo? Essa perspectiva de abordagem se apresenta como um referencial norteador
das opções políticas e dos instrumentos que justificam, entre diferentes variáveis, arquitetar
um projeto de desenvolvimento eficaz que integre as necessidades humanas, os recursos
disponíveis e a sua própria sustentabilidade no presente e em relação ao futuro (HÖFFE,
2003).
A contradição entre, de uma parte, a opulência de poucos e, de outra, as deficiências
de muitos denuncia uma estruturação social injusta na sua fundamentação, nas suas
consequências e na sua justificação moral. A preocupação com a justiça, que torna mais
explícito o próprio adjetivo “sustentabilidade”, identifica a escolha de um conjunto de
objetivos ideais para um modelo de desenvolvimento. Nele estão implícitos valores que
caracterizam e direcionam as preocupações e as ações humanas e sociais, seja na superação
das gritantes deficiências e desigualdades sociais, seja na afirmação do valor moral
substantivo da liberdade como meio e fim do desenvolvimento humano e social, conforme
destaca Sen (2000, p.18):
O desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação de liberdade: pobreza e tirania, carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática, negligência dos serviços públicos e intolerância ou interferência excessiva de Estados repressivos. A despeito do aumento sem precedentes da opulência global, o mundo atual nega liberdades elementares a um grande número de pessoas – talvez até mesmo a maioria.
18 A crise do atual modelo de desenvolvimento e a sua incapacidade de responder aos desafios suscitados pelo contexto contemporâneo foram evidenciadas por Manfredo A. de Oliveira (2001, p. 7), que também denunciou a carência de uma sólida justificação da ação humana: “Desde os anos 70, a crise ecológica, o perigo da proliferação de novas guerras no planeta, o problema do reconhecimento dos direitos das minorias e das relações internacionais, da fome e da miséria no mundo, manifestaram a urgência de uma reflexão ética abrangente. A nova reestruturação das relações globais e da crise ecológica, determinada pelos problemas oriundos da sociedade industrial e da crise do tipo de racionalidade cientificista, que tornou-se hegemônica no mundo moderno, fez surgir o problema da justificação das normas fundamentais da ação humana. Se há algo que caracteriza de forma incisiva o mundo atual é, sem dúvida, a desproporção entre a velocidade absurda do progresso científico-tecnológico e o vácuo ético que se formou a partir da negação dos sistemas tradicionais de valores.”
Sendo a justiça um valor comum a todas as culturas e objetivo das agremiações
políticas, econômicas, institucionais e sociais, o seu significado pode servir muitas vezes,
erroneamente, para justificar ou legitimar concepções ou práticas individualistas, corporativas
ou de duvidosa validade moral, como, por exemplo, a existência e o funcionamento de
estruturas autoritárias e violentas com o objetivo de alcançar o bem-estar futuro. Por isso, é
importante a afirmação da justiça independentemente de interesses exclusivos, inclusive a
tendência de reduzir à tutela do direito a sua importância e a sua operacionalização.
Uma compreensão mais ampla da justiça adquire valor moral substantivo, isto é,
integra o sentido e o desejo profundo da existência humana; agrega sentido e objetivo ao
direito e unifica as diferentes instituições e finalidades sociais, entre outras dimensões. A
necessidade da justiça se faz sentir mais fortemente nas situações de crise, de carências ou
ameaças, como aquelas sentidas em relação às futuras gerações. Em oposição, quando há uma
maior disponibilidade de bens ou as necessidades são menos prementes, as exigências da
justiça se tornam menos evidentes, como, por exemplo, em períodos de razoável crescimento
econômico ou de grande produção de bens de consumo. Isso afirma que a justiça precisa
atingir, senão todas as áreas, pelo menos as mais importantes e decisivas da existência
humana e da estruturação social
19.
A explicitação da reflexão sobre o conjunto das relações que as pessoas estabelecem
entre si e com os demais, juntamente com outras necessidades e preocupações, demonstra a
necessidade de ampliação dos espaços para a efetivação da justiça. Os direitos dos animais
não humanos, das futuras gerações e o equilíbrio ambiental simbolizam os atores que
integram uma abordagem mais ampla das exigências de justiça para o desenvolvimento
sustentável.
19 O debate sobre a relação da justiça com a satisfação das necessidades mínimas das pessoas, o alcance da sua compreensão nas demais áreas da convivência humana e da estrutura social demonstra a necessidade de uma contínua fundamentação e explicitação do seu valor e do seu alcance, conforme destaca Höffe (2003, p. 30) “Porém, onde domina a abundância, por parte da natureza, a justiça se torna apenas em grande escala, mas não integralmente, desempregada. Pois, por um lado, existe uma escassez independente da natureza, já que o ser humano não carece apenas do que a natureza lhe poderia oferecer dos bens em plenitude (na suposição de a insaciabilidade se manter dentro de limites). O ser humano necessita também do que somente seus semelhantes podem providenciar: serviços, começando pela assistência da qual necessitam os lactentes. Por outro lado, nem todas as tarefas da justiça estão referidas à escassez: nem a igualdade perante a lei, nem a competente imparcialidade do judiciário e da administração pública, relativo a isso, nem os direitos humanos liberais, nem a soberania popular ou ainda a divisão dos poderes. Existe, e não em último lugar, uma luta pelo reconhecimento, acompanhada pelos sentimentos de inveja e ciúme. [...]
Busca-se justiça em todo o âmbito das relações humanas, tanto nas de cooperação quanto também nas de concorrência, no caso de aqui surgirem interesses, pretensões e deveres conflitantes. A condição objetiva de aplicação cifra-se no litígio ou conflito. Como estes, existem, tanto no trato pessoal quanto nas relações comerciais, bem como nas instituições e nos sistemas sociais, nomeadamente no direito e no Estado, além disso também entre os Estados e, não em último lugar, por igual na relação entre as diferentes gerações, a justiça está em jogo em todas as áreas.”
Entre as várias preocupações que compõem as condições e a justificativa para a
implementação de um modelo de desenvolvimento sustentável justo está a necessidade de
uma especial atenção para com as possíveis consequências advindas dessa escolha. O padrão
atualmente em curso representa a opção por um sistema de valores, justificativas e ações
insensível diante do valor moral da pessoa e das suas necessidades, da constituição plural da
sociedade, da esgotabilidade dos recursos naturais e das possíveis ameaças decorrentes de um
planejamento que não considera as repercussões e as ameaças que pairam sobre as pessoas e
as suas condições de sobrevivência, o equilíbrio social e ambiental e com outras dimensões
(SEN, 1990).
A concepção de desenvolvimento que não tem compromisso com a sustentabilidade
e com a justiça compromete-se com metas limitadas, independentemente de sua justificativa e
avaliação moral mais ampla, pois precisam atender aos objetivos postos em primeiro plano e a
eles submeter os demais, incluindo as pessoas e suas necessidades. Essa é uma matriz de
compreensão utilitarista, que, conforme anteriormente destacado, tem sua validade na medida
de suas consequências. Para a abordagem que entende a justiça como um valor indispensável
para justificar a opção pelo modelo fundamentado no princípio da sustentabilidade é
esclarecedora a afirmação de Höffe (2003, p. 32): “O utilitarismo é indiferente quanto à
„distribuição‟ do bem comum”.
A consideração das consequências é indispensável para a avaliação do
desenvolvimento sustentável. Entretanto, a arquitetura desse modelo é avaliada tendo como
referência o valor universal da justiça, compreendido como um valor superior e um
patrimônio comum da humanidade, ao qual estão submetidas também as consequências para
as pessoas, as sociedades, o meio ambiente e as futuras gerações (SEN, 1993).
A estrutura do modelo de desenvolvimento sustentável preocupa-se com a
organização justa de toda a rede de sustentação que o envolve, desde as suas motivações
iniciais, passando pelas ações intermediárias e, também, pelas consequências no término do
processo empreendido, que possam comprometer negativamente sua compreensão ou
viabilidade. Ocorre uma inversão substancial em relação ao modelo anteriormente em
questão. O objetivo final que deve ser buscado é a justiça, não mais aquelas metas
previamente estipuladas, especialmente se comprometidas com interesses que possam aviltar
ou instrumentalizar as pessoas, os bens ou outras dimensões decisivas para o equilíbrio
humano, social e ambiental no presente ou no futuro.
Tendo como referencial o valor moral substantivo da liberdade, o processo de
desenvolvimento sustentável tem uma relação de dependência e complementaridade com a
garantia, a expansão e a promoção das liberdades. Nesse sentido, uma sociedade justa e
sustentável está comprometida com a liberdade e com a superação daquelas situações que
impedem, dificultam ou negam o seu exercício.
A superação das desigualdades gritantes é uma exigência moral substantiva para a
caracterização do desenvolvimento e, entre outras, supõe a compreensão das variadas relações
que ocorrem no interior das diferentes sociedades e dos desejos e expectativas humanas,
sociais e ambientais que se materializam na opção por critérios e objetivos que priorizam as
condições de vida das pessoas e o equilíbrio social e ambiental, não limitados à produção de
bens e ao crescimento econômico ilimitados, conforme sintetiza Sen (1988, p. 13):
A importância do “crescimento” deve depender da natureza das variáveis da expansão do que é considerado e visto como “crescimento”. O tema crucial, por esta razão, não é o foco dimensional do crescimento, mas a importância e o alcance do Produto Nacional Bruto e as variáveis relacionadas nas quais as medidas de crescimento usuais se concentram. [...] Focar neste contraste não é, nesse sentido, a mesma coisa que chegar-se a uma conclusão política imediata sobre o que deveria ser feito, mas a natureza do contraste tem que surgir na mente ao recusar identificar o desenvolvimento econômico como mero crescimento. Mesmo que o Produto Nacional Bruto, entre outras coisas, devesse melhorar as condições de vida das pessoas, e tipicamente expandir a expectativa de vida das pessoas naquele país, existem muitas outras variantes que também influenciam as condições de vida, e o conceito de desenvolvimento não pode ignorar as regras dessas outras variáveis.