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1. A ESCRITA COMO PRÁTICA SOCIAL: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS

1.1.2 A Linguagem escrita

A linguagem é reconhecida socio-historicamente como uma condição primária para a

vida em sociedade. Do ponto de vista das Ciências Humanas e Sociais, a linguagem é

marcada como um mecanismo que direciona as manifestações de desejos, ideias e sentimentos

do sujeito em sociedade. Embora as discussões teóricas e metodológicas sobre a linguagem

transcorram sob diferentes concepções, é possível perceber um consenso entre os

pesquisadores, de que a aquisição e o desenvolvimento da linguagem se dão primeiramente

pela relação que se estabelece entre os processos cognitivos e as relações interpessoais do

sujeito (VYGOTSKY, 1989; LORANDI; CRUZ; SCHERER, 2011; PAPALIA; FELDMAN,

2013, FERREIRO; TEBEROSKY, 1999).

De acordo com alguns autores, a linguagem e a cognição são elementos essenciais

para a vida humana em sua totalidade, o suposto é que o ser humano se utiliza da cognição,

bem como de um conjunto de elementos físicos, mentais e emocionais para organizar os

conhecimentos adquiridos nas relações interpessoais. Nessa perspectiva, parece ser

inconcebível discutir linguagem apenas do ponto de vista social, visto que as manifestações

de linguagem são compostas por uma estrutura neurocognitiva que organiza os mecanismos

de ouvir, falar, ler, interpretar e escrever (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2004; LEITE;

BITTENCOURT; SILVA, 2015; ROTTA, OHLWEILER, RIESGO 2006)

De modo semelhante, na compreensão de Borges e Salomão (2003), para além da

vivência em sociedade e intenção do ser humano se comunicar, é fundamental considerar que

a linguagem está intimamente interligada à cognição, uma vez que a cognição é responsável

por organizar os pensamentos e ideias que ele constrói nas experiências em seu contexto

social. E de acordo com alguns estudos a linguagem assume a função de expressar essa

organização por meio de diferentes modalidades oral, escrita e gestual (LORANDI, 2011;

MARCUSCHI, 2008; DIONÍZIO, 2007).

Do ponto de vista sociocognitivo, os teóricos Piaget e Vygostsky3 foram um dos

pioneiros nas pesquisas sobre as implicações das estruturas cognitivas e processos mentais no

desenvolvimento da linguagem. Eles construíram suas concepções a partir da observação de

crianças em seus contextos de interação, Piaget sob o ponto de vista biológico e Vygostsky

com o olhar mais direcionado as interações e condições sociais que orientavam o

comportamento das crianças. Esses teóricos caminharam lado a lado em suas pesquisas,

quando concordaram que toda manifestação de linguagem foi resultado das interpretações de

mundo que as crianças fizeram ao se comunicarem umas com as outras (PAPALIA;

FELDMAN, 2013).

Pelo exposto, temos constatado que muito se tem discutido sobre aquisição de

linguagem do ponto de vista sociocultural e linguagem como função comunicativa.

Confirmando esse pensamento, Marcuschi (2008) afirma que a linguagem é um elemento

cultural que se desenvolve principalmente por meio das relações e atividades

sociocomunicativas. Para Bakhtin (2002) o viés comunicativo da linguagem permite que o

sujeito falante possa construir novos conhecimentos em si mesmo e nos outros a partir de um

diálogo responsivo:

Todo discurso é orientado para a resposta e ele não pode esquivar-se à influência

profunda do discurso da resposta antecipada. O discurso vivo e corrente está

imediata e diretamente determinado pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca

esta resposta, pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já dito”,

o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-resposta que ainda não foi

dito, discurso, porém, que foi solicitado a surgir e que já era esperado. Assim é todo

diálogo vivo (BAKHTIN, 2002, p. 89).

Os estudos difundidos pelo filósofo-linguista Bakhtin (2006) nos revelam que em toda

manifestação de linguagem existe uma intenção dialógica, o sujeito não fala simplesmente por

falar:

Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra,

defino-me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade.

A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia

sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra

é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 2006, p.117).

Essa concepção filosófica de Bakhtin acerca da linguagem não despreza em momento

algum as contribuições das demais perspectivas teóricas sobre as implicações dos processos

mentais no percurso de aquisição da linguagem, porém ele não negocia seu posicionamento

sobre o caráter social da linguagem quando formula seu conceito de dialogismo e gêneros

discursivos (SCORSOLINI-COMIN; SANTOS, 2010).

De certo, as manifestações de linguagem podem se dá por diferentes modalidades, a

saber: oral, sinalizada ou escrita (LORANDI, 2011; MARCUSCHI, 2008; DIONÍZIO; 2007).

No entanto, nosso estudo esteve direcionado especialmente para a aquisição do processo da

escrita, com vista a compreender os domínios relativos à sua aquisição, desenvolvimento e

principalmente sua construção e uso em sociedade. Partindo também do princípio de que

diferente da linguagem oral, cujo desenvolvimento incide de forma natural em contexto

basicamente familiar em primeira mão, dispensando um aparato de formalidade, a linguagem

escrita necessita ser ampliada a partir de um ensino explícito, envolvendo a contextualização

em uma situação mais formal e estruturada (MARCUSCHI, 2008; LEITE, BITTENCOURT,

SILVA, 2015).

De acordo com os estudos de Vygotsky, Luria e Leontiev (2010), a experiência da

criança com a escrita inicia-se antes mesmo da sua inserção na escola:

No começo, a criança relaciona-se com coisas escritas sem compreender o

significado da escrita; no primeiro estágio, escrever não é um meio de registrar

algum conteúdo específico, mas um processo autocontido, que envolve a imitação

de uma atividade do adulto, mas que não possui, em si mesmo, significado

funcional. Esta fase é caracterizada por rabiscos não diferenciados; a criança registra

qualquer ideia com exatamente os mesmos rabiscos (VYGOTSKY, LURIA,

LEONTIEV, 2010, p. 180-181).

É possível perceber que desde a mais tenra idade a criança demonstra uma intenção

comunicativa na escrita, uma vez que, ao rabiscar um símbolo ou um conjunto de símbolos, a

criança confirma querer revelar algo que aprendeu e deseja comunicar (VYGOTSKY, 2000;

ALENCAR, 2012). Soares (2005) compartilha a ideia de que após essa etapa de rabiscos e

desenhos simbólicos a criança começa a interpretar a função comunicativa da escrita

principalmente quando aprende a ler e escrever:

Em contato com a linguagem escrita, a criança dirige sua atenção para diferentes

dimensões desse objeto. Em primeiro lugar, a atenção da criança se volta para

compreender o que distingue a escrita e o desenho. Nesse esforço, ela estabelece que

a linguagem escrita e os sinais gráficos como letras e números “servem para ler”.

Distinguindo o que “serve para ler” do que não serve, a criança busca estabelecer

critérios ou princípios de natureza gráfica para definir o que é passível de ser lido e

de ser escrito. Dois princípios são, então, estabelecidos: u o princípio da quantidade

mínima de letras, de acordo com o qual uma escrita, para ser lida, deve possuir um

número suficiente de letras (mais de uma letra, no mínimo); u e o princípio da

variedade interna de letras, de acordo com o qual, um objeto gráfico, para ser lido,

deve apresentar caracteres diferentes (um conjunto de letras iguais, como AAAA,

por exemplo, não constituiriam algo passível de ser lido). (SOARES; BATISTA,

2005, p. 33).

E é sobre esse processo de aprender a ler e escrever que Vygotsky (2000) também vem

chamar a atenção para a necessidade de se compreender que, na criança, esse processo é

gradual e contínuo, ou seja, na interação com cada novo conhecimento. Esse posicionamento

de Vygotsky nos confere entender que o processo de aquisição da escrita deve considerar

principalmente a relação do que ela já conseguiu aprender com o que ela está acabando de

conhecer. Dito de outra forma, o ensino da escrita precisa ter como principal objetivo uma

mediação de um outro que intensifique o conhecimento prévio da criança buscando

relacioná-los com a construção de um novo conhecimento. É o que Vygotsky chama de Zona de

Desenvolvimento Proximal (ZDP):

Para Vygotsky, os adultos, ou os colegas mais desenvolvidos, devem ajudar a

direcionar e organizar a aprendizagem da criança antes que esta possa dominá-la e

internalizá-la. Essa orientação é muito eficaz para ajudar a criança a atravessar a

zona de desenvolvimento proximal (ZDP), a distância entre o que ela já é capaz de

fazer sozinha e o que pode realizar com assistência. A instrução sensível e eficaz,

portanto, deve ter como objetivo a ZDP e aumentar em complexidade na medida em

que as habilidades da criança são aperfeiçoadas (PAPALIA e FELDMAN, 2013 p.

66).

Essa constatação de Vygotsky nos leva ao entendimento de que a escrita na criança

precisa ser carregada de sentido sobre o que se escreve, ou seja, ela precisa entender a

importância da estrutura da palavra e concomitantemente saber utilizá-la em seu contexto, a

mediação, portanto, precisa ser uma constante em seu cotidiano.

Na atualidade, a escrita é reconhecida como uma modalidade da língua que possibilita

a criança compreender e se fazer compreendida em suas relações sociais. Rotta; Ohlweiler e

Riesgo (2006) afirmam para se comunicar pela escrita a criança se utiliza de um código

simbólico como representação do seu pensamento acerca das situações em sua volta. De

acordo com Ferreiro e Teberosky (1999) mesmo que ainda não domine a forma convencional

da escrita, a criança naturalmente arrisca autênticos rabiscos e traçados para expressar sua

compreensão de mundo:

Nossa visão do processo de aquisição da linguagem escrita, é que no lugar de uma

criança que espera passivamente o reforço externo de uma resposta produzida,

pouco menos que o acaso, aparece uma criança que procura ativamente compreender

a natureza da linguagem que se fala a sua volta e que tratando de compreendê-la

formula hipóteses, busca regularidades, coloca à prova suas antecipações e cria sua

própria gramática (que não é simples cópia deformada do modelo adulto, mas sim

criação original). (FERREIRO E TEBEROSKY, 1999 p. 24).

Nas últimas décadas, a escrita vem sendo foco de discussões em diferentes áreas do

conhecimento como a Pedagogia, Psicologia, Sociologia e Linguística. Temos observado que

o diálogo entre as concepções vem sendo consensuais quanto às implicações do contexto

social para a compreensão e construção da escrita na criança, onde a mesma assume o papel

de protagonista na relação comunicativa que se estabelece entre ela e seu contexto social.

Ademais, pensar sobre o desenvolvimento da escrita numa perspectiva prática, é

contemplar uma realidade social que tem na própria criança um participante ativo em todo o

processo dialógico, reconhecendo que ela é capaz de interagir com os signos e os símbolos

construídos socialmente e atribuir a eles, novos significados a partir da interação com outras

crianças ou adultos (BAPTISTA, 2010). Sobre esses aspectos, Rojo (2006) diz:

A escrita não é, embora muitos creiam nisto, uma transcrição da fala, não é um

código de transcrição. Ao contrário, como bem lembrava Emília Ferreiro (1986), a

escrita elege alguns sinais gráficos para representar alguns aspectos (sons, pausas,

entonações) da fala, mas não outros. Uma transcrição mais exata da fala só pode ser

obtida por meio do alfabeto fonético, mas não por meio da escrita alfabética

convencional. Logo, a escrita é um processo de representação e não de transcrição,

que exige análise, mas que tem muito de convenção. Em segundo lugar, a escrita

não é um dom e não evoluiu do desenho (pictograma) para o desenho estilizado

(ideograma) e para a escrita alfabética, como muitos parecem acreditar. Não é

preciso antes desenhar para depois escrever letras. Esses são sistemas de

representação que funcionam a partir de lógicas diferentes e qualquer criança que

participe de práticas letradas sabe distinguir “o que está escrito” do que é desenho ou

ilustração (ROJO, 2006, p. 17-18).

Esse pensamento de Rojo nos direciona a compreensão de que a escrita é uma

habilidade que se desenvolve em qualquer sociedade onde o texto escrito se faz presente e

deserta na criança o desejo conhecer o sentido dos dizeres reproduzi-los em suas experiências

com seus pares. Com perspectiva semelhante, Fayol (2014) afirma que algumas realidades

sociofamiliares, a criança desde muito cedo é imersa nos registros escritos e, quando

estimuladas pelos adultos, são capazes de observar a função de nomeação e de comunicação

da escrita. Soares (2004) assegura que a criança vive em uma sociedade grafocêntrica cercada

de livros, faixas e placas sinalizadoras, a escrita está impressa em todo seu entorno, portanto

não há grandes impedimentos para que ela perceba a função comunicativa da escrita

principalmente a partir da mediação dos adultos na família, escola e demais espaços de

interação.

Essa perspectiva nos remete ao que Smolka (1987) em sua tese, que teve como título

“Alfabetização como um processo de discurso” defende que, numa sociedade grafocêntrica

como diz Soares (2004), a criança percorre um caminho gradual entre a percepção e

elaboração dos registros escritos:

A escritura aparece, então, inicialmente, marcada pelo discurso interior, enquanto

atividade e elaboração individual, no sentido de apreensão de fragmentos e

momentos desse discurso, que tomam forma, que se constituem – pelo gesto, pelo

trabalho de escrever – em signos escritos esparsos ou aglutinados. Gradualmente,

essas marcas iniciais vão se transformando: a escrita truncada e ilegível das

primeiras tentativas vai se adquirido o caráter da legibilidade para o outro. Mas essa

legibilidade implica normas, funciona num espaço de regularidades que não são, no

entanto, imutáveis e que podem ser negociáveis. (as transformações sócio-históricas

se produzem nestes espaços) (SMOLKA, 1987, p. 134).

Para Smolka (1987), as situações de interlocução presentes nos contextos de

socialização proporcionam experiências individuais que podem ampliar ou redimensionar o

saber primário da criança a respeito dos textos escritos em sua volta, assim, a linguagem

constitutiva de uma cultura permite que a criança se torne um participante ativo de uma

sociedade, numa dinâmica onde ela se apropria dos novos saberes que são coletivos e ganha

espaço para compartilhar seus próprios saberes.

Fayol (2014) explica que escrever é uma atividade extremamente desafiadora para a

criança, pois, ao traçar o percurso entre as primeiras palavras e uma produção textual, ela

enfrenta pelo menos três problemas. Em primeiro lugar ela precisa reconhecer e manipular os

escritos em sua volta (letras e números) como um código que para ela ainda é

demasiadamente abstrato.

Em seguida, descobrir que a língua escrita possui a função do dizer, do dialogar, bem

como que em todo escrito há um interlocutor, um destino, e, que para isso, ela necessita da

interação com o outro, de um estímulo, de uma mediação. Em terceiro lugar, a criança

percebe que precisa produzir algo estruturado e com sentido, percebendo que não basta falar

sobre o que escreveu, mas que, sobretudo, seu texto escrito precisa de uma estrutura coesa.

A complexidade que permeia uma atividade de escrita, muito se atribui ao fato de que

em atividades de escrita, a criança primeiramente precisa desenvolver estratégias progressivas

e sofisticadas para eleger palavras e organizar a ideia central de um texto, logo uma de suas

maiores dificuldades é conseguir reunir um grupo de palavras que preserve o sentido do que

ela pretende expressar (ANTUNES, 2003; SOARES, 2004). Em síntese, para além de

conhecer e consolidar a estrutura gramatical das palavras é necessário que as crianças

apropriem do sentido e representação dessas palavras em seu cotidiano, sabendo, sobretudo,

como utilizá-las em suas práticas sociais e discursivas, deste modo, logo se vê a necessidade

da adição de práticas pedagógicas que conduzam as crianças nesses aspectos (FUZA;

MENEGASSI, 2007;SILVA; LUNA, 2015).

Nessa direção, muito se tem discutido sobre a importância do posicionamento

reflexivo e autônomo dos alunos em suas produções textuais, estudos apontam que os textos

possibilitam a construção de conhecimento sobre diferentes tipos de gêneros, normas e regras

de escrita que subsidiam uma produção coesa e efetiva, além disso, os alunos percebem que a

manipulação dos textos permitem expressões e compartilhamentos de ideias (PCNs, 1997).

Como se vê, não há outra forma de caracterizar a escrita, que não seja reconhecendo

que se trata de uma modalidade da língua, que pode ser observada já nas primeiras intenções

da criança de materializar suas ideias e pensamentos nas conversas com seus familiares, nas

brincadeiras com os colegas e até mesmo sozinhos. É fundamental também considerar que, ao

ser inserida na escola, a criança começa aprofunda o sentido comunicativo das letras,

palavras, frases e textos (SOARES, 2004; SILVA; LUNA, 2015).

Assim, é conferido à escola a responsabilidade de subsidiar a aprendizagem da leitura

e da escrita de forma que os alunos compreendam, sobretudo, a função social da língua, sendo

capazes de utilizá-la em suas produções textuais seguindo uma estrutura autônoma, coesa e

discursiva (BAPTISTA, 2010; BIANCHI, 2015). Nessa direção, as orientações dos PCNs têm

como objetivo auxiliar o trabalho dos professores do ensino fundamental, onde a proposta

central do documento é mostrar caminhos para um ensino de escrita que possibilite o acesso

dos alunos a situações de escrita reais e contextualizadas:

[...] o tratamento que se dá à escrita na escola não pode inibir os alunos ou afastá-lo

do que se pretende; ao contrário, é preciso aproximá-los, principalmente quando são

iniciados “oficialmente” no mundo da escrita por meio da alfabetização. Afinal, esse

é o início de um caminho que deverão trilhar para se transformarem em cidadãos da

cultura escrita [...] (BRASIL, 1997, p. 67).

Considerando esse percurso teórico percebe-se que para além da forma convencional

da escrita, bem como dos fatores endógenos, as relações que vão sendo estabelecidas na

sociedade assumem igual importância na construção da escrita na criança e pela criança.

Destarte, nos cabe discutir sobre como essa construção vêm se organizando e se consolidando

no processo de alfabetização.

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