• Nenhum resultado encontrado

Os limites do direito penal no enfrentamento da violência de gê nero contra as mulheres nas relações de intimidade: tensão e paradoxo

Tensionando os rumos e/ou descaminhos do discurso da

2.1 Os limites do direito penal no enfrentamento da violência de gê nero contra as mulheres nas relações de intimidade: tensão e paradoxo

As propostas de combate à violência de gênero contra as mulheres com a utilização do recurso do Direito Penal têm sido um dos em- bates teórico-políticos importantes nos países democráticos ociden- tais, a partir do século XX. Por tratar-se de uma temática complexa, em que entram em jogo disputas com os discursos que organizaram grande parte da história da humanidade, o apelo dos movimentos fe- ministas pela criminalização dos comportamentos, sejam individuais ou institucionais, que violam os direitos das mulheres, acabou provo- cando inúmeros debates.

Um dos pontos centrais tem sido o argumento de que existe uma limitação de paradigma quando se pretende enfrentar esse problema social que foi, e continua sendo, gestado no emaranhado de fios que tra- mam a produção de subjetividade. A interseccionalidade dos marcado- res sociais de gênero/sexualidade, raça/etnia, classe econômica/cultu- ral, localização geográfico política, idade, crença religiosa, dentre tantos outros, dificulta acreditar que exista um caminho único para enfrentar os regimes de verdade instituídos que legitimam o sistema patriarcal- -racista de sexo/gênero.

Na esteira das discussões sobre o direito penal como um instrumen- to jurídico para tutelar os abusos de poder do Estado, Elena Larrauri

(2008, p. 39) é uma das autoras que tem discutido essa tensão que cons- titui a luta dos movimentos feministas pela criminalização da violência de gênero. Em uma autorreflexão crítica, ela se questiona: “Es posible compaginar el intento de ser criminólogas críticas (o criminólogas aboli- cionistas10) y ser, al mismo tiempo feministas? No es fácil.”

Essa autora indaga sobre a ambiguidade do discurso feminista nesse sentido, pois, ao mesmo tempo em que as feministas denunciam o ca- ráter patriarcal do direito penal, solicitam que esse campo jurídico in- terfira em uma situação que é absolutamente intrincada nas relações de dominação de homens sobre as mulheres. Desta forma, Elena Larrauri (2008) expõe suas dúvidas e dilemas e afirma não concordar com a de- fesa de que se utilize o direito penal apenas em sua função simbólica, pois entende que ele não consegue ser utilizado como um instrumento pedagógico capaz de produzir mensagens para a população.

Ao discutir as funções das penas nos ordenamentos jurídicos,Ales- sandro Baratta (1994) pontua uma dicotomia, entre uma função mais instrumental do direito penal e outra mais simbólica. Ou seja, uma que puniria o/a infrator/a, com vistas a que ele/a não volte a delinquir e ou- tra de caráter mais preventivo, no sentido de inibir os crimes por medo da punição. Todavia, esse autor defende que nenhuma das duas verten- tes tem se mostrado efetiva. Em relação à função simbólica do direito penal, Alessandro Baratta entende que nas “sociedades de espetáculo” em que vivemos, onde a tecnocracia suplantou a possibilidade real de comunicação entre os/as cidadãos/ãs e seus/suas representantes, a pro- latada função simbólica do direito penal não é nada mais do que uma política como espetáculo. Desta forma, Baratta (1994, p. 22) afirma que

[...] as decisões são tomadas não tanto visando modificar a re- alidade, senão tentando modificar a imagem da realidade nos espectadores: não procuram tanto satisfazer as necessidades re-

10 Teço aqui um pequeno comentário sobre as diferenças entre o posicionamento teórico no campo do Direito Penal. Existem duas correntes consideradas progressistas, a que defende o Direi- to Penal Mínimo, o qual propõe que se utilize a privação de liberdade de forma subsidiária, ou seja, que esse recurso seja exceção. A segunda corrente é denominada de Abolicionista, tendo como foco a defesa irrestrita do fim das práticas de encarceramento.

ais e a vontade política dos cidadãos, senão vir ao encontro da denominada “opinião pública”.

Aliado a isso, Alessandro Baratta (1994) destaca a seletividade do sistema penal, o qual sistematicamente acaba por prender apenas aque- les/as que se enquadram nos estereótipos de “bandido/a” e “marginal”:

Com relação à população carcerária, sabemos que se subestimam algumas das infrações que causam os mais graves danos sociais (delitos econômicos, ecológicos, ações da criminalidade organi- zada, graves desvios praticados pelos órgãos púbicos) enquanto se dá muito valor a infrações que causam menos dano social, tais como delitos contra o patrimônio, especialmente aqueles em que o autor da infração é originário das camadas mais pobres e estig- matizadas da sociedade. (BARATTA, 1994, p. 20).

Assim sendo, a tentativa de trabalhar com a noção de crime para os casos de violência de gênero contra as mulheres nas relações de intimi- dade é algo delicado, em virtude dessa categorização fundar-se no di- reito penal. De fato, este é um dos nós teórico-políticos a ser enfrentado por aquelas/es que pretendem discutir esse tipo de violência como uma forma de violação dos Direitos Humanos. Se por um lado, lançamos mão do discurso dos Direitos Humanos das mulheres, exigindo a puni- ção penal dos homens agressores e um maior rigor no deferimento de penas de privação de liberdade, acabamos nos distanciando da lógica dos Direitos Humanos, pois depois das discussões de Michel Foucault (1987)em Vigiar e Punir e de Erving Goffman (2005) em Manicômios, Prisões e Conventos,não é mais possível pensar nas instituições prisio- nais como produtoras de algum efeito benéfico para a sociedade.

Em um estudo que tomou como objeto de análise o Juizado de Vio- lência Doméstica e Familiar contra a mulher na cidade de Porto Alegre, Carla Alimena (2010) discute os encontros e os desencontros da crimi- nologia com o feminismo. Ela salienta os primeiros debates que denun- ciaram o quanto a criminologia era uma ciência com o olhar masculi-

no, pois se debruçava sobre os delinquentes, que em sua maioria eram homens, sendo a delinquência feminina vista como uma degeneração inata dessas mulheres. Essa autora traz o trabalho do Desembargador Francisco José de Castro, que em 1932 abordou os delitos contra a honra da mulher, no qual ele afirma existirem dois tipos de mulheres vítimas da violência sexual, aquelas que realmente tinham sido violen- tadas, mas que eram puras e ingênuas e aquelas que teriam provocado suposta violência. Esse posicionamento demonstra o paradigma pre- conceituoso na história da criminologia. Segundo Carla Alimena (2010, p. 43), Frances Heidensohn buscou nos contos infantis a imagem da “Bela Adormecida” como uma forma de denunciar o quanto as ques- tões da mulher foram esquecidas pela criminologia. Tal qual a Aurora da referida história, a violência de gênero havia ficado muito tempo encoberta por uma enorme floresta de espinhos no discurso jurídico dominante. Mesmo com os avanços da criminologia crítica, a qual ins- talou um novo paradigma que incluiu as questões de classe e o controle político-estatal, a temática do controle exercido pelos homens sobre as mulheres continuou não sendo discutida.

Contudo, apesar das limitações do Direito Penal, grande parte dos movimentos feministas defende a sua utilização, principalmente, pelo efeito simbólico na luta contra as diversas formas de violência de gêne- ro contra as mulheres. Compreende-se que essa defesa se sustenta no esforço de legitimação da igualdade entre homens e mulheres e a elimi- nação de práticas de dominação masculina. Nas relações de gênero do contrato heterossexual-racista, múltiplas formas de violência têm sido exercidas contra as mulheres nas suas relações de intimidade de forma naturalizada. Nos Estados democráticos de direito, o discurso jurídico é o portador das regras sociais vigentes, portanto, aquele com legitimi- dade para desnaturalizar práticas instituídas. Assim, o recurso da cri- minalização é um esforço de rompimento com o exercício de violação de direitos das mulheres no sistema patriarcal-racista de sexo/gênero.

Para Teresa de Lauretis (1987), é necessário que nos reconheçamos como sujeitos múltiplos em vez de alicerçados em uma única “identi- dade”. Além disso, a complexidade da produção de subjetividade dispo-

nibiliza formas de subjetivação contraditórias, em que não se sustenta mais a crença positivista das dicotomias, de um ser simplesmente divi- do em opostos. Portanto, talvez seja um falso paradoxo pensar nas difi- culdades de se ser feminista e crítica a uma lógica punitivista ao mesmo tempo. Talvez seja apenas a constatação das incertezas e limitações que os discursos comportam.

Outra limitação apontada sobre o campo do Direito Penal é o cará- ter extremamente individualizante que ele carrega, pois necessita defi- nir um culpado e uma vítima, omitindo os processos coletivos e sociais que atravessam as situações que serão consideradas crimes, e, o quanto isso é pernicioso nas questões de violência de gênero. Segundo Elena Larrauri (2008), dentre as dificuldades que as mulheres apresentam para conseguir uma proteção efetiva do sistema penal existem muitos estereótipos requeridos para enquadrar-se em vítima de violação de di- reitos, tais como: ser “inocente” e querer processar o criminoso.

Desta forma, a experiência das discussões teórico-práticas sobre a Lei Maria da Penha pode ser interessante para pensarmos se a crimina- lização da homofobia seria ou não um recurso interessante no enfrenta- mento desse problema. Apesar das muitas críticas que são direcionadas a essa legislação, aliadas ao fato de os crimes de femicídios não terem diminuído, a experiência com mulheres que acessam o Juizado de Vio- lência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a Delegacia da Mulher de Porto Alegre permite afirmar que para muitas mulheres as medidas protetivas têm funcionado como uma possibilidade de saída das situ- ações de violência. Além disso, há uma menor tolerância das mulheres para com as práticas violentas que lhes são direcionadas no âmbito das relações de intimidade e/ou familiares, fazendo com que haja um au- mento na procura pelas instituições públicas.

De um modo geral, o caráter processual penal punitivo não tem se efetivado, pois a maioria absoluta dos casos é “resolvida” antes da ins- tauração das denúncias de crime pelo Ministério Público. Nos casos em que há condenação, raramente a pena será de privação de liberdade, mas sim de responsabilização sobre o(s) ato(s) cometido(s), com me- didas alternativas de cumprimento das penas. Nesse sentido, pode-se

compreender o recurso da criminalização da violência de gênero con- tra as mulheres como a tentativa de legitimação de um discurso que assegure uma vida menos violenta e mais igualitária para as mulhe- res. Da mesma forma, pode-se pensar a criminalização da homofobia como um dos caminhos possíveis para a circulação de discursos que legitimem a liberdade das pessoas viverem sua orientação e identidade sexual e de gênero sem violência e com respeito.

3 Carta magna, direitos humanos e criminalização da homofobia

por Bernando Amorim

A criminalização da homofobia é uma das muitas medidas a se- rem tomadas pelo Estado na luta pela proteção das minorias sexuais. É questão de direitos humanos, no sentido de que o direito pela livre expressão sexual é condição sine qua non de exercício de característica indissociável ao ser humano; e intrinsecamente ligada à felicidade.

Conforme Dalmo de Abreu Dallari, quando significamos direitos hu- manos, “basta dizer que tais direitos correspondem a necessidades essen- ciais da pessoa humana11”. Em que pese seja vago, demasiado vago, não

poderia estar mais certo quando falamos de expressão da sexualidade. Orientação sexual, assim como identidade de gênero, é a expressão da pessoa; e garantir e proteger tal expressão dá efetividade a esse direito.

Trazendo o texto da Constituição Federal12, a livre orientação sexual

é vista como um direito fundamental quando:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Fede- rativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desi- gualdades sociais e regionais;

11 DALLARI, Dalmo de Abreu. Direitos Humanos e Cidadania. 2ª ed. São Paulo: Moderna. 2004. p. 13. 12 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Assim como:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi- dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a ima- gem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...]

§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamen- tais têm aplicação imediata.

§ 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Fe- derativa do Brasil seja parte.

No entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet13:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qual- quer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida

13 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.

saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Os artigos da Constituição Federal – aqui elencados – trazem os direitos fundamentais de liberdade, igualdade, dignidade da pessoa humana, bem como proíbe qualquer forma de discriminação. E se proíbe toda e qualquer forma de discriminação, qual a razão da discriminação, dos discursos de ódio e da violência física e não-física ser tolerada e invisibilizada pelo Estado?

A homossexualidade (ou orientação sexual), assim como a identida- de de gênero, viveu um processo de descriminalização e despatologiza- ção muito duro. A homossexualidade só teve a retirada do Código In- ternacional de Doenças em 1990. Antes disso, as práticas sexuais, tidas por si só como patologizadas, sofreram todo o estigma da descoberta da AIDS nos anos 80. Pessoas tidas como doentes física e psiquicamente.

O avanço pela promoção de direitos civis e a luta pela igualdade de di- reitos e pelo ideal de visibilidade e liberdade encabeçada pelos movimen- tos sociais, judicializando demandas prementes e pressionando esferas de poder foi fundamental para que se avançasse na possibilidade de constituir família, políticas públicas de diálogos de saúde, educação, acesso à justiça.

É um trabalho árduo, eis que nosso ordenamento jurídico, seja no âmbito cível ou criminal, é talhado na ótica machista, patriarcal e ho- mogênica. Ricardo Aronne bem lembra que o latrocínio (roubo segui- do de morte) tem pena muito maior e tipo específico ao homicídio. Assim como há extinção de punibilidade do estuprador, quando casa com a vítima do crime. Conclui o raciocínio:

Direito Penal? Público ou Priavado?? Para quem??? Certamente, uma porta de entrada, a todos tidos como anormais para o ho- mem médio do Code. Para os restos sociais. Improdutivos. “In- capacitáveis”... Embriões econômicos, que nunca foram dados a desenvolverem-se. Destinados ao descarte(s). 14

14 ARONNE, Ricardo. Razão & Caos no discurso Jurídico e outros ensaios de direito Civil- -Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010. p. 116-117.

No entanto, avançar na possibilidade de criminalizar a homofobia, em uma perspectiva de caráter simbólico da criminalização e legitimi- dade de tipificar a conduta como bem jurídico relevante ainda encontra dificuldade. No entendimento de Salo de Carvalho15:

Compreender a construção das masculinidades hegemônicas e as suas formas de produção de violência (interpessoal, institu- cional e simbólica), parece ser, portanto, um dos desafios urgen- tes das ciências criminais contemporâneas. O olhar feminista no que diz respeito ao patriarcalismo e à misoginia e a perspectiva queer sobre a heteronormatividade e as masculinidades (não) hegemônicas, convocam as ciências criminais a mergulhar no empírico para sofisticar sua compreensão sobre os inúmeros fatores que tornam determinadas pessoas e grupos sociais vul- neráveis aos processos de vitimização e criminalização, notada- mente aqueles estigmatizados pela sua orientação sexual.

Salo de Carvalho afirma que, historicamente, o movimento LGBT possui a mesma legitimidade que outros movimentos tidos como mi- norias, como o movimento negro ou o movimento das mulheres, com a mesma capacidade postulatória de políticas protetivas e afirmativas.

Sociedade livre, igual e justa é a sociedade livre de preconceito, que pri- ma e possibilita a livre orientação sexual, a livre identidade de gênero, abor- dando práticas discriminatórias como um bem jurídico relevante, retiran- do parcela significativa da população como sujeitos(as) de segunda classe.

A partir do exposto trago um caso para pensar: