• Nenhum resultado encontrado

No Brasil, assim como em outros países da América Latina, o protagonismo judicial pode ser percebido com a ruptura aos regimes ditatoriais e consequente processo de redemocratização, em que este passou a incluir como elemento fundamental da democracia o papel contramajoritário exercido pelo Judiciário, bem como incluiu nos textos constitucionais promessas de inclusão social e redução da desigualdade.

A sensação de desconforto e insatisfação pelas promessas constitucionais não cumpridas tem ocasionado o distanciamento entre a sociedade e os demais poderes e produzido um apelo à jurisdição. Esta centralidade atribuída ao âmbito jurisdicional acaba gerando fissuras à democracia, criando um imaginário segundo o qual apenas o Judiciário tem competência para decidir as questões fulcrais da sociedade (TASSINARI, 2013).

Além disso, o reforço do papel da jurisdição permitiu também o aumento da discricionariedade dos juízes e a defesa de uma postura mais ativista. Enquanto a judicialização da política é um fenômeno contingente, uma constatação da realidade pelas transformações sociais ocorridas em todo o mundo, o ativismo judicial está relacionado a uma

postura de juízes e tribunais que não é indispensável, ou melhor, deve ser criticada para evitar que o Judiciário assuma as funções de governo.

A postura ativista tem levado os juízes a utilizar cada vez mais argumentos políticos e morais em suas decisões. O dever político de decidir, isto é, a responsabilidade atribuída pela Constituição para solucionar as controvérsias jurídicas, incluindo o controle de constitucionalidade, não pode ser confundido com o dever de decidir por meios jurídicos. Essa confusão pode trazer sérios prejuízos para a democracia e ordem constitucional, pois se o Poder Judiciário tem controlado de maneira ferrenha a atuação do Executivo e do Legislativo, o mesmo não é possível afirmar a respeito do controle sobre o Judiciário (accountability).45

Ao analisar a “delegação de responsabilidades” que a sociedade civil incumbe ao poder público, e especialmente ao Poder Judiciário, para resolução de conflitos de cunho essencialmente políticos e privados, Moura (2015) afirma que a ampliação descontrolada das funções institucionais não capacita as instituições para a sua otimização, ao contrário, aumenta o seu espaço violento de atuação, uma violência simbólica baseada em um autopoder atribuído pelo direito de dizer o Direito, que nada tem de democrático. A incumbência atribuída ao Judiciário para solucionar os conflitos permite que ele tome violentamente os espaços de debate político, apropriando-se do próprio conflito e do direito das partes.

O Poder Judiciário passa a ser um espaço de reivindicações políticas, um espaço de exigibilidade de democracia, como se esta fosse algo material e apropriado e não um exercício contínuo de cultura política. Sob um discurso de igualdade (entre as partes) e legalidade, aparenta ser o único espaço legítimo onde se pode manter o que se pode chamar de “diálogo saudável” e criterioso sob o assunto em debate. Ao se tornar este palco de resolução de conflitos democráticos, o Poder Judiciário é visto como um local higienizado de toda conotação política e neutra por natureza, logo imagina-se uma arena legítima para decidir todo e qualquer conflito com rigor e sem assentamentos políticos (MOURA, 2015, p. 3).

Mas não apenas a sociedade civil está sendo sufocada pelo Poder Judiciário, o Legislativo e o Executivo também estão sendo estrangulados, pela intervenção abusiva daquele poder. “Tal expansão do Judiciário não é apenas sua legitimação como única

45 Rolb Filho (2013) aponta que as formas de accountability judiciais encontram-se principalmente na esfera institucional, podendo ser diferenciadas da seguinte forma: (i) accountability judicial decisional, pela possibilidade de requerer informações ou justificativas dos magistrados pelas decisões judiciais, além de aplicar uma sanção por essas decisões; (ii) accountability judicial comportamental, consistente no recebimento de informações sobre o comportamento dos magistrados (produtividade, integridade etc.), também sendo autorizada a atribuição de sanção; (iii) accountability judicial institucional, que diz respeito às informações e às justificações sobre ações institucionais (administração, orçamento e relações com os outros poderes), assim como a sanção por processos institucionais inadequados; e (iv) accountability judicial legal, que significa o fornecimento de informações e justificações sobre o cumprimento da lei, além de sanção no caso de sua violação.

instância decisória, mas também o enfraquecimento político dos outros poderes e da sociedade.” (MOURA, 2015, p. 216).

Para Maus (2000), a libido da sociedade foi deslocada do Executivo para o Judiciário, principalmente em razão da auto-representação que a Justiça faz como instância moral, mas que não corresponde às expectativas sociais. Ressalta que em muitas decisões do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, principalmente relacionadas à economia, são feitos sopesamentos de valores que não encontram apoio no texto constitucional, ficando este em segundo plano. Além disso, mesmo quando a Justiça decide questões morais polêmicas a partir de pontos de vista morais, ela pratica a desqualificação da base social e a apropriação dos espaços jurídicos livres por uma Justiça que faz das normas “livres” a das convenções morais o fundamento de suas atividades, resultando em coerção estatal, que na sociedade marcada pela delegação do superego se localiza na administração judicial da moral.

Com efeito, se não há dúvidas quanto à limitação do espaço de atuação da Administração Pública – braço do Estado que está sendo contraposto ao Judiciário no presente estudo – importa explorar quais as possíveis implicações dessa restrição. Os prejuízos podem ser analisados em três dimensões: (i) implicações para a Administração Pública; (ii) implicações para a sociedade civil; e (iii) implicações para o próprio Poder Judiciário.

Quanto à primeira dimensão, inicialmente, cabe citar a seguinte afirmação de Rodriguez (2015, p. 17) ao investigar a forma como as cortes decidem: “A transformação do direito e das instituições em geral passa, necessariamente, pela transformação do papel do Judiciário e da atuação dos juízes.” Não há dúvidas quanto ao acerto dessa proposição. O papel do Judiciário sofreu profunda mudança, e a sua metamorfose também alterou as estruturas do Legislativo e do Executivo.

A história política brasileira (e também mundial) já demonstrou que quando o poder é depositado ou apropriado, inteiramente ou em quase sua totalidade, por um dos braços do Estado (Executivo e Legislativo), há perdas democráticas. A transformação que se esperava do Judiciário era que ele alcançasse a mesma posição de importância e capacidade de ação que os outros dois poderes. Entretanto, os limites foram extrapolados e fala-se em uma nova transição para a denominada juristocracia (HIRSCHL, 2007).

Quando o Judiciário caminha em direção a uma “supremacia judicial”, consoante Avritzer (2016), ele coloca em risco o equilíbrio institucional entre os poderes. A Administração Pública perde o controle quanto à gestão de seus projetos de governo. Por exemplo, quando decisões judiciais estabelecem obrigações de fazer ao Executivo,

desconsiderando os custos dos direitos, a escassez dos recursos, entre outros fatores que fogem à capacidade jurídica de decisão.

No que tange aos prejuízos à sociedade civil, a intervenção do Judiciário alimenta o sentimento de acomodação e apatia política e cívica que, por sua vez, gera sérias implicações ao desenvolvimento social, na perspectiva apresenta por Sen (2010), de desenvolvimento como liberdade.

Segundo o autor, o desenvolvimento deve ser visto como um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam, e essa expansão é considerada o fim primordial e o principal meio do desenvolvimento, ou seja, possui um “papel constitutivo” e um “papel instrumental”. O primeiro diz respeito às liberdades substantivas, que incluem capacidades elementares no enriquecimento da vida humana, como saber ler, ter participação política e liberdade de expressão. O segundo, instrumental, concerne ao modo como os diferentes tipos de oportunidades e intitulamentos contribuem para a expansão da liberdade humana em geral e para a promoção do desenvolvimento, como consequência. Além disso, no papel instrumental, a eficácia da liberdade como instrumento reside no fato de que diferentes tipos de liberdade apresentam uma inter-relação entre si, e se contribuem mutuamente (SEN, 2010)46.

Para Sousa (2011, p. 99), “na problemática da redução da pobreza e promoção do desenvolvimento, a possibilidade (ou não) de participação, de liberdade de expressão e de atuação da oposição tem papel fundamental no processo de desenvolvimento.” Acrescenta que isso se deve pelo fato de que a participação é fundamental para a escolha e direcionamento de políticas públicas, assim como para a fiscalização da execução das mesmas, só sendo possível em regimes democráticos. Além disso, são os direitos civis e políticos que dão às pessoas a possibilidade de identificar suas necessidades essenciais e emergenciais, bem como de exigir a ação apropriada.

46 Ainda segundo Sen (2010), as liberdades instrumentais podem ser: liberdades políticas; facilidades econômicas; oportunidades sociais; garantias de transparência; e segurança protetora. As liberdades individuais referem-se às oportunidades que as pessoas têm para determinar quem deve governar, a possibilidade de fiscalizar e criticar as autoridades, a liberdade de expressão e de imprensa, bem como o diálogo político, o direito de voto etc. As facilidades econômicas, por sua vez, são as oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, produção ou troca, e envolve a disponibilidade de financiamento e o seu acesso. Já as oportunidades sociais, como educação e saúde, são importantes para a condução da vida privada e para uma participação mais efetiva em atividades econômicas e políticas. As garantias de transparência, a outro giro, referem-se às necessidades de sinceridade, de presunção básica de confiança, que as pessoas podem esperar e seu papel instrumental é inibir a corrupção, a irresponsabilidade financeira e as transações ilícitas. A segurança protetora, por fim, proporciona uma rede de segurança, impedindo que a população afetada seja reduzida à miséria ou mesmo à fome e à morte, por meio da fixação de benefícios (ex.: aos desempregados e indigentes), por exemplo.

Essa liberdade política, de participação no processo de tomada de decisão, é retirada gradualmente pelo Judiciário, que exerce um poder simbólico sobre os jurisdicionados, o poder de dizer o direito, como já alertava Bourdieu (2007). Os agentes que pertencem ao campo jurídico, especialmente os juízes, são dotados de competência social e técnica e lutam pelo monopólio do direito de interpretar o direito e consagrar a sua visão da verdade e da justiça, utilizando para isso, por exemplo, elementos linguísticos. Constrói-se, dessa forma, uma barreira, um controle para averiguar quem está apto ou não para atuar no campo jurídico.

O sujeito que não está inserido no campo jurídico, logo, é colocado à margem das discussões políticas que estão sendo apropriadas pelo Judiciário. Perde a sociedade e perde a democracia. Não se quer defender o retorno à ágora grega, pela própria impossibilidade demográfica para isso. Todavia, da sociedade civil está sendo retirada inclusive a voz de seus representantes eleitos, e os membros do poder que detém o dever de proteger os direitos e garantias fundamentais passam a ser os primeiros a atacá-los, contrariando a própria Constituição.

A tutela paternalista elimina o que ela afirma preservar, isto é, ela subtrai dos cidadãos a cidadania, o respeito à sua capacidade de autonomia, à sua capacidade de aprender com os próprios erros, preservando a minoridade de um povo reduzido à condição de massa (de não-cidadania), facilmente manipulável por aqueles que se apresentam como os seus tutores e defensores, mas que creem, ainda que inconscientemente, serem superiores aos demais (ROSENFELD, 2003).

Ao analisar a jurisdição constitucional e parâmetros para a autocontenção judicial, Souza Neto e Sarmento (2015) ressaltam a importância de se desenvolver o constitucionalismo fora das cortes judiciais, pois os tribunais não são espaços assépticos e imunes às ideologias e articulações políticas.

Em nosso cenário, povoado por instituições e procedimentos imperfeitos, a jurisdição constitucional desempenha um papel altamente relevante. Em geral, o Judiciário brasileiro vem, pelo menos ao longo da última década, desempenhando razoavelmente bem este papel. No entanto, a jurisdição constitucional não é e nem deve ser concebida como a protagonista da narrativa constitucional da Nação. A Constituição é interpretada e concretizada também fora das cortes, e o seu sentido é produzido por meio de debates e interações que ocorrem nos mais diferentes campos em que se dá o exercício da cidadania. Essa possibilidade de interpretação constitucional fora dos tribunais é vital para a legitimação democrática da empreitada constitucional (SOUZA NETO; SARMENTO, 2015, p. 113).

Por fim, insta ressaltar que esse monopólio exercido pelo Judiciário é prejudicial a ele próprio, pois o coloca em uma posição de oráculo da qual será difícil retirá-lo. As expectativas quanto à sua neutralidade, capacidade técnica e eficiência são elevadas ao nível

mais alto de rigor. Todavia, essas expectativas são frustradas, não apenas pelas deficiências teóricas que os juízes possuem quanto à aplicação do direito, mas também em virtude de consequências práticas, como o aumento no número de demandas, a exigência de produtividade, que lhe retira o tempo necessário para se debruçar sobre as questões jurídicas, a fim de melhor fundamentar as decisões.

O Judiciário torna-se também escravo dos deveres administrativos (gestão processual), alvo da reprovação pública - especialmente quando os julgamentos são televisionados, como ocorre com o Supremo, por meio da TV Justiça – e tutor do Legislativo e do Executivo, os quais perdem a capacidade de atuação de per si e transferem as discussões de questões polêmicas para os juízes.

4 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO FRENTE À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

Estabelecidos os parâmetros teóricos do ativismo judicial para a implementação de políticas públicas, bem como definidos os limites para o controle jurisdicional aos atos administrativos discricionários, o presente capítulo visa, por meio da análise de decisões que versam sobre o direito fundamental à educação, verificar se a atuação do Poder Judiciário no âmbito de discricionariedade da Administração Pública pode ser caracterizada como ativismo judicial.

Para tanto, inicialmente será apresentada a controvérsia judicial, que envolve a própria definição de escola pública, analisando-se os argumentos da Defensoria Pública da União e da Administração Pública, por meio da Procuradoria Federal no Maranhão,47 e decisões de concessão ou não de liminares e sentenças de juízes federais no Maranhão proferidas no biênio de 2015 e 2016, a fim de diagnosticar critérios de decidibilidade empregados pelos magistrados em suas fundamentações. Também será examinada a jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região e do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema para averiguar se as decisões de primeira instância estão em sintonia com a jurisprudência do Tribunal da respectiva região e com a Corte Superior.