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As limitações de um enfoque exclusivo: necessidade de aproximações entre escola e clínica.

CAPÍTULO 2: PSICOSE INFANTIL

3. A INCLUSÃO ESCOLAR DA CRIANÇA COM PSICOSE

3.2 As limitações de um enfoque exclusivo: necessidade de aproximações entre escola e clínica.

Tratando-se de crianças que apresentam transtornos graves no desenvolvimento, como a psicose, sabemos que intervenções clínicas são imprescindíveis para que a criança possa se reestruturar e ter uma convivência social mais satisfatória. Levando-se em consideração o fato da estruturação psíquica ainda não estar definida na infância, acreditamos na possibilidade do sujeito deixar de ser objeto, subordinado ao desejo do Outro, vindo a ser, mediante um espaço de escuta e palavra, sujeito de palavra e desejo próprios.

Neste sentido, não apenas a clínica, mas também o ambiente escolar pode ser propulsor de vivências, as quais a criança com psicose, a partir da relação e dos vínculos construídos com seus pares, também possa se perceber como sujeito detentor de palavra e, a partir disso, elaborar novas simbolizações, fundamentais para a retomada de sua estruturação psíquica. Porém, tanto o trabalho desenvolvido na clínica como o realizado no ambiente escolar não alcançará resultados satisfatórios para a criança com psicose se for desenvolvido de forma isolada. É necessário que escola e clínica, tendo como objetivo comum que a organização psíquica da criança com psicose seja retomada, atuem sempre em parceria, de maneira que um trabalho complemente o outro.

A experiência através de atendimentos clínicos com crianças com psicose e autismo, possibilitou a Vasques (2009) perceber, ao longo de sua carreira, a insuficiência do trabalho clínico para a constituição destes sujeitos enquanto ser social. Partindo desta premissa, esta autora destaca a relevância da escola e do educador no processo de constituição do sujeito. Ressalta que, principalmente em casos de crianças com transtornos graves o ambiente escolar apresenta-se como o espaço que oportuniza a vivência da infância, impulsionando a aproximação do campo da educação e da clínica e, por consequência o diálogo entre a educação e a psicanálise.

Entendemos que a psicanálise se aproxima da educação quando oferece um espaço de escuta e palavra não apenas para a criança em tratamento, mas também para os professores e equipe pedagógica que acompanham a criança com psicose no ambiente escolar e vivenciam, diariamente, inúmeros desafios e sentimento de angústia frente a um aluno que se apresenta de maneira muito distinta da idealizada pelo professor. Neste sentido, a psicanálise se aproxima da educação quando se coloca à disposição para ouvir as angústias dos professores, de forma a proporcionar o apoio necessário para que a inclusão ocorra, viabilizando um olhar diferenciado para a criança que não o olhar limitado a uma criança psicótica.

Ainda sobre a aproximação entre psicanálise e educação, denominada Educação Terapêutica, Júnior e Naujorks (2011) afirmam tratar-se de uma intervenção que possibilita um lugar social para a criança com psicose, atuando nas relações estruturais da criança, posto conectar conhecimento, sujeito, significante e palavra. Neste sentido, a Educação Terapêutica, mediante um conjunto de práticas educacionais e de tratamento tem como objetivo apoiar o sujeito em suas dificuldades educacionais e subjetivas, aproximando o sujeito do discurso social.

Em trabalho desenvolvido através de parcerias entre a equipe terapêutica e os educadores, Bastos e Kupfer (2010) enfatizam a importância, destacando ser fundamental para crianças com transtornos graves desfrutarem da escola, sendo que a proposta da Educação Terapêutica aproxima o acompanhamento e suporte necessário aos professores que precisam, além da função pedagógica, proporcionar um enlace, ou seja, um “lugar de aluno” para este público alvo. Neste sentido, é importante destacar o quanto a interlocução entre clínica e escola evidencia o quanto um trabalho precisa do outro para que a criança com psicose desenvolva-se de forma satisfatória. Ademais, pondera-se que, ocupando a escola um lugar relevante para a constituição do sujeito, as intervenções clínicas, o apoio aos professores e a equipe escolar mostram-se fundamentais ao manejo do aluno.

Ampliando esta questão, traz-se a concepção de educação de Lajonquière (2006), na qual educar não se limita a transmissão de conhecimento, mas à inclusão da criança no campo da palavra e da linguagem, de forma que, não seja entendida apenas como a transmissão de conteúdo, mas um processo de construção da subjetividade. Tomando como referência este autor, Lerner e seus colaboradores (2016), afirmam que educação e tratamento são processos correlatos, pois possibilitam no campo simbólico da criança encontrar seus pares e, partir deste encontro, estruturar uma nova posição subjetiva.

Pensar a educação sob o enfoque da inclusão possibilita considerar que crianças com psicose não apresentam comprometimentos específicos no que se refere ao aspecto cognitivo, mas dificuldades nos aspectos comportamental, social e emocional. Tais aspectos interferem no processo de aprendizagem da criança. Exemplifica-se tal questão a partir de um acompanhamento de Vasques (2009), cujo aluno não manifestava dificuldade no aprendizado dos conteúdos, chegando a ser nomeado pela professora como “superdotado”, “meio gênio”. No entanto, apresentava dificuldades no relacionamento com os pares e com a professora, comprometendo seu aprendizado. Sobre esta contradição, Jerusalinsky (1997) esclarece ser inteligência e simbolização aspectos distintos. Posto isto, ressalta que crianças com psicose apresentam dificuldades no aprendizado não por escassez de inteligência, mas devido às falhas no processo de inscrição primária e, consequentemente, na constituição simbólica. São as insuficiências simbólicas geradas a

partir da forclusão da Função Paterna apresentadas pela criança com psicose, principalmente quando pequena, que são confundidas com os comprometimentos na aprendizagem, preceitua este autor.

Sendo uma temática de amplo interesse de estudo, cabe apresentar alguns dados. Em um recente estudo, Lerner e colaboradores (2016) narram a experiência de implementação do Núcleo de Educação Terapêutica (NET) no Centro Escola do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo – USP, que tem como fundamento teórico-clínico a Educação Terapêutica, proposta por Kupfer (2010). O “tratamento” das crianças realizado no NET, de acordo com os autores, parte das seguintes vertentes de intervenção: o atendimento individual, o atendimento grupal e a interação com a escola. A interação com a escola ocorre através do acompanhamento escolar da criança e de encontros mensais com educadores no Instituto de Psicologia da USP. Acredita-se ser através da interface com a escola que se faz possível o acompanhamento do processo de escolarização das crianças.

Sobre o grupo de crianças que iniciou o tratamento no NET, participaram cinco crianças, na faixa etária de cinco e nove anos de idade. Destas, nem todas eram diagnosticadas com psicose. Entre elas havia crianças com autismo e neurose. Acerca da heterogeneidade do grupo, considera-se fator positivo, posto que, possibilita a identificação com crianças em posições subjetivas distintas (LERNER et al., 2016).

Acerca da dinâmica de funcionamento do NET, os atendimentos grupais são divididos em dois momentos: no primeiro, ocorre a realização de atividades livres, nas quais a criança pode optar por: atividades de escrita, faz de conta, jogos educativos, lego, entre outros; no segundo, são atividades dirigidas, tais como Oficina de Artes e de Música, explicam Lerner et. al (2016). Para tais autores, o revezamento das atividades embasa-se no princípio da alternância, cujo teor é impulsionar elaborações individuais quanto a interação com o outro. Acerca desta execução, frisa- se:

Alternância de espaços, destituição recíproca quanto ao saber, heterogeneidade discursiva e prática entre vários apresentam-se como condições propícias ao tratamento da psicose por conta do estatuto ocupado pelo Outro na estruturação do sujeito psicótico e pelo efeito de captura que tal funcionamento produz (LERNER et al., 2016, p. 263).

Quanto à dinâmica destas atividades, salienta-se que as experiências vivenciadas pelas crianças, tanto no ambiente escolar quando na clínica, são debatidas semanalmente pela equipe clínica em reunião. Esta reunião promove o compartilhamento de informações das crianças, para que sejam pensadas e definidas, de forma conjunta, as intervenções a serem aplicadas para cada criança (LERNER et al., 2016).

Interessante pontuar sem preconcepções que, embora esteja dentro de uma perspectiva em Educação Terapêutica e, apesar das crianças frequentarem o ambiente escolar sendo acompanhadas em seu desenvolvimento pedagógico, as intervenções realizadas no NET são nomeadas como formas de “tratamento da criança”, no qual se entende que a ida a escola faz parte do “tratamento”. Este destaque visa explicitar a importância do entrosamento dos enfoques e do seu caráter interdisciplinar, pois,

O fato de o tratamento da criança contemplar ao menos três dispositivos — os atendimentos individuais, o atendimento em grupo e a interface com a escola — se fundamenta também no princípio da alternância, já que entendemos que é a partir dessa circulação em espaços diversos que a criança pode se posicionar e ser convocada de maneiras diferentes pelos adultos e por seus pares (LERNER et al., p. 262).

Relativo à denominada Educação Terapêutica é correto afirmar que seu principal objetivo é o “surgimento do sujeito” a partir da linguagem utilizada pelo Outro, seja na instituição clínica ou escolar, uma vez que crianças com estrutura psicótica utilizam a linguagem de uma forma particular, não condizente com a linguagem social (KUPFER, 2010). Nas palavras desta autora:

Apostamos na possibilidade de a criança que habita mal a linguagem — ou melhor, que a habita de modo idiossincrático, não participante do pacto simbólico, não participante dos códigos da cultura, eleitora de modos de gozo não socializados — aprender um pouco mais sobre os modos instituídos de gozo, atravessando, mergulhando cotidianamente em uma instituição quer a de tratamento, quer a escola, já que ambas estão estruturadas como uma linguagem (KUPFER, 2010, p. 275).

Aponta-se, no entanto, a disparidade entre a prática e o que se preconiza teoricamente. De um lado os autores ressaltam a importância entre a interface escola, acompanhamento escolar e encontros mensais entre professores, como contribuindo para a formulação de dispositivos para o tratamento da criança com psicose; no seu inverso, não são mencionadas práticas ou intervenções escolares que possam contribuir para a reestruturação psíquica da criança com psicose (LERNER et al., 2016). Neste sentido, as intervenções apresentadas no referido estudo tem como foco o contexto clínico grupal e, de forma geral, enfatizam a importância da delimitação da criança com psicose sem que seja preciso a negação do comportamento indesejado. Para que isto ocorra, o profissional transforma um comportamento malquisto da criança em outro socialmente aceito, como, por exemplo, a transformação dos “chutes às peças de lego” em uma “guerra de legos” - ilustrada no tópico seguinte - ampliando assim as possibilidades de emersão do sujeito no campo social.

Diante de um contexto no qual as intervenções clínicas são priorizadas, é comum o diálogo em relação ao ambiente escolar ser relegado a segundo plano. Quando se trata de crianças e

adolescentes com autismo e psicose infantil, esta naturalização chama mais atenção, pois a escola, diante de crianças com comportamentos diferentes, acaba se questionando sobre sua função para com estas crianças e duvidando da possibilidade de escolarização destas. Assim, tende a priorizar o seu atendimento em espaços clínicos, através de intervenções comportamentais, declara Vasques (2009). Sobre a descrença de uma professora, ilustra-se:

O que teria a escola a oferecer para tais crianças? Esses meninos e meninas que rodopiam pelas salas, que não falam, mas apenas murmuram, poderiam ler? Escrever? Fazer contas? Dessas crianças de cristal, o que se pode esperar? Como investir em quem parece não apreender (VASQUES, 2009, p. 32).

Tais dúvidas e questionamentos resultam do desconhecimento acerca das crianças e adolescentes decorrente da escassez de estudos sobre o tema, ausência de interlocução entre as áreas e um conhecimento metodológico pedagógico sistematizado. Estes, destaca Vasques (2008), são fatores que corroboram para tais questionamentos e dúvidas; soma-se a isto a percepção de ser diferente que representa a falha e, sendo falha, só pode ser reparada, superada.

Em levantamento na literatura nacional e internacional, Rodrigues, Capellini e Maturana (2017) apontam haver por parte dos professores um sentimento de estarem despreparados para o trabalho com alunos que apresentam TGD. Há que se considerar muitos professores não terem conhecimento suficiente sobre estes alunos, suas características específicas e como manejá-los. Ademais, professores relatam não contarem com o apoio de outros profissionais da escola para realizarem um trabalho conjunto. Todavia, apesar das dificuldades mencionadas, este levantamento destaca a abertura e disponibilidade para capacitações por parte dos educadores.

No tocante a complexidade desta atividade e o desenvolvimento de um trabalho conjunto, há que se considerar, também, o despreparo de coordenadores e gestores quanto à especificidade da atuação com a criança psicótica como, por exemplo, formas de ensinar. Este desconhecimento dificulta o processo de inclusão escolar. Neste sentido, além do acompanhamento de profissionais que atuam no contexto clínico com a criança com psicose, faz-se necessária a presença no ambiente escolar de profissionais como psicopedagogos e psicólogos. São estes profissionais, os mais preparados e capacitados do ponto de vista teórico no que tange ao desenvolvimento infantil. Podendo, portanto, contribuir através da troca de conhecimento para a efetivação da inclusão.

Observa-se no levantamento acima citado que, embora os autores proponham uma discussão a respeito do atendimento educacional aos alunos diagnosticados com TGD, neste estudo, a psicose infantil não é citada, nem pelos professores, nem pelos próprios pesquisadores. Não sendo apresentada pelos pesquisadores, é como se não estivesse inclusa nesta classe, sendo ilustrada apenas a partir do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Assim, enfatizando leis específicas que

respaldam o atendimento educacional especializado para alunos com TEA, representa pouca visibilidade e importância à psicose infantil que, por sua vez, serve para exacerbar as dificuldades dos professores no manejo da criança com psicose e sua rotulação ao TEA.

Diante da pouca visibilidade e importância, pode-se elencar diversos motivos para a ínfima discussão sobre a psicose infantil na categoria dos TGD. Dentre estes ressaltamos: primeiro, a recente inclusão da psicose infantil como público alvo da Educação Especial, inserida a partir de 2008, portanto, apenas uma década. Segundo, o pouco conhecimento por parte de alguns profissionais sobre a psicose infantil, principalmente como público alvo da Educação Especial devido ao escasso número de pesquisas e discussões sobre o tema. Destaca-se que, em se tratando de educação, um motivo sempre provoca consequências e, portanto, estão associados.

Neste contexto, entendemos que as dificuldades encontradas pelos educadores na escolarização de crianças com psicose sejam muitas, pois, se referente ao TEA, cujas pesquisas são em número significativo nos últimos anos, abordando técnicas e estratégias relevantes no atendimento educacional destes alunos, ainda há dúvidas, inseguranças e dificuldades por parte dos educadores, acreditamos que, no se refere à psicose, devido à insuficiência de conhecimento, como também às fantasias e preconceitos que envolvem o transtorno, as dificuldades sejam ainda maiores.

Sobre a inclusão escolar destes alunos, Vasques (2009) relaciona a educação ao processo de humanização afirmando que os percursos pessoais, escolares e clínicos destes sujeitos precisam ser investigados sob diferentes recursos e olhares, para que possam ser reconhecidos em sua singularidade e possibilidades subjetivas e educacionais sejam construídas.

Nesta perspectiva, contrário às práticas de reeducação comportamental utilizadas no século passado, que, segundo Lerner e seus colaboradores (2016), ainda são discutidas em políticas públicas e debates atuais, as intervenções de tratamento da psicose infantil embasadas pela Educação Terapêutica e propostas no NET possibilitam a reestruturação do sujeito com psicose a partir de suas construções individuais no contexto entre o tratar e o educar.