2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A LIBERDADE
2.4 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL, AS RELAÇÕES DE
As formas como as relações de trabalho se estruturam é uma referência indispensável
para a arquitetura do modelo de desenvolvimento sustentável, seja pelo valor intrínseco do
trabalho, seja pelas consequências que sua organização acarreta para as diferentes áreas da
atuação humana e da organização da sociedade, assim como pelas graves limitações
ocasionadas, especialmente, pelas más condições de trabalho, que prejudicam particularmente
os mais pobres, as vítimas da escravidão, da discriminação, do trabalho infanto-juvenil e do
desemprego.
As relações de trabalho, além das preocupações relativas às pessoas e à política
interna em cada país, têm repercussão na política externa, especialmente em questões ligadas
à diplomacia, à estrutura legislativa, ao comércio internacional e à estabilidade política, sobre
as quais são estabelecidos acordos, contratos e compromissos que contribuem para o
progresso econômico e para o desenvolvimento social.
A organização das relações de trabalho é fundamental para a realização individual
das pessoas porque integra a construção da identidade pessoal; a organização e a viabilidade
do seu projeto de vida; as condições mínimas necessárias para a obtenção dos bens que
consideram importantes; a oportunidade de participar, na condição de agente, das decisões
sociais e do espaço público sem constrangimento; a emancipação e a superação das
persistentes exclusões ou discriminações, assim como busca a realização daqueles objetivos
íntimos que são decisivos para a sua realização e a integração social (SEN, 2000). Uma
sociedade preocupada em bem organizar a qualidade de vida dos seus membros tem especial
interesse que o mundo do trabalho opere de forma eficiente e contribua para a melhoria das
condições de vida de seus habitantes e para o desenvolvimento social.
Especialmente sobre a estruturação e o funcionamento da estrutura de uma
sociedade, uma criteriosa organização do trabalho contribui, substancialmente, para a
estabilidade econômica e política e para o equilíbrio das instituições. Entre as diversas áreas
se podem destacar a significativa melhoria da qualidade de vida das pessoas, a diminuição das
desigualdades econômicas, o acesso a melhores serviços, a melhor integração e participação
no sistema de mercado, o crescimento econômico, o aumento do aporte de recursos para a
organização dos serviços públicos, especialmente o contingente destinado às políticas de
assistência social, que aumentam as oportunidades de promoção humana e o desenvolvimento
das capabilidades.
A organização da vida de uma pessoa no decorrer da sua existência é nitidamente
identificada com a sua atividade laboral, da qual depende grande parte da sua realização
pessoal, da sua família e sua integração social. Determinado trabalho ou profissão contribuem
para que uma pessoa integre aos seus objetivos, além de outros planos, atividades e
possibilidades de realização semelhantes aos demais, um conjunto de metas que são
dependentes dos rendimentos da atividade e outros que se propõe realizar num período
posterior.
O acesso ao mercado de trabalho pela oportunidade de escolha de uma determinada
atividade amplia as condições para o exercício da liberdade. Por isso, a pessoa precisa ter a
oportunidade de poder trabalhar e escolher a atividade que melhor atende aos seus objetivos,
que condiz com as suas aptidões e possibilita a sua efetiva participação na sociedade
22.
O tipo de trabalho que uma pessoa escolhe não pode ser reduzido a um meio para
obter determinados fins, o que significaria limitar o seu valor à satisfação de interesses
imediatos, individualistas ou ligados ao bem-estar e, também, sentenciar a sua importância
pelas consequências. A discussão sobre o objetivo do trabalho está relacionada com as
motivações e aptidões de cada um, assim como com a tradição cultural e o ambiente social
onde está inserido. O debate sobre o trabalho e a tentativa de reduzir sua importância a uma
compreensão dependente dos ganhos econômicos são explicadas por Sen (1975, p. 81),
A maneira de sair desse dilema seria dizer: as pessoas preferem estar empregadas porque elas ganham uma renda dessa maneira, mas o emprego não é avaliado por ele mesmo, e ninguém quereria trabalhar se não fosse compensado por isso. Esta linha de raciocínio concentra-se no que tem sido chamado de “a abordagem da renda” e ela é uma justificativa de emprego não sem sentido, com o objetivo de ganhar uma renda. Mas não está evidenciado, que as pessoas prefiram ter um trabalho somente porque ele lhes traga compensação financeira. Um trabalho pode ser uma fonte de satisfação por ele mesmo, que seria chamado de “abordagem do reconhecimento”.
22 O desemprego é um claro indicativo de que as pessoas estão privadas das suas capabilidades. A contribuição que uma pessoa pode oferecer com o seu trabalho é indispensável para o aumento da produtividade, juntamente com o aumento da renda. As opções de trabalho têm repercussão direta e indireta no aumento das capabilidades e, ao diminuir as privações, enriquecem a vida humana (SEN , 2000, p. 114).
A estruturação das políticas de desenvolvimento sustentável preocupa-se também
com a necessidade de uma maior produção de bens e com a melhoria das condições
econômicas para satisfazer às necessidades de consumo. Por ser um tema relacionado com a
questão da sobrevivência e da condição de vida das pessoas, a abordagem do trabalho que
concentra suas atenções unicamente nos aspectos econômicos pode, facilmente, limitar o seu
universo aos cálculos de custo e benefício, tanto em relação às razões e ao sentido do
emprego, quanto ao significado do rendimento salarial.
As políticas de emprego precisam estar integradas com todo o sistema de
estruturação da sociedade, que se organiza de forma sistêmica e interdependente, o que
possibilita a percepção e a emergência de outras dimensões que compõem o desenvolvimento
sustentável, além do sentido e da importância do trabalho, da sua razão ontológica e do seu
potencial para a realização de cada pessoa e para as condições de sustentabilidade do conjunto
da organização social e ambiental no presente e também no futuro.
O tratamento que precisa ser dispensado a um tema dessa relevância, com suas
diversificadas manifestações e peculiaridades, segundo o modelo de desenvolvimento
sustentável, tem como requisito a garantia dos direitos e das condições específicas presentes
nas sociedades democráticas, porque dispõe dos instrumentos suficientes para conviver com
as diferentes compreensões que estão no seu interior, integrando-as com as demais
necessidades, especialmente as econômicas, os recursos disponíveis e as condições
ambientais, políticas e técnicas necessárias para a implementação dos objetivos pretendidos.
A importância de uma reflexão conjunta sobre as necessidades econômicas e as dimensões
políticas e institucionais é destacada por Sen (2000, p.180):
Os papéis instrumentais das liberdades políticas e dos direitos civis podem ser muito substanciais, mas a relação entre necessidades econômicas e liberdades políticas pode ter também um aspecto construtivo. O exercício dos direitos políticos básicos torna mais provável não só que haja uma resposta política a necessidades econômicas, como também que a própria conceituação – incluindo a compreensão – de “necessidades econômicas” possa requerer o exercício desses direitos. De fato, pode-se afirmar que uma compreensão adequada de quais são as necessidades econômicas – seu conteúdo e sua força – requer discussão e diálogo. Os direitos políticos e civis, especialmente relacionados à garantia de discussão, debate, crítica e dissensão abertos, são centrais para o processo de escolhas bem fundamentadas e refletidas. Esses processos são cruciais para a formação de valores e, não podemos, em geral, tomar as preferências como dadas independentemente de discussão pública, ou seja, sem levar em conta se são ou não permitidos debates e diálogos.
O acesso ao trabalho é uma dimensão decisiva para o desenvolvimento das
capabilidades humanas, que representam as liberdades substantivas e estão diretamente
relacionadas com a participação nas relações de mercado, na estrutura política e na
oportunidade de influenciar nos destinos da sociedade, entre outras. A ausência das liberdades
substantivas acarreta graves problemas relativos à participação das pessoas nas diferentes
esferas da vida econômica, particularmente quanto à possibilidade de escolher entre diversos
tipos de trabalho.
Especialmente quando existe uma preocupação com o mercado de trabalho, o
emprego possibilita que as pessoas contribuam com suas habilidades e sua força de trabalho
para um modelo de desenvolvimento que tem compromissos com a sua sobrevivência, sua
realização pessoal e com as futuras gerações
23, com o equilíbrio das relações sociais, com a
correta utilização dos recursos naturais e com as demais sociedades, especialmente aquelas
onde o desenvolvimento é precário ou inexistente.
Importa notar que naquelas sociedades onde persistem graves violações das
condições de trabalho, especificamente em virtude da manutenção de tradições
discriminatórias que atingem raças, mulheres e estrangeiros, de situações subumanas, da
restrição das opções de trabalho por interesses políticos e econômicos, da imposição de regras
que inibem e impossibilitam a convivência entre as pessoas, do uso indiscriminado dos
recursos naturais, entre outros aspectos, tipifica-se a evidente negação das liberdades
substantivas, o que compromete negativamente, na sua origem, as condições para a
estruturação do modelo de desenvolvimento sustentável.
O compromisso com suficientes oportunidades de trabalho, aliado às condições para
exercê-lo, representa a responsabilidade dos dirigentes e líderes para com uma estruturação
justa da sociedade e o equilíbrio das relações sociais. As graves desigualdades, especialmente
23 O compromisso com as futuras gerações, sendo uma exigência fundamental para a estruturação do desenvolvimento sustentável, ultrapassa uma compreensão limitada aos interesses e objetivos imediatos, para alcançar uma dimensão de cooperação e integração com todos, incluindo os ainda não existentes. Isso supõe uma concepção moral e política orientada por critérios de justiça que considerem os membros da sociedade ainda não existentes na condição de sujeitos de direito e merecedores das condições necessárias para a sobrevivência. Para sua efetivação, além do uso equilibrado dos recursos atualmente disponíveis, são necessárias “reservas” para que esse objetivo possa ser alcançado, chamado por Rawls (2000b, p. 63; 327) de poupança justa: “Assim, temos o problema de estender o conceito de justiça como equidade de forma a abranger nossos deveres para com as gerações futuras, entre os quais se encontra o problema da poupança justa. [...] Considere o caso da poupança justa: como a sociedade é um sistema de cooperação entre as gerações ao longo do tempo, um princípio de poupança faz-se necessário. Em vez de imaginar um acordo direto (hipotético e não histórico) entre todas as gerações, as partes podem ser chamadas a concordar com um princípio de poupança sujeito a mais uma condição: a de que todas as gerações anteriores o tenham obedecido. Desse modo, o princípio correto é aquele que os membros de qualquer geração (de todas, portanto) adotariam como aquele que sua geração deve respeitar, e como o princípio que gostariam que as gerações anteriores tivessem respeitado (e que as próximas respeitem), por maior que seja a distância no tempo, para trás ou para frente.”
de rendas entre os mais ricos e os pobres, constituem uma forte ameaça à organização da
sociedade e a todos os seus membros. Quanto aos mais ricos, a impossibilidade de usufruir
certas oportunidades importantes por causa das limitações impostas pelo acúmulo de bens e
riquezas representa a ausência de liberdades importantes, especialmente da liberdade política.
Por sua vez, os mais pobres são as vítimas das mazelas originadas pelo desequilíbrio na
distribuição dos recursos econômicos, o que também lhes impossibilita o exercício das
liberdades básicas (SEN, 1994).
Com a afirmação do valor moral substantivo da liberdade, o crescimento econômico
e o acesso a certa quantia de recursos, em maior ou menor quantidade, têm sentido na medida
em que promovem as liberdades substantivas. A diminuição das desigualdades econômicas
tem como contrapartida o aumento das liberdades. Grandes contrastes na distribuição ou
acesso aos bens manifestam outras debilidades da sociedade, com consequências nas relações
pessoais, familiares, políticas, religiosas e culturais. Por isso, a privação de acesso aos bens
motivados por interesses políticos ou de outra ordem não encontra justificativa moral em
qualquer concepção de justiça importante. Da mesma forma, o progresso econômico de um
país, de uma região, ou mesmo individual não tem legitimidade moral quando ocasiona altos
índices de desigualdade ou ocorre à custa disso.
Entre as situações que refletem o desequilíbrio das relações de trabalho e emprego
numa sociedade estão os altos níveis de desemprego, que impedem a estabilidade política e
social, além de ocasionar outras graves privações individuais e sociais, conforme atesta Sen
(2000, p. 117):
Há provas abundantes de que o desemprego tem efeitos abrangentes além da perda de renda, como dano psicológico, perda de motivação para o trabalho, perda de habilidade e autoconfiança, aumento de doenças e morbidez (e até mesmo as taxas de mortalidade), perturbação das relações familiares e da vida social, intensificação da exclusão social e acentuação de tensões raciais e de assimetria entre os sexos.
O desemprego representa um claro empecilho para a realização de grande parte das
aspirações pessoais e sociais das pessoas, na medida em que exige do Estado gastos
expressivos para amenizar os problemas derivados, compromete significativamente transações
comerciais e provoca grande instabilidade política e institucional. Uma estrutura social
instável atinge todos os níveis de relacionamento das pessoas e das instituições, exigindo, não
raras vezes, a necessidade de impor medidas de controle às pessoas, às organizações e aos
movimentos sociais, o que contradiz frontalmente o valor primordial da liberdade. As pessoas,
quando atingidas pelo desemprego, distanciam-se da condição de agente, perdendo
referenciais importantes para a sua existência, conforme anteriormente afirmado, o que as
impede de atuar com autonomia nas diferentes instâncias da sociedade.
Os altos índices de desemprego condicionam as iniciativas do Estado, especialmente
por meio dos programas de assistência social, que normalmente têm como objetivo o
enfrentamento de situações emergenciais ou para a superação de casos localizados e
específicos em vista de um objetivo maior, de médio ou longo prazo. Os recursos existentes
precisam ser canalizados para finalidades restritas ao atendimento de problemas imediatos e
de alcance limitado (KESSELRING, 2007).
Os orçamentos, que normalmente são insuficientes, especialmente nos países com
baixo nível de desenvolvimento e, com maior intensidade, quando aumenta o número de
emergências, acarretam um acréscimo significativo de gastos para os governos, que pouco ou
nada contribuem para solucionar as causas que os originaram, da mesma forma que não
garantem o retorno normalmente almejado pelos investimentos públicos. Nesse contexto, as
pessoas estão na condição de não agentes porque dependem da ação de terceiros, do Estado
ou de outras instituições, que precisam limitar sua atuação a políticas assistencialistas, as
quais resultam numa relação de dependência, comprometendo gravemente a identidade
humana e o exercício das liberdades.
Quando as políticas de desenvolvimento dispõem de recursos que permitem
investimentos significativos, ao invés de apenas aumento de gastos, seja pelo Estado, seja
pelas iniciativas do mercado, o interesse prioritário volta-se para a busca de soluções aos
diferentes problemas sociais. Com perspectivas mais amplas, suas ações são respaldadas por
objetivos de duração mais extensa e pela oportunidade de diminuir ou erradicar as causas que
prejudicam a vida das pessoas, grupos ou países. Nesse sentido, acontecem a inversão das
desigualdades em vista de relações mais equitativas nos diversos níveis sociais, o resgate da
condição de agente das pessoas e o retorno dos investimentos, especialmente pelo Estado, em
razão do aumento da arrecadação de impostos e da diminuição da necessidade de maiores
gastos assistenciais.
A estruturação de um modelo de desenvolvimento sustentável, tendo como
preocupação as relações de trabalho, compreende o funcionamento da sociedade de forma
cooperativa e integrada com os objetivos de médio e longo prazo. De maneira responsável,
busca a solução daquelas ameaças que impedem a qualidade de vida das pessoas e o
ordenamento seguro das relações sociais. O princípio da sustentabilidade imprime uma
dinâmica de reconstrução interior das pessoas e da sociedade, na qual a oportunidade de
trabalhar tem uma relevância especial. O trabalho, aliado à expansão das políticas de
alfabetização e atendimento da saúde, programas sociais, criação e ampliação de programas
de crédito e de qualificação técnica, entre outras, possibilita e incentiva a participação nas
decisões políticas, a reconstituição do tecido social, o resgate da autoestima e de inúmeras
outras dimensões essenciais para a realização e as garantias do desenvolvimento (SEN, 1975).
O crescimento econômico, desse modo, torna-se um objetivo importante para os
diferentes campos do desenvolvimento, pois aumenta as oportunidades de participação social,
contribuindo diretamente para o aprimoramento e o acréscimo da produção e do consumo de
bens. O Estado tem especial interesse porque aumentam os recursos para as políticas de
investimento dos programas sociais, infraestrutura e outros. Entretanto, todo o processo de
crescimento econômico e de desenvolvimento social precisa estar subordinado ao princípio de
sustentabilidade, que rege a organização e o funcionamento da sociedade.
A importância do trabalho para a melhoria das capabilidades humanas é um fator que
tem destaque para a avaliação das condições e para a efetivação do desenvolvimento
sustentável, alcançando também outros espaços decisivos para uma equilibrada relação social,
entre os quais se podem citar o aumento da liberdade de escolha, a melhoria da participação
política, particularmente das mulheres nas sociedades onde persiste a discriminação por
razões culturais ou religiosas, melhores condições para o planejamento familiar, entre outros.
O desemprego, que tem como consequência imediata a diminuição da renda, é uma das
principais causas da pobreza, a qual, contudo, não pode ser avaliada apenas como produto das
deficiências econômicas, pois isso seria restringir a ação humana às necessidades e demandas
econômicas (SEN, 1981).
A convicção do valor moral substantivo da liberdade, amplamente abordado por Sen,
reafirma que a pobreza é, primeiramente, a privação das capabilidades
24de uma pessoa, o que
impede que haja as opções entre diferentes alternativas e a escolha do tipo de vida que melhor
preenche suas expectativas e funcionamentos para a sua realização. O cuidado com as
políticas de emprego precisa refletir os fundamentos e as condições para a justiça social,
24 A justificativa para a compreensão da pobreza, não restrita à ausência de renda, é destacada por Sen (2000, p. 109): “1) A pobreza pode sensatamente ser identificada em termos de privação das capacidades; a abordagem concentra-se em privações que são intrinsecamente importantes (em contraste com a renda baixa, que é importante apenas instrumentalmente). 2) Existem outras influências sobre a privação de capacidades – além do baixo nível de renda (a renda não é o único instrumento de geração de capacidades). 3) A relação instrumental entre baixa renda e baixa capacidade é variável entre comunidades e até mesmo entre famílias e indivíduos (o impacto da renda sobre as capacidades é contingente e condicional).”